terça-feira, 30 de março de 2021
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quinta-feira, 4 de março de 2021
OS ENIGMAS DE IMOLA
No horário da Itália, eram 13h27 do dia 1º de maio de 1994,
quando Ayrton surgiu dos fundos do boxe da Williams, macacão amarrado à
cintura, pronto para entrar no carro e seguir para o grid de largada. Como
fazia em todas as corridas, o cinegrafista Armand Deus, da TV Globo, apertou o
botão de sua câmera Betacam e começou a captar as imagens.
Procedimento de rotina. Não era uma transmissão ao vivo.
As imagens seriam usadas para ilustrar a reportagem sobre a
corrida que o correspondente Roberto Cabrini editaria no final do dia, a tempo
de ser gerada para o Rio de Janeiro e exibida no programa Fantástico.
Não era um dia de sorrisos para ninguém no autódromo de
Imola.
Menos ainda para Ayrton, que havia anos já assombrava
mecânicos, engenheiros, jornalistas e namoradas com sua capacidade de se
concentrar nos momentos que antecediam à largada, tornando todos à sua volta
rigorosamente invisíveis e inaudíveis. Seu olhar, naqueles momentos, parecia
estar em outra dimensão. Sua seriedade formava uma muralha da qual poucos
ousavam se aproximar, não importando a patente familiar ou a relação
contratual.
Para alguns, naqueles momentos ele antecipava curvas e
movimentos dos adversários. Para outros, rezava. Outros ainda achavam que
aquela era uma travessia sensorial para um mundo cheio de fúria que só cabia e
existia no cockpit. Uma travessia sem volta até que a corrida, a dele,
terminasse.
A câmera de Armand Deus continuava gravando quando Ayrton se
aproximou da parte traseira de sua Williams e pousou as mãos sobre o aerofólio.
Teve uma rápida conversa sobre a suspensão traseira com o
engenheiro David Brown. Depois, seu olhar passou a se alternar entre o nada e a
Williams, ainda suspensa nos cavaletes, sem as rodas, recebendo os últimos
ajustes dos mecânicos.
Era mais do que a concentração de sempre. Havia uma contida
inquietação. E também uma tristeza solene e impotente. Estavam ausentes, no seu
semblante, como desde o início daquele ano, a intensidade e aquele olhar de
predador dos tempos da Lotus e da McLaren. Nem mesmo o rápido comentário de Patrick
Head, o diretor da Williams, pareceu diminuir a distância que ele mantinha de
tudo que o rodeava.
Algum pensamento finalmente o resgatou daquela estranha
dispersão para o ritual do cockpit: balaclava, capacete, macacão fechado até o
pescoço e uma espera disciplinada, de pé, com as mãos cruzadas sobre a cintura,
pela ordem de entrar no carro e ajustar o cinto de segurança.
As imagens gravadas por Armand Deus no boxe da Williams e,
minutos depois, as que foram feitas no grid de largada, quando Ayrton mudou a
rotina e tirou o capacete, se tornaram históricas. Deflagraram o sofrido
exercício ao qual milhões de pessoas, especialmente os brasileiros, se
entregaram nos dias seguintes: o que estava por trás daqueles últimos olhares,
gestos e silêncios?
Havia muitas respostas possíveis, sozinhas ou combinadas.
Dentro e fora da pista.
Schumacher estava ali, quase ao lado, mais do que nunca
disposto a destroná-lo. Roland Ratzenberger morrera depois de uma batida
centenas de metros à sua frente, no dia anterior, e o fizera, pelo menos por
algumas horas, desistir de correr. Rubens Barrichello, que ele vinha tratando
como uma espécie de irmão mais novo das pistas, sobrevivera a um acidente
assustador, na sexta-feira. Aquela Williams que ele chamava de "cadeira
elétrica", um carro arisco e difícil de guiar, estava consumindo pneus com
preocupante rapidez.
A placa de um minuto foi erguida.
Vinte e cinco motores de Fórmula 1 começaram a rugir.
Ayrton, na hora de acelerar, costumava deixar todas as
preocupações de lado. Não trocava as emoções do cockpit por nada da vida. Em
mais alguns segundos, ele se entregaria de novo à aventura que tinha começado
aos quatro anos de idade, ao soar de um motor de picadeira de cana, com três
cavalos de potência.
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