sábado, 1 de fevereiro de 2014

O “quick man”

Por Chico Serra
18 GPs como piloto de Fórmula 1 (1981 a 1983)
Campeão brasileiro de kart e stock car

Ayrton Senna e Chico Serra conversam no pit wall em Brands Hatch na década de 1980
Foto: Reprodução Internet

 “Para falar do Ayrton Senna, eu tenho que voltar ao tempo do kart e depois chegar a um jantar inesquecível na Inglaterra.

Quando o Ayrton começou no Juniors, a primeira categoria do kart, eu já era PC (piloto de competição), mas a passagem dele foi bem marcante para mim. Ele tinha um estilo diferente de guiar. Hoje admito que eu não aceitava o Ayrton muito bem. Eu era a vedete do kart na época e ele despontava como a nova estrela. Estávamos em categorias diferentes, mas de cara já pintou rivalidade entre nós. Meio de graça, mas aconteceu. Acho que eu via o meu trono ameaçado por aquele moleque que pilotava o kart de lado em freadas e que conseguia guiar só com a mão esquerda. Na freada ele atravessava o kart e saía da curva com o motor com mais força.

Hoje o kart está mudado, os pilotos limitam-se a guiar. Os mecânicos da fábrica é que fazem tudo. O garoto tem pouca participação na mecânica. Na minha época a gente metia a mão na graxa e partia para a Fórmula Ford sem traumas. O Ayrton era daquela escola e por isso eu tinha a certeza de que ele se daria muito bem quando chegasse aos Fórmulas.

Em 1977 eu estava feliz da vida. Tinha cortado as sete cabeças do bicho que diziam se a Fórmula Ford inglesa e ganho um título que Emerson Fittipaldi conquistara dez anos antes. Fui campeão com recordes de voltas, de circuitos e com vitórias. Portanto, dono do trono inglês da Fórmula Ford e credenciado para indicar meu sucessor.

Por isso, quando Ralph Firman, dono da Van Diemen e meu ex-patrão perguntou-me se eu recomendaria alguém, não hesitei e, mesmo sem ter consultado o Ayrton, garanti que havia um piloto em condições de, no mínimo, repetir a nossa temporada.

— E quem é a fera? — perguntou o Ralph.

— É um brasileiro que corre de kart.

Depois daquela recomendação, cada vez que o Ralph me encontrava me perguntava pelo quick man,” como ele passou a chamar o Ayrton.

Em 1979, quando ganhei o campeonato de Fórmula 3 para a equipe de Ron Dennis, Ayrton Senna estava em Silverstone assistindo à prova. Eu falei para ele do interesse de Van Diemen, mas transferimos o papo para o Brasil.

—  Vai lá e experimenta a porra do carro — insisti. Se gostar gostou, se não pelo menos você tira o tesão.

Ayrton não queria admitir, mas o pai não fazia muito gosto naquela aventura. Passou algum tempo e um belo dia o Ayrton me telefonou. Estava indo para a Inglaterra e pedia que eu mediasse o seu encontro com a Van Diemen.

Liguei para Ralph Firman e avisei que o quick man estava a caminho. Assim que Ayrton chegou, nós viajamos para Norwich, onde fica a sede da Van Diemen, já com um jantar marcado. Como o Ayrton ainda não falava bem o inglês, servi de intérprete.

Eu estava feliz com a decisão do Ayrton de competir na Europa, mas, na verdade, minha preocupação maior era ajudar Ralph Firman. Fizemos uma amizade muito forte quando fui seu piloto e achei que lhe apresentar o Ayrton era uma forma de retribuir a atenção. Afinal, eu tinha a certeza de que ele iria ganhar corrida pra cacete. O que nunca imaginei foi traduzir um diálogo maluco como este entre os dois.

Primeiro falou o Ralph:

— O contrato entre a fábrica e os pilotos é mais ou menos padrão. Nós assinamos um contrato pelo qual você disputa o campeonato inglês, que é de 20 corridas, tem direito a 15 treinos, e você paga 12 mil libras (19.800 dólares na época) por esse acordo.

O Ayrton olhou para ele e me disse:

— Diga que eu quero mais corridas.

E eu disse ao Ralph:

— Ele quer fazer mais corridas.

— Ta bom, então fazemos 30 — respondeu Firman.

— Agora diga a ele que eu quero fazer 35 treinos — insistiu Ayrton.

Ralph fazia sinal de ok, mas avisou que o preço então subiria para mais tanto.

— Não — rebateu Ayrton — Traduz para ele que eu quero pagar o pacote normal, que é o dinheiro que tenho.

O Ayrton ia pedindo, pedindo, eu traduzia, mas já estava a fim de sumir embaixo da mesa de vergonha quando o Ralph olhou bem nos olhos do Ayrton, largou a tigela de sobremesa, virou-se para mim e, pouco britânico, perguntou:

— Porra, Chico! Quem ele pensa que é?

Eu, que já estava louco para rir, falei:

— É o quick man...

Eles acabaram se acertando e eu fiquei feliz. Mas até hoje me lembro daquele encontro com detalhes e ainda dou boas gargalhadas. Como eu previ, o Ayrton fez aquele sucesso. Pulverizou todos os recordes. Bateu a minha marca e a do Jackie Stewart, antigo deus da Fórmula Ford.

Depois daquele acerto, a gente ficou mais amigos, respirávamos automobilismo em tempo integral. Houve época em que o Ayrton passou temporadas na nossa casa em Reading, perto de Londres.

Quando ele foi para a Fórmula 3, me convidou para ir ver o novo carro na oficina de Dick Bennetts, seu novo chefe de equipe. A barata estava pronta e ele, mesmo dissimulando, estava faceiro. Tinha acabado de colocar o adesivo ‘Ayrton da Silva’ no cockpit.

Achei o carro lindo, mas assim mesmo arrisquei um palpite:

— O ‘da Silva’ não vai dar certo.

Ayrton surpreendeu-se e eu fui em frente:

— Não consigo imaginar um campeão do mundo chamado da Silva.

— Campeão do mundo?

O Ayrton engoliu em seco e repetiu a si mesmo:

— Campeão do mundo...

Eu insisti:

— Use ‘Senna’. É menos comum e mais sonoro.

E dali em diante ficou Senna. Demorou um pouco para ser assimilado, afinal o ‘da Silva’ já era conhecido. Depois eu tremi ao lembrar que o Miltão, o pai do Ayrton, podia não gostar da historia, se soubesse que tinha sido eu que havia sugerido a troca.

Em 1982, eu já competia na Fórmula 1 pela Ligier e voltei a Norwich para jantar com o Ralph Firman. Então fiz questão de lembrar o primeiro encontro dele com o Ayrton naquele mesmo restaurante. Na despedida, Ralph bateu no meu ombro e murmurou no meu ouvido:


— Você conhece um outro quick man, Chico?


FONTE PESQUISADA

MARTINS, Lemyr. Uma estrela chamada Ayrton Senna. São Paulo: Editora Panda, 2001.

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