11/11/2013
Se é verdade que a velha
discussão a respeito dos melhores pilotos em todos os tempos sempre esbarra no
subjetivismo de eleger quais os critérios mais importantes de avaliação, é
igualmente correto aceitar que a análise – quando limitada a cada um desses
critérios, pode sim, aspirar ambições científicas. Existem informações para
embasar, por exemplo, a afirmação de nosso amigo Lucas Giavoni, de que Nelson
Piquet teria sido o test driver mais efetivo da F1, por mais que nenhuma conclusão
possa se colocar acima de questionamentos. Assim, do mesmo modo, nós podemos
argumentar com algum embasamento que Ayrton Senna foi o mais eficiente piloto
em pistas de rua em todos os tempos. Seu impressionante recorde em Mônaco,
aliado aos desempenhos vitoriosos, ou ao menos vistosos, em Detroit, Phoenix,
Dallas e Adelaide o credenciam a disputar esse título, com a mesma propriedade
com que o Circuito da Guia, em Macau, terá de ser citado sempre que alguém
quiser apontar os maiores traçados citadinos já desenhados. Para além de
opiniões ou simpatias pessoais, Senna e Macau são duas entidades que sintetizam
muito do que de melhor existe ou já existiu no automobilismo de rua, em suas
respectivas searas. E, como convém à História, os deuses do esporte cuidaram
para que houvesse um – e apenas um – encontro entre os dois, numa prova
disputada em duas baterias, que este mês completa trinta anos. O resultado,
claro, a maioria já conhece. Os meandros, nem tanto. Por sorte, tive a chance
de ver a corrida na íntegra há poucos dias, com a narração do sempre lúcido
Murray Walker, e posso afirmar que o evento foi perfeitamente coerente com tudo
o que seria escrito nos anos seguintes, sobre pista e piloto. Sob o ponto de
vista técnico, as virtudes que tornam um piloto bom em pistas de rua são as
mesmas que o favorecem quando em pista molhada ou em voltas de classificação.
Com um asfalto muito mais ondulado e inconstante, o piloto jamais consegue
completar efetivamente o ciclo da pilotagem em traçados de repetição, que
tempos atrás dividi em três etapas. A pilotagem primária (quando o piloto vai à
pista sem referências, e precisa pilotar por estimativas instintivas); a
pilotagem secundária (iniciada a partir da 2ª volta, quando começa a sintonia
fina em busca dos limites); e a pilotagem terciária (fase de repetição ou
escolha do ritmo a partir do momento em que o limite é conhecido). Numa pista
de rua, assim como em condições de clima variável ou voltas limitadas de
classificação, o piloto não chega à fase da repetição, e daí a vantagem para
quem consegue se adaptar e encontrar os limites flutuantes mais rapidamente, e
com menor margem de segurança. O desempenho destacado de Ayrton Senna sob essas
circunstâncias, portanto, é perfeitamente coerente com sua grande habilidade
com pneus frios e situações de pilotagem intuitiva. Existem algumas referências
importantes acerca do GP de Macau em 1983. Historicamente, esta foi a primeira
edição da prova disputada em carros de F-3 (a última com carros da F-Pacific
havia sido vencida por Roberto Moreno, em 1982). Do mesmo modo, pouca gente se
dá conta de que aquela foi também a primeira corrida disputada por Ayrton Senna
em um circuito citadino. Na segunda-feira daquela semana, Ayrton estava
testando a Brabham campeã do mundo, em Paul Ricard. Junto
com ele estavam Pierluigi Martini e Roberto Guerrero, que também viajariam para
Macau em seguida.
Guerrero , no entanto, já conhecia a pista do ano anterior, ao
passo que Senna ainda teve compromissos na Inglaterra, que o levaram a chegar ao
hotel na China apenas na madrugada de quarta para quinta. Desnecessário dizer
que sua forma estava longe da ideal quando a pista foi aberta, no dia seguinte
pela manhã. Trabalhando em outro fuso, estranhando o calor e ainda sofrendo
severamente com o jet lag, Senna assumiu um dos três carros de Teddy Yip e foi
conhecer o desafiador Circuito da Guia, sem qualquer preparação prévia. E aqui
cabem algumas palavras sobre o palco. Nenhuma pista no mundo é tão bipolar
quanto Macau. Basicamente, num dos lados ela é tão rápida quanto Monza, e
noutro é tão travada quanto Mônaco. Com um detalhe importante: em alguns
trechos a pista é tão estreita, que admite a passagem de apenas um (!) carro.
Tudo, nessa pista, envolve compromisso. O acerto precisa considerar a velocidade
final, e a sensibilidade dos pequenos motores de dois litros a qualquer grau
excedente nas asas traseiras. Por sua vez, o carro precisa conservar alguma
estabilidade mecânica para encarar os muitos esses em sequência, e dispor de
boa tração para as saídas dos muitos cotovelos. Ao todo são mais de 6km de
insanidade, com todo tipo de cambagem e variações de altitude. Uma pista, em
suma, que leva tempo para ser aprendida. Não por acaso diversos bons pilotos
voltam duas ou mais vezes a Macau, antes de conseguirem um resultado
satisfatório. Na primeira sessão cronometrada, Senna raspou o muro após míseras
três voltas, estragando um aro. O carro não sofreu maiores danos, mas o tempo
de pista foi perdido. Nessa altura, Roberto Guerrero – com dois anos de experiência
na F1 e profundo conhecimento da pista – tinha o melhor tempo (2’22’’85),
seguido por Brundle e Senna (empatados com 2’23’’47). Os três guiavam Ralts
Toyota inscritos por Teddy Yip – e patrocinados nas tradicionais cores da
Marlboro que mais tarde marcariam a carreira de Senna. O brasileiro guiava para
a West Surrey e os outros dois para a Jordan. Na prática, os carros dos três
eram idênticos. Restava a segunda sessão, e nela Ayrton entortou um seletor de
engrenagem, novamente perdendo tempo com os reparos. No fim, houve tempo para
apenas outras três voltas, e foi isso. Com apenas seis voltas completadas ele
havia assimilado os trechos cruciais da pista a ponto de conseguir a pole
position para o GP, ainda que por uma margem bastante apertada (para seus
próprios padrões): 2’22’02, contra 2’22’’18 de Guerrero e 2’22’26 de Brundle.
