SENNA COM EDGARD MELLO FILHO,
1994
Ayrton Senna, em relato com
Edgard Mello Filho, na pista de Interlagos, em 1994, sobre o GP do Brasil.
Leitura longa mas interessante.
Esse é um texto sobre a
experiencia do Ex-piloto e comentarista Edgard Mello Filho, andando em
interlagos com o Ayrton Senna.
Estava na minha sala no autódromo quando o celular tocou. Era o chefe. "Tudo bem aí?" "Tudo, chefe, o que manda?" "Seguinte, preciso ver algumas coisas aí. Preciso dar uma olhada porque o belga (Roland Bruynseraede, o Charlie Whiting da época) vai chiar, vai ter que mexer no Berger e no Mergulho." "Você vem com o Esquilo e vamos dar uma volta com a Onça." Onça era um Opalão quatro cilindros, preto, quatro portas. Um coitado. Ele estava caindo de podre e graças ao querido amigo Paulo Taliba consegui pegar o carro para o autódromo num rolo inacreditável entre departamentos. E acredite se quiser: o chefe se divertia muito guiando a Onça. Uma vez, duas ou três semanas antes do GP do Brasil de 1994, ele me ligou e disse: "Vou aí dar uma repassada nas obras, faz o shakedown do Onça". O shakedown era colocar42
libras nos pneus dianteiros e 39 nos traseiros (aliás,
as únicas coisas novas do carro, presente dos bons amigos da Pirelli, quatro
radiais 185 nos trinques), além de checar o arame da porta dianteira direita
para ver se estava firme sem ataques de ferrugem. Ele ria muito e nos
divertíamos, principalmente quando eu, para dar um tempero, imitava o locutor
da TV e narrava as voltas contra um imaginário piloto de pequena estatura e
nariz enorme, docemente apelidado de "Narizinho". E um grande urso
inglês chamado "Roaaarrr", com suas luvas uma de cada cor, vermelha
na mão direita e azul na mão esquerda. Um canhão, rapidíssimo. Daqueles tipos
que você acabava até gostando. A gozação em cima de "Roaarr" é que
demorava um pouco para cair a ficha dele. Deixei a Onça pronta, mas aquele dia
seria especial. Ele chegou por volta das 17h20, com uma Perua Audi S2. X-tudo.
Turbo, cinco cilindros, jogada no chão, aquelas rodas absurdas. Aquele barulho
metálico ardido de motor bravo (as BMWs também têm esse barulho característico
de isca, pega). Sentei no lado direito, passei o cinto e já cutuquei:
"Isso aqui anda ou é para ir à missa?" "Por quê?"
"Nada, só estou perguntando." Entramos pelo portão de cima mesmo e
viramos à direita, rumo ao "S" com o nome dele. No começo da descida,
paramos. Ele ficou olhando para a brita. Não perdi a viagem: "Está
lembrando do esparramo que o teu parceiro made in USA (Andrettinho) fez na
largada do GP desse ano, aqui?" "Isso acontece", desconversou.
Na saída da segunda perna, ele contou: "Aqui foi a primeira vez que a luz
de pressão de óleo acendeu no final do GP do Brasil. Eu vi de relance e fiquei
imaginando se não tinha sido impressão. Me preparei para olhar na outra volta e
a tensão aumentou porque eu estava controlando o Damon e o alemão que vinham
atrás. Eu estava muito ligado neles porque o Damon usava aquele carro de outro
planeta e o alemão tinha aqueles cavalinhos a mais que o meu motor, por estar
usando uma série à frente". Perguntei, seco: "Não tem jeito de mexer
neste contrato da Benetton com a Ford?". A resposta foi meio desanimadora:
"O Ron está tentando, mas não vai ser fácil, o Flavio (Briatore) está
marcando em cima". Foi a deixa para matar a curiosidade: "Além da
distribuição pneumática, tem mais alguma coisa na usina, não tem?",
perguntei. A confirmação veio, como sempre, discreta: "É, tem algumas
coisinhas". Emendei para não perder o momento: "Quantos cavalinhos o
motor do alemão tem a mais que o teu?" Ele, como sempre modesto, respondeu:
"Um pouco". Cheguei junto, agora é a hora: "Um pouco quanto? Uns
90 hp?". Estava difícil tirar informação do homem. "Não, menos",
falou. Resolvi forçar mais um pouco, já perto do limite: "70? Fala
aí!" Ele manteve a guarda alta: "Não sei". Agora vou cutucar
para tirar o cidadão do sério e arriscar o meu pescoço: "Senhoras e
senhores, estamos entrevistando um piloto de F-1 que não sabe quantos cavalos
tem o seu motor, é espantoso!" Foi o tempo de encolher o pescoço e
levantar os ombros. O que veio a seguir foi em três idiomas: português, inglês
e sou capaz de jurar que alguma coisa em japonês:
"Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii" (censurado). Ficou piiiiiiiiii da vida.
