“Tenho uma
confissão a fazer”, disse, emocionado, o jornalista inglês Jeremy Clarkson no
final de um tributo a Ayrton Senna no programa automobilístico que ele comanda,
o Top Gear. “Nunca fui fã do Senna. Meu piloto predileto sempre foi o Gilles
Villeneuve. Mas depois de ver horas e horas de vídeo para fazer este programa,
vi que o Villeneuve foi espetacular em algumas corridas, ao passo que Senna foi
espetacular cada vez que se sentou num carro de Fórmula 1.”
Na homenagem a Senna, o Top Gear caprichou. Presenteou o campeão
mundial Lewis Hamilton com uma volta na lendária McLaren em que Senna
conquistou a imortalidade na F-1. Hamilton disse que era um dos momentos mais
felizes de sua vida. E contou que se lembrava perfeitamente do dia em que
Ayrton Senna morreu – em 1º de maio de 1994, aos 34 anos, quando um problema em
seu carro o impediu de fazer a curva Tamburello, no momento em que ele liderava
o GP de Ímola, na Itália. “Posso recriar a cena inteira ainda hoje. Chorei
profundamente.”
De tempos em tempos, uma morte tem o poder de comover e marcar
milhões de pessoas, irmanadas num luto que cruza fronteiras e atravessa os
anos. Foi o que aconteceu em dezembro de 1980, quando um fã ensandecido
descarregou sua arma em John Lennon em frente do edifício em que este morava em
Nova York. Foi também o que aconteceu no domingo de 1994 em Ímola. Pessoas numa
quantidade formidável – não só no Brasil, mas mundo afora – são capazes de,
como Hamilton, lembrar, quase vinte anos depois, o que estavam fazendo no
preciso momento em que souberam da morte de Senna.
As estatísticas explicam parte do fascínio duradouro. Nos anos
em que correu na Fórmula 1, ele conquistou três títulos, ganhou 41 vezes e fez
65 pole positions. É muita coisa, mas outros pilotos têm números superiores aos
dele. O alemão Michael Schumacher, por exemplo, tem sete títulos e 91 vitórias.
Recentemente, vários pilotos falaram sobre quem foi o maior da história. O
espanhol Fernando Alonso disse na hora: “Senna”. Hamilton também. Felipe Massa
e Rubens Barrichello igualmente citaram Senna imediatamente diante da pergunta.
O finlandês Mika Hakkinen, duas vezes campeão na década de 1990, ficou também
com ele. Ao saber da escolha de seus colegas, o próprio Schumacher disse: “Se
me perguntarem quem foi o maior piloto de todos, eu também fico com o Senna”.
Como explicar seu triunfo sobre números que lhe são
desfavoráveis? Primeiro, e acima de tudo, é preciso considerar que na Fórmula 1
o carro faz muita diferença – e Schumacher foi beneficiado por isso em diversas
temporadas. Na Ferrari, Schumacher não apenas teve um automóvel muito acima dos
demais, como ganhou da equipe companheiros que estavam na pista basicamente
para ajudá-lo. Numa de suas vitórias, Schumacher ultrapassou seu colega de
Ferrari Barrichello no momento em que este, por ordem da escuderia, parou para
que ele pudesse vencer. Foi um triunfo ultrajante. Mesmo assim, está computado
nos números de Schumacher. E, acima de tudo, ele teve a sorte de correr numa era
de pilotos medíocres.
Senna, ao contrário, competiu com gigantes como Alain Prost. Nos
dois anos em que eles foram companheiros na McLaren, em 1988 e 1989, Senna e
Prost com seus carros vermelhos e brancos idênticos elevaram a F-1 a um patamar de excelência e
espetáculo que nunca mais voltaria a ser alcançado. Disputaram o título nos
dois anos volta a volta, prova a prova. Senna derrotou Prost em 1988 e só não
repetiu isso em 1989 porque foi fechado pelo rival na prova decisiva, quando
estava prestes a passá-lo. (Em 1990, ele daria o troco, batendo na Ferrari de
Prost na primeira curva da corrida que definiria o título, no Japão. Senna
seria campeão se Prost não terminasse a prova, e ele providenciou isso ao
manter o carro descaradamente numa linha reta quando o francês ia tomando a
ponta.)