Além do já citado Pierluigi Martini, o grid tinha outros nomes que se tornariam
mais ou menos conhecidos no futuro. Entre esses, destaque para Gerhard Berger,
largando na 5ª posição. No dia da corrida Senna continuava sentindo-se mal
fisicamente, a tal ponto que optou por dormir por 1h30 entre as duas baterias
da corrida. Na largada ele teve problemas para engatar a segunda marcha, sendo
assim superado por Guerrero. A primeira curva em Macau fica a cerca de 150 metros de onde o
pole larga, e é um cotovelo de 90º à direita. Então, logo em seguida, outra
curva semelhante completa o retorno que dá início à parte sinuosa do traçado.
Pois bem, ao tomar a 1ª curva na frente, Guerrero imaginava que só poderia ser
atacado no fim da volta, na entrada do trecho de alta. Senna, no entanto, havia
carregado enorme velocidade para esse trecho, de tal modo que conseguiu fazer a
2ª perna já na liderança. Uma manobra que não apenas surpreendeu o colombiano,
como mereceu sua sincera admiração numa declaração futura: “Ele me passou na
viela entre as duas curvas. Eu não podia acreditar no que ele conseguia fazer
com pneus frios”, admitiu. E então adeus. Absurdamente rápido nas voltas
iniciais, Senna construiu na 1ª bateria a vantagem que o deixaria folgado no
somatório dos tempos. No fim ainda tirou um pouco o pé, fechando a primeira
perna com 5’’99 de vantagem. Atrás de Guerrero o surpreendente Berger, com
motor Alfa Romeo, fazendo aquela que considerou a melhor corrida de sua vida,
ao menos até ali.
O verdadeiro show, no
entanto, viria na 2ª bateria. Após tirar seu cochilo entre as provas, Senna
estava de volta ao grid. E dessa vez, sem problema no câmbio, não foi ameaçado
nem por um momento, apesar de vários conjuntos terem queimado a largada. Por
ser demasiadamente grande, a pista não possuía câmeras em todos os trechos, de
tal modo que os carros sumiam momentaneamente da transmissão. Ainda na volta
inicial, quando eles retornaram ao vídeo, na “Dona Maria Bend”, Senna já tinha
mais de 2s de vantagem sobre o restante do pelotão. Era mais uma de suas voltas
iniciais arrasadoras. A partir daí, dizer que essa foi mais uma vitória de
ponta a ponta é um reducionismo que não faz justiça ao que aconteceu, porque o
que Ayrton construiu nas voltas seguintes foi uma das maiores demonstrações de
regularidade já registradas pela televisão. Numa pista enorme e complexa como o
Circuito da Guia, ele girou em TODAS as voltas cujo tempo foi narrado por
Murray Walker, com apenas duas exceções, em exatos 2’22’’2. Estou falando aqui
de oito ou nove passagens no mesmo décimo de segundo, numa corrida de 15
voltas. E nas duas vezes em que o tempo variou, o cronômetro registrou 2’22’’4
e 2’22’’5. Infelizmente a narração não deu todos os tempos de volta, mas a
amostragem basta para revelar a qualidade do piloto e sua atuação. Por fim, com
uma vantagem semelhante à da 1ª bateria, Senna tirou o pé para assegurar por
7’’32 uma vitória que conseguiu ser brilhante a despeito de ter sido
aparentemente fácil. Ao todo, ele completou 30 voltas no melhor circuito de rua
da atualidade. Esteve na liderança em todas elas, fez a melhor volta nas duas
baterias, e largou na pole position. Alguns comentários de Murray Walker ao longo
da transmissão merecem a menção. Para começar, ele afirmou repetidas vezes que
Senna “quase certamente iria pilotar para a Brabham em 84” , indicando a disposição
inicial da equipe em tê-lo no 2º carro. Walker, claro, tinha as melhores fontes
possíveis para sustentar suas declarações. Sobre o piloto em si, Walker também
fez uso de diversas expressões poderosas, como “Wonderman”; “destinado ao
estrelato”; “o melhor piloto da Fórmula 3, e na minha opinião um dos melhores
pilotos do mundo”; e ainda disse que se algum piloto parecia marcado para ser
campeão mundial, esse era Ayrton Senna. No próximo dia 17, Macau volta a sediar
um GP da Fórmula 3. Em homenagem ao 30º aniversário da vitória de Ayrton Senna,
a equipe Prema, cujos pilotos inscritos são Alex Lynn e Lucas Auer, correrá sob
inscrição da Theodore, com as cores branco e vermelho.
O Pódio
Cores consagradas apenas 5 anos mais tarde
Senna no bipolar circuito de Macau
A largada: Senna é o primeiro à esquerda
A pintura-homenagem
FONTE
GP Total
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