Senti que poderia ser o momento e mandei uma paralela: "Não apela, vou
chutar 40 a
45 burritos a mais". Silêncio, deu até para ouvir um pouquinho do CD do
Phill Collins. Armou um bico e completou com um muxoxo: "Hummm, por
aí". Precisei dar uma descontraída no ambiente: "Respeitável público,
além de perder o lugar para o anão na Williams, ainda guia corrida a corrida
com 40 cavalitos a menos no motor!" A seguir, momentos de uma leve
baixaria e muita risada. Quando estávamos no final da Descida do Lago, já
apontado para a subida do Laranjinha, o chefe veio com mais uma: "Essa
saída do Lago me preocupa, se der uma escapada em pêndulo, com chicotada ao
contrário, vai bater feio, precisava dar um jeito de mexer aqui". Rebati:
"Já pedi para os engenheiros da Emurb darem uma olhada no que é que dá
para fazer. Aqui tem um complicômetro, chefia: a confluência dos lagos. A única
saída de emergência é colocar o guard-rail mais próximo da pista para não
deixar ganhar velocidade na hora que esparramar. O problema, chefe, é a hora
que der uma pregada bem caprichada do lado esquerdo. A lâmina vai devolver e o
"elemento" vai cruzar a pista de volta para o lado direito. Precisa
ver se não pega ninguém, nenhum anu errante no contrapé da biaba". Ele me
deu uma olhada, armou uma risada de canto de boca, e conferiu: "Elemento,
anu errante, contrapé da biaba?" Devolvi bem curta: "Chefia, você
entendeu, não estica". Quando chegamos ao cotovelo - ou Bico de Pato -,
ele comentou: "Aqui acendeu de novo a luz da pressão e desta vez eu vi e
envelheci. Só me faltava esta, estava no final da prova. Na África do Sul devia
ter chovido 15 voltas antes, e aqui, essa?! Ainda bem que o motor, que já tinha
dado umas amarradas nas voltas atrás do safety-car, aguentou, já estava uma
barra e agora a FIA ainda me penalizando não sei até agora por que. Fiquei um
tempão atrás do Erik (Comas, que foi o rei do ventilador no GP, pois arrumou
time pênalti para todo mundo) e, quando ele tirou o pé e me mandou passar, os
caras me deram o pênalti". (N.R.: túnel do tempo, forward: Montoya, tá
vendo como é coisa antiga? Aposto que são os mesmos daquela época. Aliás, para
mim esta turminha já vem daquele escândalo do Japão. Túnel do tempo, rewind.)
Subimos a Junção e, no final do Café, ele diminuiu. Levou a X-tudo para o lado
direito, deu uma provocada para o lado esquerdo e chamou o freio de mão.
Currupeio perfeito. Viramos 180º e já estávamos voltando para o Café, iniciando
a descida para Junção. Pensei: acho que é agora, vou atiçar. "Respeitável
público, no espetáculo de hoje teremos Don Becon e sua peruazinha",
brinquei. Peruazinha foi a palavra mágica. Cutuquei a fera com vara curtíssima.
"Você vai ver o que isso anda". Infernizei: "É bom mesmo, porque
os caras da BMW estiveram aqui na semana passada e eu executei uma M3. Achei
que anda muito, por isso estou achando isso aqui meio lerdo". Aí o homem
pegou no breu: "Então vamos ver quanto vira nesta pista ao contrário, você
tem idéia?", perguntou. Pensei comigo: "Consegui incendiar a
fera..." Completei jogando mais um pouco de gasolina: "Não sei, mas
vou abrir o relógio e navegar. Atenção, Siviero para Biasion, Junção à direita,
freada forte e quarta, pé embaixo". A partir deste momento foi só pintura.
Adrenalina pura, movimentos precisos, derrapagens controladas, controle
absoluto, um conjunto de ordens e contra-ordens que a S2 obedecia docilmente,
como que sabendo quem manda, quem é o dono. O carro não ia para onde queria, e
sim para onde "ele" queria e colocava. O cheiro de borracha queimada
já era forte dentro do habitáculo. Começando a subir o Mergulho, mandei:
"Pironnen para Kankkunen, direita de alta, quarta, pé embaixo".
