CELSO ITIBERÊ, do Rio de Janeiro, em depoimento a GABRIEL CURTY
Jornalista, cobriu a F1 por
mais de 10 anos e estava em Ímola em 1994
Revista Warmup
Edição 49 - Abril/2014
O fim de semana de San Marino
foi algo que não vai se repetir nos próximos dois séculos. Na sexta-feira, nós
tivemos o acidente do Barrichello, gravíssimo. O carro pegou a zebra, voou e
caiu muito feio no chão. E o Barrichello não sofreu, em relação ao tamanho do
acidente, praticamente nada. Se você perguntar isso a ele, ele vai dizer:
“Olha, eu não lembro nada, mas que o choque foi forte, foi”. Foi uma pancada
terrível. Aí, no sábado, teve o acidente do Ratzenberger, que morreu. E foi aí
que o Ayrton começou a mudar.
Ele foi o primeiro a ir atrás do acidente, ele foi ao local, ele viu, ele
analisou o carro e a situação. E quando voltou, falou com o pessoal da
segurança, inquieto. Depois disso voltou ao paddock. Eu estava esperando nos
boxes. Quando passou por mim, deu apenas um aceno e disse: “Não vou falar
agora”. Aí eu fui o acompanhando até o motorhome da Williams.
Lá dentro, atrás de onde ficavam os carros, tinha um cubículo, uma espécie de
quartinho, com uma cama de solteiro. Ele foi pra lá e, mais uma vez, tentei
falar com ele. Eu disse que iria esperá-lo. Ficou lá, com a porta fechada,
cerca de uma hora e meia; não recebeu ninguém da equipe, não recebeu
absolutamente ninguém. Quando saiu, ele simplesmente passou e disse: “eu não
vou correr”.
Foi aí que teve todo o buchicho: a equipe dizendo que ele precisava correr, ele
alegando que não tinha segurança e que a situação era complicada. Quando os
treinos acabaram, o Ayrton ainda tinha a decisão formada de que não correria.
Então teve o jantar com os amigos. Lá estavam o Galvão e outros mais próximos
da Williams e do Ayrton. E lá foi dito que o Ayrton não poderia deixar de
correr, que os acidentes eram inerentes ao automobilismo e tal, e ele
argumentava que a pista era complicada e que poderia ocorrer algo de mais grave.
Por fim, ele decidiu que iria correr.
No domingo, o Ayrton chegou ao autódromo de um jeito... gelado. Não falava
nada, estava absolutamente concentrado e triste. Aí aconteceu aquela famosa
cena que eu vi de perto quando estava na frente do boxe da Williams: percebi
que o Ayrton chegou nos boxes com grande antecedência – geralmente eles chegam
meia hora antes da corrida. Lá estavam eu e um cinegrafista da Rede Globo, e a
gente viu aquele ritual que já foi mostrado muitas vezes, quando ele fez uma espécie
de despedida com o carro. Ele olhava para a Williams, passava a mão no
aerofólio, ia até o bico, voltava ao aerofólio, para a frente e fechava o olho.
Parecia uma mistura de concentração com um certo tipo de respeito com o carro.
Ele entrou no carro e foi pro grid.
Ele passou a fazer gestos que não eram habituais; todo piloto tem sua marca no
grid. E a marca do Ayrton era ficar imóvel, de capacete, sempre com o olhar
fixo. Mas dessa vez foi diferente: ele tirou o capacete, fez um procedimento
totalmente diferente daquele que a gente estava acostumado a vê-lo fazer.
Quando aconteceu o acidente na Tamburello, eu estava na sala de imprensa,
acompanhando pela televisão. E lá eu estava com um amigo meu, Nestore Morosini,
de ‘La Gazzetta
dello Sport', que virou para mim e disse: “Esse acidente foi grave, muito
grave. Acho que o Ayrton vai ficar muito mal”. Ouvindo isso, vendo o Ayrton
ali, parado, me deu uma sensação estranha. Eu saí que nem um louco para a
pista. Fui correndo para a curva Tamburello, correndo muito. Quando eu estava
chegando, a segurança já havia bloqueado a passagem.
No meio do caminho, encontrei outro grande amigo italiano, fotógrafo da
‘Autosprint’, Angelo Orsi, que também era amigo do Ayrton. Ele me parou: “Não
vá até lá. A situação é muito grave. Eu estava na Tamburello, fiz todas as
fotos, desde a hora em que o carro saiu da pista, até o momento em que ele foi
atendido e o tiraram do carro. E vou te dizer: não vou permitir que a
‘Autosprint’ publique essas fotos. Elas são de uma violência incrível. Nem
tenho condições emocionais de te dizer o que aconteceu. Só te digo que, quando
tiraram o Ayrton do carro, não parava de jorrar sangue; uma coisa terrível”.
Descobri, então, que ele estava indo para o hospital de Bolonha. Não hesitei,
peguei meu carro e fui para lá também. E, para ser sincero, não lembro de nada
dessa hora até a hora em que cheguei no hospital. A emoção era muito grande. No
hospital, a coisa ficou ainda mais dramática: a médica italiana reuniu todos os
jornalistas que estavam lá e informou: “A situação é gravíssima, houve uma
fratura craniana e os ossos da cabeça estão todos quebrados. Resta apenas
esperar o coração parar de bater, algo que ainda pode demorar já que ele tem um
físico de atleta”. Ponto final.
Eu diria que o acidente não marcou só a minha carreira, mas, sim, a vida de
todos que acompanhavam o automobilismo, viviam o dia-a-dia, cobriam todos os
GPs e que viam o Senna nas corridas e nos testes. O acidente de Ímola e a morte
do Ayrton foram um choque tão grande que transformou a todos nós. Ayrton era
mais do que um piloto para o Brasil: ele era um vingador, aquele homem que era
acompanhado pelo país todo o momento em que chegava à pista. E ele respondia
com grande autoridade e correspondia toda a confiança que lhe era depositada.
Era mais que cobrir um piloto: era cobrir um ídolo, um sujeito que o Brasil
todo queria saber cada mínima coisa que acontecia com ele. Sem o Ayrton, acabou
aquela coisa mística que estava ali o tempo todo. De repente, ficou um vazio
enorme para nós todos, uma tristeza enorme em nossos corações. Foi uma coisa
terrível para nós todos como pessoas e como profissionais”.
FONTE PESQUISADA
CURTY, Gabriel. 20 nos 20: Celso Itiberê. Disponível
em: <http://revistawarmup.grandepremio.uol.com.br/edicoes/49/20-nos-20-celso-itibere.shtml>.
Acesso em: 24 de agosto 2015.