quarta-feira, 11 de junho de 2014

Senna: Aceleramos Os Carros Do Campeão

Publicado em 11-06-14 às 12h42 por Car and Driver

Ayrton Senna era Viciado em Carro. E esses dois eram os seus maiores vícios


Por Carlos Cereijo, João Anacleto e Luiz Guerrero / Fotos: Christian Castanho e Renato Durães

Audi S4 Avant 1993 e o Honda NSX 1992 foram os últimos carros de rua de Ayrton Senna. Os dois modelos viveram mais na garagem do que nas ruas e nunca saíram da guarda pessoal do irmão do piloto, Leonardo Senna. Ambos continuam como da última vez que foram dirigidos pelo campeão, semanas antes daquele 1 de maio: impecáveis. pela primeira vez, as duas preciosidades rodaram lado a lado, no melhor cenário para uma homenagem ao maior dos ídolos – a pista do kartódromo particular do piloto desenhada por ele.


O mineiro Francisco Crispim, gerente da Fazenda Dois Lagos, em Tatuí, no interior de São Paulo, acompanha o desembarque do Honda NSX nos boxes do kartódromo particular de Ayrton Senna. E se emociona. “Ayrton nunca trouxe esse carro para cá.” Com 9.821 km originais no hodômetro, o Honda era o carro de rua que transportava o piloto para o mais próximo de um carro de pista – e representa a face mais fácil de entender de Ayrton, o cara que gostava de acelerar no limite.


Em seguida, o Audi S4 Avant é descarregada do caminhão-plataforma. E Crispin sorri como se estivesse revendo uma antiga conhecida. Com 4.778 km congelados no hodômetro, a perua revela uma face mais particular de Ayrton – a do cara que curtia carros versáteis (e velozes). Era com essa perua que o campeão transportava seus aero e nautimodelos para a fazenda que comprou em 1987. 

A Dois Lagos, ainda hoje uma fazenda produtiva, era o refúgio de Ayrton Senna no Brasil – era lá que ele mantinha seus karts e demais brinquedos. E os dois carros são os últimos modelos de rua que o piloto tinha por aqui. “Ele gostava muito dos dois, e também de uma perua Mercedes-Benz 300 ano 84”, conta Leonardo Senna, irmão de Ayrton. “Ele achava a direção do NSX muito precisa e nas viagens, preferia ir de Audi, que unia conforto e esportividade.” Leo, que assumiu a guarda dos carros, revela que o irmão pretendia comprar os Audi A8 e RS2, que seriam lançados em 1994.

Foi a primeira vez que o Honda e o Audi do campeão, carros tão impecáveis que ainda conservam o cheiro de novo, rodaram lado a lado – andamos 50 km com cada um deles, o equivalente a 50 voltas no Kartódromo Ayrton Senna. 


A  FERRARI  DA  HONDA
O NSX, sigla para New Sportscar Experimental, é um carro baixo, de 1,17 m de altura, e estreito (1,81 m de largura) que você guia com as pernas quase esticadas. Ao vivo, é menor que parece. Foi o primeiro superesportivo da Honda, com desenho claramente inspirado no da Ferrari 328. O desenvolvimento dinâmico começou em 1987, dois anos antes da primeira apresentação ao público, no salão americano de Chicago, em 1989, e teve participação ativa do piloto. Depois de um dia de testes no circuito de Suzuka, no Japão, Ayrton teria convencido os japoneses a enrijecerem o chassi e a modificarem a geometria de suspensão. Tarefa nada simples: o NSX foi o primeiro carro de série do mundo feito integralmente em alumínio, do monobloco à carroceria (o Audi A8 só chegaria em 1993). 

Dá para perceber a contribuição de Ayrton, um meticuloso acertador de carros, vendo o subchassi sob os dois eixos, a barra anti-torção no compartimento do motor e a suspensão double wishbone, na dianteira e na traseira. 


A distribuição de peso não era a ideal  para um carro de motor central traseiro (58% concentrados atrás). Para compensar, a Honda adotaria solução presente há anos nos F1: instalou rodas uma polegada de diâmetro menor na dianteira. O menor peso no eixo da frente também dispensou a direção com assistência na primeira geração do NSX (as seguintes, a partir de 1994 teriam assistência eletro-hidráulica). 

O NSX chassi 259 que Ayrton mantinha no Brasil é assim: direção sem assistência e câmbio manual. Estas primeiras unidades foram as mais viscerais do modelo – nos anos seguintes, o Honda ganhou câmbio automático e a potência foi amansada para 258 cv. Só existem três unidades do NSX no Brasil.


AUDI  E  MERCEDES
A S4 Avant também tem câmbio manual, mas de seis marchas (o Honda tem cinco). O sistema oferece bons engates, mas não tão urgentes quanto os oferecidos pelas caixas modernas. Em contrapartida, a perua traz equipamentos ainda hoje considerados de luxo, como os aquecedores e quatro memórias de posição de banco, computador de bordo multifunções, ar-condicionado digital e ajuste de altura dos faróis de xênon, entre outros itens. Leonardo diz que Ayrton preservava seus carros originais – à exceção do sistema de som. “Meu irmão gostava muito de música e sempre instalava som mais refinado.” O sistema da Audi é original, mas no NSX Ayrton instalou equalizador digital da Kenwood e alto-falantes Bose.