Fora Prost, enfrentou outros pilotos formidáveis, como o
brasileiro Nelson Piquet e o inglês Nigel Mansell. Por tudo isso, prevalece nas
comparações com Schumacher. O mito é também alimentado pela morte prematura e
sensacional. Mas a imagem de piloto extraordinário nasceu bem antes que ele
vencesse sua primeira prova na Fórmula 1. Mais precisamente: antes que ele
disputasse sua primeira corrida na principal categoria do automobilismo
mundial.
Senna deixou o Brasil para viver na Inglaterra, a pátria das
corridas de automóvel, em 1981, aos 21 anos. No Brasil, ele já era conhecido
como um pilo to incomum graças a uma coleção de vitórias obtidas no kart desde
que era criança. (No resto da vida, Senna falaria com nostalgia dos tempos de
kart, em que o que havia era “pura corrida, sem dinheiro, sem politicagem”.) Na
Inglaterra, logo chamaria a atenção dos dirigentes das principais escuderias de
Fórmula 1 ao ser campeão em divisões inferiores em 1982 e 1983 bem a seu estilo
– ultrapassagens sensacionais e inconformismo com outra posição que não fosse a
primeira. Sua vontade de vencer – colossal, para muitos doentia, mas sem dúvida
essencial para que ele fosse o que foi – tem um bom paralelo, nos dias de hoje,
com a gana do tenista espanhol Rafael Nadal.
Logo em sua primeira temporada na Fórmula 1, na pequena Toleman,
Senna confirmou as expectativas elevadas em torno de seu futuro. Numa prova em
que uma chuva forte praticamente igualou os carros, Senna, para admiração e
surpresa de todos, parecia dirigir como se a pista só para ele estivesse seca.
Largou de trás, foi passando os adversários um a um, com seu carro modesto, e
quando tirava quatro segundos por volta do líder Alain Prost a corrida foi
interrompida. A familiaridade com as pistas encharcadas veio dos dias de
menino. Ele gostava de ir ao kartódromo, em São Paulo, quando chovia. Senna
logo passaria para equipes melhores – primeiro a Lotus, intermediária, e depois
para a McLaren, onde viveria seus dias de ouro.
Em Senna se reuniam vários contrastes. O piloto exuberante se
transformava, fora do carro, num homem discre to. Reservadamente, sem
espalhafato, ele assim que pôde começou a ajudar crianças pobres em seus
estudos – a maneira mais eficiente de permitir que ascendam. No documentário
Senna, uma de suas falas apontava para algo que é hoje intensamente debatido no
mundo: a disparidade social. No Brasil, notava ele, a beleza natural tem como
contrapartida a violência, “provocada pela desigualdade”. Na pista, Senna
ajudou brasileiros de todas as classes – alegrando-os com suas vitórias nos
domingos pela manhã e mostrando, ao carregar a bandeira do país nas voltas de
comemoração, que o Brasil tinha, sim, jeito.
Era religioso. Disse – com a proeza suprema de não cair no
ridículo – que falou com Deus ao ganhar seu primeiro título. A fé vinha da mãe,
Neide. Numa entrevista no começo da carreira de Senna, ela disse que pedia a
Deus todos os dias que nada acontecesse com o garoto. Dez anos depois, o carro
pilotado por seu filho não faria a curva Tamburello. Não existe registro, na
história recente do país, de uma comoção comparável à que se viu em seu
enterro. Em seu túmulo, no Cemitério do Morumbi, está gravada uma inscrição:
“Nada pode me separar do amor de Deus”. Pessoas mais céticas poderiam, é
verdade, contestar a qualidade dessa proteção. Mas ninguém ousaria discutir que
nada pode separar Ayrton Senna do coração de milhões e milhões de pessoas de
todas as partes que tiveram o privilégio de um dia vê-lo nas pistas –
indomável, insaciável e, para muitos, absolutamente incomparável.
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