Quando ia avisar do Bico de Pato, o cotovelo tinha chegado. O problema é que
saímos meio atravessados para o lado contrário da curva que era para a esquerda
(nós estávamos andando ao contrário). Nos últimos metros antes de passar do
ponto e com um improviso espírita, ele "inventou" um pêndulo que,
sinceramente, não sei onde ele foi buscar. Absurdo, já todo torto, ele deu uma
provocadinha e a barata entrou na dele, ameaçou voltar, eu só ouvi ele dizer:
"Te peguei!". A partir daí foi mais ou menos assim. Na pequena balançada
da direita para a esquerda, ele percebeu antes e pendurou nos alicates (ABS). O
barulho lá embaixo na frente era característico: "Cram... Cram...
Cram..." Tradução: não vai travar. Quando a frente ameaçou entrar, ou
melhor, quando a traseira ameaçou soltar, eu só ouvi um
"rrrrrrrrrrrrrrrriiiiiippp". Freio de mão puxado, ni qui travou o
eixo lá atrás, foi-se a traseira. Quando ela foi, assinou a sentença de
execução do carro. O torpedo como um todo começou a contornar, girando sobre um
eixo imaginário bem no meio do carro, fazendo uma meia lua, até chegar perto da
metade da entrada do Bico de Pato. Não sei se vocês estão percebendo a magia da
manobra. Até aí, ele só vinha trabalhando com forças atuantes, sistema de freio
em sequências de derrapagens controladas. Naquela sucessão de manobras, ele já
vinha com a mão direita selecionando uma marcha adequada para a saída. A curva
que era para ter passado, não passou. Nós estávamos dentro dela, quase
apontados para a saída, com a marcha ideal selecionada e a plataforma motriz em
stand-by esperando a vez dela. Chegou. Lembro que bati os olhos no velocímetro
estávamos entre 95 e 105
km/h . Aquele era o ponto. O pé direito dele foi junto
com o meu berro: "Dá-lhe gás!". Naquele momento eu relembrei a ira
dos deuses enfurecidos e a brutal potência da usina turbocomprimida da casa de
Ingolstadt. Absurdo, absurdo, eu não conseguia definir se era castigo do céu ou
coice de mula: com as costas coladas no banco, via a S2 seguir uma trajetória
muito bem definida a caminho do Pinheirinho. Sem deixar cair a peteca, emendei:
"Kivimavi para Allen, terceira marcha cravado sem tirar o pé". Mas
sempre tem um mas. Quando ele apontou puxando para a direita, o foguete
empurrou um pouquinho à frente, ameaçando alargar a trajetória. Junto com a
tentativa de reação, ele imediatamente telegrafou o acelerador, fazendo a
traseira escorregar e ficar mais ou menos a uns 15º apontada para o lado de
dentro da curva. Era tudo o que ele queria para chamar potência no acelerador.
Fizemos o Pinheirinho e o "S" (antigo) em dois pêndulos. Quando
chegamos perto da zebra saindo do "S" e a caminho do Laranjinha (só
relembrando que estamos andando ao contrário na pista), comentei: "Nossa o
que é no chão esse torpedo! O que fala essa usina e uma estupidez!". Ele
completou "Você vai ver nas de alta". Ao ouvir aquilo fiz uma
reflexão: "Senhor, vou testemunhar a verdade, vou conhecer de perto o
toque divino de um dos eleitos". O motor urrando, o turbo descarregando, a
velocidade crescendo, o Laranjinha, a Subida do Lago velocíssima com freada
forte para a segunda perna na entrada da reta a caminho do Berger. Todo o
Berger à direita (nós estamos andando ao contrário). O pêndulo veloz
direita-esquerda para subir o "S" dele. E mais, a encardida chegada
da Junção morro abaixo, quinta a pleno. Não teria como descrever para vocês,
não encontraria palavras. São sensações que você sente quando por exemplo entra
num Louvre e descobre nomes como Leonardo da Vinci, Raffaello, Sanzio,
Michelangelo, Merisi, Rembrandt, Harmensz. Ou quando ouve Antonio Vivaldi,
Franz Schubert, Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig von Beethoven, Johann Sebastian
Bach ou mesmo uma "Rhapsody in Blue", de Gershwin. Quando você
percebe que está com alguém que faz parte desta lista dos "eleitos",
como os citados acima, você se sente especial. Você vive um pequeno momento
especial, que você vai levar para o resto da sua vida sem esquecer um detalhe.
