quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Porque Senna é Melhor Que Schumacher? F1 Fórmula 1




“Tenho uma confissão a fazer”, disse, emocionado, o jornalista inglês Jeremy Clarkson no final de um tributo a Ayrton Senna no programa automobilístico que ele comanda, o Top Gear. “Nunca fui fã do Senna. Meu piloto predileto sempre foi o Gilles Villeneuve. Mas depois de ver horas e horas de vídeo para fazer este programa, vi que o Villeneuve foi espetacular em algumas corridas, ao passo que Senna foi espetacular cada vez que se sentou num carro de Fórmula 1.”
Na homenagem a Senna, o Top Gear caprichou. Presenteou o campeão mundial Lewis Hamilton com uma volta na lendária McLaren em que Senna conquistou a imortalidade na F-1. Hamilton disse que era um dos momentos mais felizes de sua vida. E contou que se lembrava perfeitamente do dia em que Ayrton Senna morreu – em 1º de maio de 1994, aos 34 anos, quando um problema em seu carro o impediu de fazer a curva Tamburello, no momento em que ele liderava o GP de Ímola, na Itália. “Posso recriar a cena inteira ainda hoje. Chorei profundamente.”
De tempos em tempos, uma morte tem o poder de comover e marcar milhões de pessoas, irmanadas num luto que cruza fronteiras e atravessa os anos. Foi o que aconteceu em dezembro de 1980, quando um fã ensandecido descarregou sua arma em John Lennon em frente do edifício em que este morava em Nova York. Foi também o que aconteceu no domingo de 1994 em Ímola. Pessoas numa quantidade formidável – não só no Brasil, mas mundo afora – são capazes de, como Hamilton, lembrar, quase vinte anos depois, o que estavam fazendo no preciso momento em que souberam da morte de Senna.
As estatísticas explicam parte do fascínio duradouro. Nos anos em que correu na Fórmula 1, ele conquistou três títulos, ganhou 41 vezes e fez 65 pole positions. É muita coisa, mas outros pilotos têm números superiores aos dele. O alemão Michael Schumacher, por exemplo, tem sete títulos e 91 vitórias. Recentemente, vários pilotos falaram sobre quem foi o maior da história. O espanhol Fernando Alonso disse na hora: “Senna”. Hamilton também. Felipe Massa e Rubens Barrichello igualmente citaram Senna imediatamente diante da pergunta. O finlandês Mika Hakkinen, duas vezes campeão na década de 1990, ficou também com ele. Ao saber da escolha de seus colegas, o próprio Schumacher disse: “Se me perguntarem quem foi o maior piloto de todos, eu também fico com o Senna”.
Como explicar seu triunfo sobre números que lhe são desfavoráveis? Primeiro, e acima de tudo, é preciso considerar que na Fórmula 1 o carro faz muita diferença – e Schumacher foi beneficiado por isso em diversas temporadas. Na Ferrari, Schumacher não apenas teve um automóvel muito acima dos demais, como ganhou da equipe companheiros que estavam na pista basicamente para ajudá-lo. Numa de suas vitórias, Schumacher ultrapassou seu colega de Ferrari Barrichello no momento em que este, por ordem da escuderia, parou para que ele pudesse vencer. Foi um triunfo ultrajante. Mesmo assim, está computado nos números de Schumacher. E, acima de tudo, ele teve a sorte de correr numa era de pilotos medíocres.
Senna, ao contrário, competiu com gigantes como Alain Prost. Nos dois anos em que eles foram companheiros na McLaren, em 1988 e 1989, Senna e Prost com seus carros vermelhos e brancos idênticos elevaram a F-1 a um patamar de excelência e espetáculo que nunca mais voltaria a ser alcançado. Disputaram o título nos dois anos volta a volta, prova a prova. Senna derrotou Prost em 1988 e só não repetiu isso em 1989 porque foi fechado pelo rival na prova decisiva, quando estava prestes a passá-lo. (Em 1990, ele daria o troco, batendo na Ferrari de Prost na primeira curva da corrida que definiria o título, no Japão. Senna seria campeão se Prost não terminasse a prova, e ele providenciou isso ao manter o carro descaradamente numa linha reta quando o francês ia tomando a ponta.)