A S4 foi um dos primeiros Audi a desembarcar no País – a Senna Import foi a primeira representante da marca, a partir de novembro de 1993. “Muita gente na época, achava que seria loucura, porque a Audi era pouco conhecida por aqui”, lembra Leonardo. Foi Leo quem iniciou a negociação para trazer a Audi junto à Volkswagen – antes disso, Ayrton teria procurado a Honda que, por seu lado, já tinha planos de erguer fábrica por aqui.

Quando as tratativas com a Audi estavam avançadas, Ayrton e Leonardo foram procurados pela Mercedes-Benz. “Eu e meu irmão fomos à fábrica da Mercedes em São Bernardo do Campo e Ayrton disse que, por princípio, iria concluir a negociação com a Audi”. Caso o negócio não fosse adiante, fecharia com a MB.


CHEIRO  DE  NOVO
Além do câmbio manual, do caráter esportivo e da alta dose de tecnologia de ponta,NSX e S4 têm em comum a ergonomia próxima da perfeição. O editor João Anacleto, que dirigiu o Honda nesta avaliação inédita, diz que o interior é um tanto apertado para seu 1,90 m. Mas deveria vestir Ayrton, de 1,75 m, com precisão.

“A posição de dirigir foi lapidada com genialidade”, descreve Anacleto. “Há dois ajustes distintos para a altura e a distância da coluna de direção e os bancos são joias raras no mundo dos esportivos: macios e aconchegantes e com ajustes elétricos que funcionam como se o carro tivesse saído da loja ontem.” 


O que chamou a atenção do editor Carlos Cereijo, que guiou a Audi, foi o cheiro de carro novo e o estado de conservação do interior da perua. “O couro preto dos bancos não tem aparência de 21 anos e rodando, não se ouve estalos ou ruídos característicos de um carro com essa idade.” Os eventuais problemas que surgiram, como a modulação do pedal de embreagem ou o funcionamento irregular do motor, deve-se à falta de uso. É um carro que não chegou a fazer a primeira revisão, marcada para 12.000 km.


PONTA DOS DEDOS
Leonardo Senna diz que Ayrton não tinha ciúmes dos seus carros. “Ele não ligava se eu usasse os carros ou o helicóptero dele. Fui eu quem busquei o NSX no porto de Santos e a perua Audi.” Mas dirigir as duas raridades confiadas à C/D pelo irmão do piloto acaba se tornando ritual recheado de responsabilidade. Nossos editores entram na pista levando os carros na ponta dos dedos, com a recomendação de que o responsável por qualquer eventual estrago seria linchado sob o selo de qualidade Sherazade. A ameaça funcionou.

Ayrton, lembra Leo, era rápido também na cidade. “Andar de carona com ele em algumas circunstâncias era tenso.” Sim, os limites do piloto estavam em outra dimensão, mas dá pra entender o que movia Ayrton: NSX e S4 são carros que instigam a tocada rápida. “No fim da reta de 110 m o velocímetro do Honda marca 115 km/h, no limite da segunda para terceira marcha”, relata Anacleto. “O torque de 29 kgfm chega a 5.800 rpm, mas a partir de 3.000, o motor desperta.”

Cereijo: “Em segunda na reta, o giro passa das 4.000 rpm e o torque de 40,8 kgfm empurra a perua como um trem. São apenas 280 cv, mas com essa força a Audi nem parece pesar quase 1.700 kg.”


Com conjunto estrutural de 210 kg e peso total de 1.370 kg, o NSX de tração traseira é empurrado por um V6 3.0 aspirado, com comando variável de válvulas VTEC. O motor tem bielas de titânio que permitem levar a rotação para 7.300 rpm e com isso extrair 273 cv. Um Nissan 300ZX da época, biturbo V6, tinha 300 cv.


O motor de alumínio do Audi é a evolução do 3.6 do Audi V8 (1988-1993), primeiro carro da marca com V8. As raízes vêm da DTM (levou os títulos de 1990 e 1991). NaS4, a capacidade aumentou para 4.2. A central Bosch coordena os oito injetores de combustível, cada um deles acionado eletronicamente. Os comandos não eram variáveis. Com esse motor, o 0 a 100 km/h era feito em 6,5 s e a máxima era limitada a 250 km/h

De acordo com as medições de época, o NSX fazia o 0 a 100 km/h em 5,6 s e atingia a máxima de 274 km/h. E o mais impressionante para um supercarro dos anos 1990: fazia cerca de 13 km/l na estrada e 7,8 km/l na cidade. 


CARROSSEL
Para um kart como o que Ayrton costumava pilotar, a pista da Dois Lagos é rápida (veja  o traçado do circuito na página seguinte). Mas para dois foguetes como o NSX e a S4, é preciso contar com a precisão dos freios e o poder de retomada desses carros.

