sábado, 20 de junho de 2015

Ayrton Senna e o Zelo Com Sua Amada

Trecho extraído do livro “Caminho das Borboletas” de Adriane Galisteu


A Adriane Galisteu modelo, profissional da beleza, andava meio avoada, esquecia os compromissos, a cabeça no ar. Tomava grandes broncas da Ina, diretora da Elite [agência de modelos] e grande amiga. Mas eu não deixava de ter meus lampejos de responsabilidade. O comercial do Halls tinha saído: cinco dias no Caribe, embarque já naquela terça-feira, 20 de abril, dois dias depois do meu aniversário. Sabe como faz um namorado típico? Ele pergunta: como é o  filme? Quem vai com você? Onde vão ficar todos? Pois é: o Béco perguntou, igualzinho. E decretou:

- Levo você no aeroporto. Odeio aeroporto, mas vou com você.

Não queria deixar dúvida. Não tinha mais o menor receio em se expor numa situação daquelas. E imaginem vocês a cena de um atleta consagrado mundialmente, reconhecido  e saudado por uma a uma das pessoas ali no saguão de Cumbica, carregando pessoalmente a mala da mocinha ao lado. Dirigiu-se ao balcão da companhia e fez o check in, diante do olhar embevecido dos funcionários.

Mas um deles estranhou:

- Aruba? O vôo só sai daqui à uma da manhã.

A booker da Elite tinha me falado dez horas. Outra coisa não combinava: era um vôo da Transbrasil, tinham me informado. O balcão da Transbrasil desconhecia qualquer vôo para Aruba. Béco era descoladíssimo em situações enroladas: despachou a mala e propôs um jantar de despedida. Chamou um táxi e, para pasmo do motorista, perguntou se ele conhecia um restaurante simpático ali por perto. O pasmo do motorista não era nada diante da reação do dono do restaurante e da mulher dele. Não era possível acreditar que, àquela hora da noite, numa insossa terça-feira, sem aviso e sem fanfarras, alojasse ali numa de suas mesinhas de madeira e toalhas quadriculadas, o legendário campeão.

Ele adora essas situações. É como se se visse de novo, menino da Vila Maria, sonhando com o magnânimo filé com batata frita do boteco da esquina. Fizemos nosso pedido: filé com batata frita. Mesmo descontando a circunstância, o puro encanto que envolvia aquele encontro romântico num cantinho obscuro de Guarulhos, juro que foi dos melhores que eu comi na vida.

Voltamos sem pressa, mas o alto-falante do aeroporto estava ligeiramente histérico:

- Atenção, senhorita Adriane Galisteu. A senhora está sendo aguardada no balcão da companhia... (Não me lembro bem, só sei que não era a Transbrasil.) Esta é  a última chamada.

Como naqueles filmes de aeroporto, um homem e uma mulher saíram em disparada até a outra ala. A equipe de filmagens, nervosa, arquitetava as mais maliciosas interpretações para nosso ingênuo atraso. Pura distração minha, típica daqueles dias de emoções nada brandas. Quem disse que era Aruba? Era: Bahamas.

Mas cadê a mala? Estará, a essa hora, a caminho de Aruba?

- Esquece a mala, que eu me viro - acalmou-me Ayrton, senhor da situação.

Novo check in, em velocidade de Fórmula l. Nova trombada: Bahamas com escala em Miami. Falta o visto de entrada nos Estados Unidos. O diretor do comercial se descabelou: meteu-se no tubo do avião, na base do "deu, deu, não deu, não deu". Mas, como aqueles reis que curavam tudo, Ayrton Senna me pôs no vôo e recomendou  à produtora, que, essa sim, ainda me esperara:

- Cuida dela, tá? Por mim.

Não teve um gesto de impaciência diante daquela namorada trapalhona. Demos um beijão amoroso e ele foi tragado pelo mundaréu que já se formava, indócil, em torno - implorando um toque no braço, um autógrafo para o filhinho, uma palavrinha de atenção em troca da invariável  introdução "desculpa, mas sou seu fã..." Ayrton Senna é um rapaz reservado, às vezes até "macambúzio" - era essa a expressão com que Nuno Cobra, seu treinador, pegava no seu pé. Mas, justiça se faça: eu jamais o vi economizar simpatia e gentileza com seus nem sempre recatados fãs. Por essas e por outras é que ele é um ser humano tão especial.

Fiquei de castigo no avião, na escala em Miami. Mas a chegada me impressionou. Bahamas é um lugar lindo, de águas cristalinas, pessoas charmosíssimas, hotéis deslumbrantes, como o Cristal Palace, em que nos hospedamos, e restaurantes divinos, como o Piccadilly, que virou nosso point. Mas estávamos ali a trabalho, não a passeio - e trabalho que exigia a mais infinita paciência. Subíamos num veleiro e saímos sacudindo pelo mar. Eu, escolada, prevendo o inevitável enjôo, sabia do truque de pregar um esparadrapo especial atrás da orelha. Mas faltava vento e passávamos horas à deriva. Não posso, porém, me queixar do resultado - o filme saiu deslumbrante.

Difícil foi, no domingo, descobrir uma televisão nas Bahamas que pegasse a corrida de Fórmula 1, a segunda da temporada européia - GP de San Marino, em Ímola (ah, a dor que esse nome me traz hoje, a vontade de riscá-lo do meu mapa). Nas Bahamas, só se quer saber de Fórmula Indy. Depois de muito peregrinar, instalei-me diante de uma parabólica, com a Piera e a Juliana Soares - que ficavam me atazanando:

- Tãtãtã... (O fundo musical da Globo.)

Ele não terminou a prova, como não terminaria a do ano seguinte. Até então, as nossas conversas sobre automobilismo eram igual a zero. Mas eu podia sentir o que ele  sentia. Disposta a lhe dar um consolo, liguei para a secretária dele, em São Paulo, e avisei que queria falar com ele. Era uma hora da manhã quando o telefone tocou. A Piera, que dormia comigo no quarto, atendeu:

- Alfredo? É você, Alfredo?

Pela resposta, ela deu um pulo da cama:  

- Ah, desculpa. É você, Ayrton?

E me passou o telefone:

- Mas que diabo de Alfredo é esse? - ele queria  saber, com aquele tom brincalhão de quem esconde um  ciumezinho.

- Alfredo? É o caseiro da Piera. Ela está esperando uma chamada.

Falamos uma hora e meia. Não disse uma palavra sobre a prova. Disse mil palavras sobre saudade, pressa de voltar, planos de me encontrar. Imaginem: eu estava num paraíso mas só pensava no meu amor. Vontade de  voltar rápido, rápido. E, de fato, dois dias depois nos encontramos no apartamento dele, da Paraguai, dispostos a recuperar o tempo perdido naquela semana de separação. Estávamos em clima total de namorados e, para isso,  nada melhor do que o escurinho de um cinema. Ele escolheu: Dustin Hoffman, paixão total do meu moço. Filme:  Herói por Acidente.


Meia dúzia de espectadores, no Cal Center - maravilha para um filme a dois.


FONTE PESQUISADA

GALISTEU, Adriane. Caminho das Borboletas. Edição 1. São Paulo: Editora Caras S.A., novembro de 1994. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário