Ayrton Senna e Chico Senna
O primeiro teste do “Quick man”
Neste, como nos demais 1º de maio, é impossível esquecer a partida de Ayrton Senna, no fatídico GP de San Marino de 1994. Lembro que na sexta-feira, bem antes dos treinos livres, ele me disse “temos que conversar”, exibindo a revista Playboy, na qual estava publicada uma entrevista que eu havia feito com ele, dois meses antes.
O papo ficou por aí, porque naquele mesmo instante Ralph Firman, dono da Van Diemen, veio cumprimentá-lo, e o Ayrton deu toda a atenção ao seu primeiro patrão no automobilismo europeu.
Contei a passagem ao Chico Serra, piloto de quem Senna fazia questão de dizer sempre que fora o único cara que lhe ajudou no início da carreira, na Inglaterra. Chico, então, me contou a curiosa história do primeiro contato da carreira de Ayrton com uma escuderia, na qual ele serviu de interprete e cujo relato reproduzo aqui, numa homenagem a ambos:
“Para falar do Ayrton Senna — inicia Chico Serra –, eu tenho de voltar ao tempo do kart e depois chegar a um jantar inesquecível na Inglaterra.
Quando o Ayrton começou no Juniors, a primeira categoria do kart, eu já era PC, piloto de competição, mas a passagem dele foi bem marcante para mim. Ele tinha um estilo diferente de guiar. Hoje admito que eu não aceitei o Ayrton muito bem. Eu era a vedete do kart na época e ele despontava como a nova estrela. Estávamos em categorias diferentes, mas de cara já pintou rivalidade entre nós. Meio de graça, mas aconteceu. Acho que eu via o meu trono ameaçado por aquele cara que pilotava o kart de lado em freadas e que conseguia guiar só com a mão esquerda. Na freada ele atravessava o kart e saía da curva com o motor com mais força.
Hoje o kart está mudado, os pilotos se limitam a guiar. Os mecânicos da fábrica é que fazem tudo. O moleque tem pouca participação na mecânica. Na minha época a gente metia a mão na graxa e partia para a Fórmula Ford sem traumas. O Ayrton era daquela escola e por isso eu tinha a certeza de que ele se daria muito bem quando chegasse aos Fórmulas.
Em 1977 eu estava feliz da vida. Tinha cortado as sete cabeças do bicho que diziam ser a Fórmula Ford inglesa, e ganhado um título que Emerson Fittipaldi conquistara dez anos antes. Fui campeão com recordes de voltas, de circuitos e com vitórias. Portanto, dono do trono inglês da Fórmula Ford e credenciado para indicar meu sucessor.
Por isso quando Ralph Firman, dono da Van Diemen e meu ex-patrão, perguntou-me se eu recomendaria alguém, não hesitei e, mesmo sem ter consultado o Ayrton, garanti que havia um piloto em condições de, no mínimo, repetir a nossa temporada.
— E quem é essa fera ? — perguntou o Ralph.
— É um brasileiro que corre de kart.
Depois daquela recomendação, cada vez que o Ralph me encontrava me perguntava pelo “quick man”, como ele passou a chamar o Ayrton.
Em 1979, quando ganhei o campeonato de Fórmula 3 para a equipe de Ron Dennis, Ayrton Senna estava em Silverstone assistindo à prova. Eu falei para ele do interesse da Van Diemen, mas transferimos o papo para o Brasil.
— Vai lá e experimenta a porra do caro — insisti. Se gostar gostou, se não pelo menos você tira o tesão.
Ayrton não queria admitir, mas o pai não fazia muito gosto naquela aventura. Passou algum tempo e um belo dia o Ayrton me telefonou. Estava indo para a Inglaterra e pedia que eu mediasse o seu encontro com a Van Diemen.