“A direção do Honda é pesada, mas se mostra deliciosamente astuta quando eu contorno a primeira curva à esquerda a uns 60 km/h” – é Anacleto falando. “O NSX é um carro instintivo, o pedal da embreagem fica bem à esquerda, o do freio é o centro de tudo e o do acelerador está deslocado tão à direita que, olhando de cima, você acha que ele nem existe.” O carro tem freios poderosos, assistidos por ABS com 4 canais e controle de tração e estabilidade por frenagem das rodas. Não apresentou sinais de fadiga durante nossa avaliação.

O S4 manteve a docilidade de comando esperada de um carro, vamos dizer, familiar: os comandos são mais suaves, a direção é leve e a embreagem não exige tanto esforço da perna esquerda. O relato de Carlos Cereijo:

– No fim da reta, percebo que os freios não estão tão alertas quanto o V8. A dianteira mergulha e me faz perder a tangência da curva. A próxima curva à esquerda, um mini-Carousel com forte inclinação, surge e imagino que a suspensão, com bastante curso se comparada à dos Audi atuais, provocaria rolagem de carroceria além do ideal. Mas aí entra a tração integral que mantém a perua nos eixos.

O S4 tem bloqueio de diferencial acionado por uma tecla e que faria a traseira da perua escorregar a cada curva. Mas não usamos o recurso para não maltratar os pneus – e o próprio asfalto da pista.

No Honda, as saídas de traseira são inevitáveis na medida em que você começa a ganhar confiança. Anacleto: “Entro no Carousel com um leve toque no freio, controle de tração desligado e velocidade acima do ideal. A traseira começa a desgarrar, mas basta um leve contra-esterço no volante para fazer com que ela volte docilmente ao seu lugar, e sem estilingar a frente para o outro lado da curva.”


PAIXÃO
Se o Audi com seu torque de locomotiva e a tração integral se sobressai nas curvas de alta (como a 3 e a 5, que Ayrton fazia de pé embaixo no kart), nas de baixa, como a Curva 4, um contorno em grampo inspirado na Rivage, de Spa-Francorchamps, uma das pistas prediletas de Ayrton, a diferença entre os dois carros se torna evidente: o NSX contorna a curva com velocidade inercial sem perder aderência.

“Começo a entender a paixão de Ayrton por este Honda”, diz João Anacleto. “No painel, tecnologia e simplicidade convivem em harmonia: o mais importantes está no centro do cluster, é fácil saber se o controle de tração foi realmente desligado e a quantas anda a pressão do óleo, mostrada por um manômetro como os de carros turbo. O câmbio tem engates curtos e radicalmente precisos: você nem precisa pressionar a embreagem até o fim para que as marchas engrenem...” 

O S4 tinha outra proposta. “Enquanto dirigia, ficava imaginando Senna andando no ritmo que ele considerava calmo, enquanto os ocupantes se seguravam como podiam na perua...”, conta Cereijo.

No fim de algumas voltas, João Anacleto sentia os braços queimando por conta do peso da direção e da temperatura elevada por causa da proximidade do motor com a parede corta-fogo nas costas do motorista. Cereijo salta do carro mais relaxado, a ponto de perceber, atrás dos lagos que batizam a fazenda, uma cortina de chuva pairando no horizonte. 

Cereijo: “Sempre levei comigo a imagem do piloto e dos recordes. Nunca comprei a idolatria ufanista, mas admirava o jeito que Senna levava a vida. Mesmo sem saber, ele foi o primeiro Viciado em Carro e eu, também sem saber explicar na época, o admirava por causa disso.”

João: “O pensamento disperso pelo  peso da responsabilidade serviu para clarear minhas ideias de como Ayrton vivia intensamente. E ao dirigir o NSX, entendi porque é tão fácil para um Viciado em Carro se apaixonar pelo Honda – um carro que, como Senna, não terá substituto à altura.”


A PISTA
Era nesse kartódromo da Fazenda Dois Lagos que Ayrton se divertia - no limite
Ayrton Senna era obcecado por detalhes – e uma das evidências disso é o kartódromo que ele desenhou e inaugurou em novembro de 1991 em sua fazenda. A pista, rápida e altamente técnica, é um mosaico de algumas das curvas mais desafiadoras dos circuitos em que o piloto competiu.

Nenhuma delas recebeu nome e, depois da morte do ídolo, o kartódromo ficou praticamente abandonado (apenas o sobrinho Bruno frequenta o lugar vez ou outra). O grid comporta 30 karts e há 10 curvas, oito delas para a esquerda, distribuídas no traçado de... 988 metros de extensão. Não: para Ayrton Senna, não havia coincidências.



FONTE PESQUISADA

CEREIJO, Carlos; ANACLETO, João; GUERRERO; Luiz. SENNA: ACELERAMOS OS CARROS DO CAMPEÃO. Disponível em: <http://caranddriverbrasil.uol.com.br/carros/especial/senna-aceleramos-os-carros-do-campeao/8013>. Acesso em: 11 de junho 2014.

Um comentário:

  1. Que faria ele hoje com o Ferrari LA, essa super bomba de requinte e velocidade?Quem me dera...

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