Senna, o Mico
Por Alessandra Alves
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Data: 02/02/05
Eu trabalhava na Folha de S.
Paulo havia uns cinco meses. Tinha 21 anos e cursava o último semestre de
Jornalismo. Iniciante, portanto. Graças ao entusiasmo natural dos jovens em
começo de carreira, eu vibrava com qualquer pauta que me permitisse sair da redação
para apurar uma notícia. Isso porque meu cargo era de redatora, não de
repórter, mas meus editores habitualmente me escalavam para pautas externas, o
que me enchia de um orgulho ingênuo. Certo dia, minha missão parecia um sonho
para quem já adorava corridas: cobrir o embarque de Ayrton Senna em Cumbica.
Naquele tempo, a Folha tinha
uma linha editorial que preconizava a integração dos assuntos do jornal, fossem
eles os mais díspares entre si. O personagem que era destaque em uma área –
Esporte, por exemplo – era instigado pelos repórteres do jornal a opinar sobre
outro tema de relevância – Política, Economia, Cultura. Seria mais ou menos
como se, hoje, o repórter que cobre o Corinthians tivesse de perguntar ao
jogador Carlos Tevez o que ele acha da eleição para a presidência da Câmara dos
Deputados.
Muito cá entre nós, os
repórteres de Esportes sempre tiravam de letra tal recomendação das chefias.
Jogador de futebol normalmente responde a qualquer coisa – e sempre com as
mesmas frases – ou então concorda de imediato com sentenças mais elaboradas.
Era só fazer assim: “Fulano, você concorda que o Brasil pode entrar em uma
crise sem precedentes se o Congresso não votar pelo impeachment do presidente
Collor?”. E o Fulano: “É... evidentemente...”. Pronto: segundo Fulano, zagueiro
de tal time, o país pode entrar em uma crise sem precedente se blá-blá-blá...
Pois naquele meu dia de
sonho, no qual eu deveria cobrir o embarque de Senna para o Japão, rumo ao
tricampeonato, fui agraciada com uma missão desse tipo. Na reunião do meio-dia,
a secretária-assistente de redação recomendou que o repórter dessa pauta
perguntasse a Senna sua opinião sobre a visita do Papa ao Brasil e o fato de
ele não vir a São Paulo naquela vez. É claro que essa burocrata de redação não
tinha ideia do que eram os embarques de Senna, do tumulto em Cumbica, da
enxurrada de perguntas que o piloto recebia. E o meu lindo castelo começou a
desmoronar.
Passei no Tráfego – o setor
no qual nos destinavam um carro com motorista – já meio cabreira. Segui para
Cumbica bastante cismada. Cheguei ao aeroporto em pânico: como fazer uma
pergunta dessas para Senna, naquela circunstância, sem parecer ridícula? Não,
eu não ia pagar um mico daqueles na frente de toda a imprensa, isso eu sabia.
Cobri toda a coletiva, realizada em um reservado do aeroporto, sem me arriscar
na famigerada pergunta. Para falar a verdade, não perguntei nada, só escutei e
anotei.
Mas a pergunta, a secretária
de redação, meu editor, o Papa rondavam-me a consciência como um abutre espreita
a carniça. Na minha inocência de repórter iniciante, não me passava pela mente
a ideia mais óbvia: diga na redação que ele não quis responder a pergunta, sua
tonta! Não, a verdade, nada mais que a verdade. Besta!
Assim que a coletiva
terminou, coloquei em prática o único plano infalível que minha cabecinha
atormentada foi capaz de urdir: fui seguindo o piloto pelos corredores do
aeroporto, esperando uma oportunidade de chegar bem perto e tentar fazer a
pergunta. Em poucos segundos, havia uma multidão em torno do homem. Ele tentava
andar rápido, os seguranças tentavam conter a horda, a horda tentava conseguir
um autógrafo, e a repórter-noviça da Folha tentava fazer a pergunta idiota. No
estica-e-puxa do saguão, Senna conseguiu escapar, os seguranças lograram em
protegê-lo e até eu pude fazer a pergunta. O povo se ferrou, como sempre, todo
mundo sem autógrafo. E Senna disse-me o óbvio: “Não quero falar sobre o Papa”,
legitimando a mentira que eu não quis contar na redação desde o princípio.
Sem grandes novidades na
volta à redação, ao velho computador de tela preta e letras cor de laranja.
Escrevi a matéria, tudo encerrado. Até que, do outro lado do mundo, meu editor
à época, Mario Andrada e Silva, demoliu a última parede de tijolos do meu sonho
encantado. Mario já estava no Japão – ele cobriu aquela corrida – e telefonou à
redação depois o fechamento, para ver se estava tudo sob controle.
Quando soube que eu tinha
feito a coletiva de Senna, quis falar comigo. Breve explicação: tive a sorte
de, no início da profissão, tornar-me uma espécie de pupila de um triunvirato
de respeito, formado por Mario, Flavio Gomes e pelo comentarista Edgar Mello
Filho, amigos que se tornaram verdadeiros tutores. Do Japão, Mario queria ouvir
meu relatório. Falei sobre os assuntos mornos da coletiva, Mario parecia
satisfeito até que a burra aqui resolveu contar o episódio da pergunta papal. À
simples menção de tal delírio, antes que eu concluísse o pastelão, Mario
atirou: “Você não perguntou isso, perguntou?”
Eu disse que sim, e antes que
explicasse a circunstância, Mario passou-me um sabão via Embratel que borbulha
nos meus ouvidos até hoje, dizendo que eu iria ficar com fama de idiota perante
os outros repórteres e até Senna seria capaz, a partir dali, de me identificar
como “a repórter do Papa”. Senna, naturalmente, não seria capaz de lembrar da
minha fisionomia, dada a muvuca total em torno dele, mas nem tive ânimo para
contestar o chefe. Até porque chefe não se contesta, apenas se obedece.
E eu fui para casa arrasada.
Lembrem-se de um detalhe importante: eu era novata no meio, pouca gente me
conhecia. Se fosse um pouco mais manjada entre repórteres e fotógrafos de
Esportes, não teria vivido o mico final, que aconteceu no dia seguinte. De
cabeça inchada como se tivesse tomado uma goleada do Palmeiras, fui despertada
pelo telefone: era uma amiga da família, que toda orgulhosa ligava para dar os
parabéns à minha mãe. Motivo da comemoração: na primeira página do caderno de
Esportes do Estadão, Senna aparecia atordoado no meio de um monte de gente. Do
seu lado direito, a repórter da Folha, com a melhor cara de pastel que poderia
fazer uma jovem jornalista em pânico.
FONTE PESQUISADA
ALVES, Alessandra. Senna, o Mico e o homem
de Pau Grande. Disponível em: <http://www.gptotal.com.br/panda/cartas1q_02_05.htm>.
Acesso em: 18 de maio 2015.
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