Senna e Piquet
Este é um tema amargo que
chega a escapar do escopo automobilístico e entrar no sociológico.
Concordo que tentar levar um assunto lúdico como uma rivalidade besta de dois
pilotos de corrida para um campo mais intelectual e sério é inútil e patético,
mas o Bandeira Verde é isso mesmo. Um lugar aonde um assunto banal como
automobilismo pode ser levado à filosofia mais barata.
Vamos aos fatos mais puros e
crus. Ayrton Senna, tricampeão de Fórmula 1 nascido no Brasil, é reverenciado
até os dias atuais como o maior ídolo esportivo da história do país ao
lado de Pelé tanto aqui em
Terra Brasilis como no exterior. Nelson Piquet, tão
tricampeão e tão brasileiro como Senna, é simplesmente esquecido pela mídia
não- especializada (às vezes, até mesmo pela especializada) e pelo povão.
Quando alguma alma pia se recorda do “outro tricampeão”, é por algum aspecto
negativo. “O Piquet é invejoso”. “O Senna é muito melhor do que ele”. “O Piquet
é arrogante”.
Por quê?
Primeiramente, deixo claro
algumas coisas. Acho Ayrton Senna um piloto claramente superior a Nelson
Piquet, embora prefira este último por afinidade intelectual e comportamental.
É minha opinião e ponto final. Não vou me ater também a casuísmos cretinos como
“a mídia manipuladora”, pois são coisas de discussão de aluno de ensino médio.
O fenômeno é mais interessante e mais complexo do que isso. Dito o que havia
para ser dito, vamos lá. O texto é longo, chato pra caralho e quem gosta de
discussões sobre motores e pistas deve parar por aqui.
A história dos dois começa
nos anos 70. E começa de maneiras bastante diferentes. Nelson Piquet Souto Maior,
filho de Estácio Souto Maior, ministro da saúde do governo João Goulart,
iniciou no automobilismo literalmente contra a vontade do pai. Apesar da
família rica, Piquet teve de ralar um bocado e sua ascensão se deu por meio da
ajuda de amigos brasilienses. Os patrocinadores até existiam, mas não eram
numerosos. Na Europa, Piquet morava em motorhomes e vivia de sanduíches. Não
por acaso, seu esquema de assessoria de imprensa era basicamente nulo. A única
coisa que segurava o piloto no Velho Continente era seu talento e sua vontade
de chegar à Fórmula 1.
E as desavenças com os
jornalistas começaram a partir daí. Nelson Piquet disputava
campeonatos de Fórmula 3 no mesmo período que outro brasileiro, Chico Serra.
Como Serra tinha mais patrocinadores, dinheiro e conselheiros ao redor, ele
podia pagar para que jornalistas, principalmente os paulistas, registrassem
seus feitos nas publicações brasileiras. Nelson não podia dispor desse
artifício. O mais engraçado é que os resultados de Piquet chamavam muito mais a
atenção, mas mesmo assim a mídia insistia em destacar Serra. Era
comum ler uma manchete como “Serra chega em 6º na F3″ em uma corrida vencida
por Nelson Piquet. Não havia como Piquet ter uma boa relação com a mídia, tanto
que nos seus primeiros anos na Fórmula 1, ele sempre respondia a um pedido de
entrevista com um “vai me pagar quanto?”. Não acreditam? As informações acima
foram retiradas do site oficial do autódromo de Interlagos.
Ayrton Senna iniciou de
maneira muito diferente. Sensação do kart setentista, Senna tinha em seu pai,
Milton da Silva, seu maior apoiador no início da carreira. Dinheiro não era
problema para a família Senna, dona de propriedades. Desde cedo, Milton se
preocupou em fazer a melhor assessoria possível ao filho. Para isso,
desenvolveu um bom relacionamento com a mídia paulista, sempre pagando por
espaços nos periódicos e publicando press releases sobre as
excepcionais performances do seu filho. Ainda no kart, Senna já desenvolvia uma
certa fama.
Sua ascensão para o
automobilismo europeu foi festejada. Jornais e revistas como a Quatro Rodas
deram toda a atenção ao piloto paulista desde sua incursão à Fórmula Ford 1600. A badalação
se tornou ainda maior a partir de 1983, quando Senna subiu para a Fórmula 3
inglesa. Os patrocinadores corriam atrás de Ayrton, e ele se deu ao luxo de
escolher os Jeans Pool e o Banerj. A Globo acompanhou seu primeiro dia de
testes na Fórmula 1 com o carro da Williams em Donington e chegou ao ponto de
transmitir, ao vivo e na íntegra, uma das etapas de Silverstone na Fórmula 3
inglesa. Com direito à narração de Galvão Bueno e comentários de Reginaldo
Leme!
Senna e a bandeira. Os
brasileiros gostavam
Ou seja, a tese do
relacionamento com a mídia existe. Mas não é só isso. Quando Piquet estreou na
Fórmula 1, a
Globo cobria as corridas precariamente. Emerson Fittipaldi sofria com o
Copersucar e a audiência das corridas andava tão baixa que a emissora chegou a
deixar de transmitir as corridas em 1980. Com a boa performance de Piquet nesse
mesmo ano, a emissora carioca voltou a transmitir em 1981. O bicampeonato
de Nelson potencializou a febre do automobilismo no país. Quando todos viram
que havia um outro piloto, o tal do Senna, chegando ao topo, o êxtase foi
grande. Dá pra dizer, também, que Senna estreou na Fórmula 1 quando ela já era
uma febre no país. Piquet, nem tanto.