Liguei para o Ralph Firman e avisei que o quick man estava a caminho. Assim que Ayrton chegou, nós viajamos para Norwich, onde fica a sede da Van Diemen, já com um jantar marcado. Como o Ayrton ainda não falava bem o inglês, servi de intérprete.
Eu estava feliz com a decisão do Ayrton de competir na Europa, mas, na verdade, minha preocupação maior era ajudar Raph Firman. Fizemos uma amizade muito forte quando fui seu piloto e achei que lhe apresentar o Ayrton era uma forma de retribuir a atenção. Afinal, eu tinha a certeza de que ele iria ganhar corrida pra cacete. O que nunca imaginei foi traduzir um diálogo maluco como aquele entre os dois.
Primeiro falou o Ralph:
— O contrato entre a fábrica e os pilotos é mais ou menos padrão. Nós assinamos um contrato pelo qual você disputa o campeonato inglês, que é de 20 corridas, tem direito a 15 treinos, e você paga tanto por esse acordo.
O Ayrton olhou para ele e me disse:
— Diga que eu quero mais corridas.
E eu disse ao Ralf:
— Ele quer fazer mais corridas.
— Tá bom então faremos 30 — respondeu Firman.
— Agora diga a ele que eu quero fazer 35 treinos — insistiu Ayrton.
Ralph fazia sinal de ok, mas avisou que o preço então subiria para mais tanto.
— Não — rebateu Ayrton. — Traduz para ele que eu quero pagar o pacote normal, que é o dinheiro que tenho.
O Ayrton ia pedindo, pedindo, eu traduzia, mas já estava a fim de sumir embaixo da mesa de vergonha quando o Ralph olhou bem nos olhos do Ayrton, largou a tigela de sobremesa, virou-se para mim e, pouco britânico, perguntou:
— Porra, Chico! Quem ele pensa que é?
Eu, que já estava louco pra rir, falei:
— É o quick man.
Eles acabaram se acertando e eu fiquei feliz. Mas até hoje me lembro daquele encontro com detalhes e ainda dou boas gargalhadas. Como eu previ, o Ayrton fez aquele sucesso. Pulverizou todos os recordes. Bateu a minha marca e a do Jackie Stewart, antigo deus da Fórmula Ford.
Depois daquele acerto, a gente ficou mais amigos, respirávamos automobilismo em tempo integral. Houve época em que o Ayrton passou temporadas na nossa casa em Reading, perto de Londres.
Quando ele foi para a Fórmula 3, me convidou para ir ver o novo carro na oficina do Dick Bennetts, seu novo chefe de equipe. A barata estava pronta e ele, mesmo dissimulando, estava faceiro. Tinham acabado de colocar o adesivo ‘Ayrton da Silva’ no cockpit.
Achei o carro lindo, mas assim mesmo arrisquei um palpite:
— O ‘da Silva’ não vai dar certo.
Ayrton surpreendeu-se e eu fui em frente:
— Não consigo imaginar um campeão do mundo chamado da Silva.
— Campeão do mundo?
O Ayrton engoliu em seco e repetiu pra si mesmo:
— Campeão do mundo…
Eu insisti:
— Use ‘Senna’. É menos comum e mais sonoro.
E dali em diante ficou Senna. Demorou um pouco para ser assimilado, afinal o ‘da Silva’ já era conhecido. Depois eu tremi, ao lembrar que o Miltão, o pai do Ayrton, podia não gostar da história se soubesse que fui eu quem tinha sugerido a troca
Em 1982, eu já competia na Fórmula 1 pela Ligier e voltei a Norwich para jantar com o Ralph Firman. Então fiz questão de lembrar o primeiro encontro dele com o Ayrton naquele mesmo pequeno restaurante. Na despedida, Ralph bateu no meu ombro e murmurou no meu ouvido:
— Você conhece um outro quick man, Chico?”
Francisco “Chico” Serra
Piloto de F1, com 18 Gps
Campeão de Kart brasileiro
Campeão de Stock Cars
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