Fora Prost, enfrentou outros pilotos formidáveis, como o brasileiro Nelson Piquet e o inglês Nigel Mansell. Por tudo isso, prevalece nas comparações com Schumacher. O mito é também alimentado pela morte prematura e sensacional. Mas a imagem de piloto extraordinário nasceu bem antes que ele vencesse sua primeira prova na Fórmula 1. Mais precisamente: antes que ele disputasse sua primeira corrida na principal categoria do automobilismo mundial.
Senna deixou o Brasil para viver na Inglaterra, a pátria das corridas de automóvel, em 1981, aos 21 anos. No Brasil, ele já era conhecido como um pilo to incomum graças a uma coleção de vitórias obtidas no kart desde que era criança. (No resto da vida, Senna falaria com nostalgia dos tempos de kart, em que o que havia era “pura corrida, sem dinheiro, sem politicagem”.) Na Inglaterra, logo chamaria a atenção dos dirigentes das principais escuderias de Fórmula 1 ao ser campeão em divisões inferiores em 1982 e 1983 bem a seu estilo – ultrapassagens sensacionais e inconformismo com outra posição que não fosse a primeira. Sua vontade de vencer – colossal, para muitos doentia, mas sem dúvida essencial para que ele fosse o que foi – tem um bom paralelo, nos dias de hoje, com a gana do tenista espanhol Rafael Nadal.
Logo em sua primeira temporada na Fórmula 1, na pequena Toleman, Senna confirmou as expectativas elevadas em torno de seu futuro. Numa prova em que uma chuva forte praticamente igualou os carros, Senna, para admiração e surpresa de todos, parecia dirigir como se a pista só para ele estivesse seca. Largou de trás, foi passando os adversários um a um, com seu carro modesto, e quando tirava quatro segundos por volta do líder Alain Prost a corrida foi interrompida. A familiaridade com as pistas encharcadas veio dos dias de menino. Ele gostava de ir ao kartódromo, em São Paulo, quando chovia. Senna logo passaria para equipes melhores – primeiro a Lotus, intermediária, e depois para a McLaren, onde viveria seus dias de ouro.
Em Senna se reuniam vários contrastes. O piloto exuberante se transformava, fora do carro, num homem discre to. Reservadamente, sem espalhafato, ele assim que pôde começou a ajudar crianças pobres em seus estudos – a maneira mais eficiente de permitir que ascendam. No documentário Senna, uma de suas falas apontava para algo que é hoje intensamente debatido no mundo: a disparidade social. No Brasil, notava ele, a beleza natural tem como contrapartida a violência, “provocada pela desigualdade”. Na pista, Senna ajudou brasileiros de todas as classes – alegrando-os com suas vitórias nos domingos pela manhã e mostrando, ao carregar a bandeira do país nas voltas de comemoração, que o Brasil tinha, sim, jeito.
Era religioso. Disse – com a proeza suprema de não cair no ridículo – que falou com Deus ao ganhar seu primeiro título. A fé vinha da mãe, Neide. Numa entrevista no começo da carreira de Senna, ela disse que pedia a Deus todos os dias que nada acontecesse com o garoto. Dez anos depois, o carro pilotado por seu filho não faria a curva Tamburello. Não existe registro, na história recente do país, de uma comoção comparável à que se viu em seu enterro. Em seu túmulo, no Cemitério do Morumbi, está gravada uma inscrição: “Nada pode me separar do amor de Deus”. Pessoas mais céticas poderiam, é verdade, contestar a qualidade dessa proteção. Mas ninguém ousaria discutir que nada pode separar Ayrton Senna do coração de milhões e milhões de pessoas de todas as partes que tiveram o privilégio de um dia vê-lo nas pistas – indomável, insaciável e, para muitos, absolutamente incomparável.

 Matéria publicada na Revista ALFA de abril de 2012

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