Deixamos a mídia e vamos para
o psicológico dos pilotos. Ayrton Senna é a expressão perfeita do self
made man. Como? Sendo breve, é o indivíduo que obtém sucesso na vida por meios
próprios e sem a ajuda de ninguém. É claro que quem conhece bem sua carreira
nunca se atreveria a caracterizá-lo deste modo, mas a imagem que Senna passa é
essa. Senna também tinha outras características que agradavam ao público:
torcia para um time das massas, o Corinthians, era católico e avesso à
política. Mesmo sua aparência física era a de um cidadão normal: pessoa branca,
de estatura média e orelha proeminente como imperfeição. Não se destacava pela
beleza ou pela feiura. Era um cara simplesmente normal, até mesmo no sobrenome
Silva. E é isso que o povo gosta de ver: um cara normal
que consegue chegar lá.
Nelson Piquet é o contrário.
Desde sempre, cultiva uma aparência de bon vivanttransviado e descuidado.
Como era filho de um ministro e estudante da UnB, nunca mostrou ter uma vida
exatamente normal. Na Fórmula 1, sempre aparecia com mulheres bonitas em iates. Nunca se
caracterizou pela simpatia modesta e latina, mas por um elitismo irônico e
pernóstico à la James
Hunt. O brasileiro não se sentia identificado com a vida
hedonista de Piquet. Chega a ser engraçado que o self made mantenha tido
menos percalços no início de carreira que o playboy, mas é essa a imagem que
todos têm. Para o brasileiro, Senna é o cara que começou do nada e obteve tudo.
Piquet é o cara que nasceu em berço de ouro e é invejoso por não
obtido as coisas como Senna.
As atitudes, é lógico, contam
um bocado. Senna era um cara de fala pausada e tranquila. Seu discurso
geralmente transmitia aquele otimismo que sugeriria que, sim, dias melhores
virão. O ato de carregar a bandeira brasileira nas corridas e de chorar na
frente da TV sugeria um amor épico à vitória e ao Brasil. Piquet é o
oposto. Sempre sarcástico, e muitas vezes desnecessariamente agressivo, Nelson
é um cara de discurdo absolutamente impolido e despretensioso. Até mesmo sua
dicção, arrastada e remetente à antiga juventude carioca, não transmitia tanta credibilidade.
As declarações sardônicas poderiam agradar a um inglês, mas nunca ao brasileiro
médio, conservador, politicamente correto e não tão adepto à ironia. Não por
acaso, a rivalidade entre os dois começou quando Senna declarou que
“tinha sumido da mídia para dar espaço a Piquet”, mas muitos pensam
que começou com Piquet e sua famosa insinuação sobre a homossexualidade de
Ayrton, uma réplica agressiva à frase dele.
Por fim, a maneira como o
sucesso foi obtido por cada um deles. Nos seus três títulos, Piquet nunca
obteve mais do que três vitórias em cada temporada. Suas poles não foram
transmitidas para o Brasil. O maior trunfo de Nelson não era mostrado na TV:
sua extrema inteligência e sua capacidade ímpar de entender e acertar um carro,
resquício dos tempos de mecânico. As corridas dele eram mais meticulosas e
espertas do que exatamente fenomenais. Já Senna era o showman: fazia poles nos
últimos instantes dos treinos, ganhava muitas corridas em um mesmo ano, fazia
ultrapassagens, voava na chuva e levava um carro problemático de uma maneira
que lembrava Gilles Villeneuve. É evidente que um estilo arrojado cativa muito
mais do que um inteligente. E aí está o trunfo de Senna não só no Brasil mas
também no mundo. Aqui também morre aquela idéia que “só no Brasil que Senna é
mais valorizado”.
O auge de Senna ocorreu em um
período particularmente conturbado da história brasileira. O país voltava à
democracia e passava por um período turbulento na economia, com hiperinflação e
planos econômicos heterodoxos inúteis e destrutivos. Até mesmo o futebol
passava por uma fase ruim. A auto-estima do brasileiro andava baixíssima e um
ídolo que mostrasse que o Brasil não era apenas o país da banana e da moratória
era tudo o que todos desejavam. A Fórmula 1 era a única coisa que alegrava os
brasileiros. E o período de Senna foi bem mais complicado que o de Piquet, cujo
auge concorreu com assuntos igualmente otimistas como a abertura democrática.
O texto ficou grande e
preciso parar por aqui. Apenas resumo que Senna é o cara normal que tinha tudo
para ser ídolo, que sabia disso e que abraçou a causa com vontade. Um ídolo com
direito a vilões, e aconteceu de Piquet, o típico antiherói que não tinha a
menor vontade de agradar ninguém, ser eleito um deles. Parece coisa de HQ, mas
é assim que funciona.
FONTE
Bandeira Verde
Posted by Verde
under Pitacos
Data: 05/05/2010