Poesia ou não, sempre tive a impressão que Deus manda uns caras aqui na Terra
para mostrar como Ele faz as coisas. Mas, Edgard, não dá para contar? Desculpe,
não dá. Eu não tenho como descrever reações, comportamentos, atitudes,
antecipações, acima de 200
km/h . Você simplesmente fica olhando sem querer perder
nada. É isso. Não dá para contar, é uma coisa sua, como foi de Gagarin,
Carpenter, Armstrong e Buz Aldrin. Como você quer ver tudo e não perder nada,
alguma coisa você registra. O resto, você absorve. Acho que demos umas oito
voltas, depois da terceira virou rotina, conversamos, demos risada, eu xinguei a
FIA (para variar)... O cheiro de borracha queimada não parou, nem diminuiu, nós
é que acostumamos com ele. Lá pela sexta volta perguntei sobre Donington a
resposta você já sabe. A "peruazinha" S2, um demônio, serve até para
ir à feira, mas não leva desaforo para casa. Aquele motor não tem cavalos, tem
búfalos enlouquecidos que, quando provocados, fazem desabar uma tormenta. Perto
do portão de saída, falei: "Me deixa aqui, vou andando até a minha sala.
Falou, até mais, chefia". Preocupado, me pediu: "Qualquer coisa, me
liga. Se chegar algum pedido da FIA, me passa por fax". Para não perder o
costume, provoquei na saída: "Fica frio. Da próxima vez, vem com um A8, tá
bom?" Ele deu uma gargalhada e se perdeu no transito da Teotônio Vilela.
Fico imaginando que, para quem pudesse andar com Jim Clark, Ronnie Peterson,
Gilles Villeneuve, Jackie Stewart, Nelson Piquet e Michael Schumacher, a
sensação deveria ser a mesma. Só sei que, lá pelas tantas, em casa, já na
madrugada, olhei para o relógio e vi que o cronômetro ainda estava funcionando.
Eu tinha esquecido de parar aquela volta que fiquei de marcar. Naquele momento,
1h30 da manhã, descobri que oito horas atrás eu tinha vivido uma aventura que
ficaria na minha lembrança para o resto dos meus dias. Simplesmente ela se
juntava a outras como o meu primeiro DKW de corrida, a minha primeira vitória
com o Opala, a vitória nos "1000 Km de Brasília", a vitória nas
"12 de Goiânia", a vitória no "Troféu José Carlos Pace" em
Brasília, meu primeiro Campeonato Brasileiro de D3, o segundo, meu primeiro vôo
num PA18 (todo mundo chamava de teco-teco). Lembranças, memories, coisas que
você não esquece mais. Não sei se isso ajudou, mas por essa e outras
experiências eu não tive nenhuma dúvida em ir para a frente das câmeras da TV
Manchete naquele maio maldito e ficar berrando, durante oito ou nove horas, que
podiam esconder todas as fitas que quisessem, mas ele não tinha errado. Alguma
coisa tinha quebrado ou acontecido. Está bem, não discuto, tinha chegado a hora
dele, ninguém foge dos desígnios de Deus. Mas ele foi de pé, como um grande
campeão. Reduziu três marchas e freou. Quer mais consciência do que isso de uma
situação de emergência? Os números podem falar o que for, pouco me importa. Eu
sou feito de emoção. Nasci, vivi e vou morrer assim. A vida sem adrenalina
simplesmente não tem graça. Jamais vou separar a emoção do coração. Por isso,
onde você estiver: — ACELERA, AYRTON. ACELERA, CAMPEÃO!
Ler mais: http://autosport.pt/senna-com-edgard-mello-filho-1994=f75693#ixzz2bNAgbh8I
Estava na minha sala no autódromo quando o celular tocou. Era o chefe. "Tudo bem aí?" "Tudo, chefe, o que manda?" "Seguinte, preciso ver algumas coisas aí. Preciso dar uma olhada porque o belga (Roland Bruynseraede, o Charlie Whiting da época) vai chiar, vai ter que mexer no Berger e no Mergulho." "Você vem com o Esquilo e vamos dar uma volta com a Onça." Onça era um Opalão quatro cilindros, preto, quatro portas. Um coitado. Ele estava caindo de podre e graças ao querido amigo Paulo Taliba consegui pegar o carro para o autódromo num rolo inacreditável entre departamentos. E acredite se quiser: o chefe se divertia muito guiando a Onça. Uma vez, duas ou três semanas antes do GP do Brasil de 1994, ele me ligou e disse: "Vou aí dar uma repassada nas obras, faz o shakedown do Onça". O shakedown era colocar
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Maravilhoso!!
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