quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Maktub

Por Celso Itiberê
O Globo - oglobo.globo.com/esportes
30/11/2016 10:06


Era como se houvesse uma conspiração para produzir um fato que contrariava a lógica

A fatalidade dos árabes os leva a ver os fatos como decorrência de algo que escapa ao comando dos mortais. Para explicar o inexplicável usam apenas uma palavra: “maktub”. Que significa “estava escrito”. Passei a maior parte de minha existência no ambiente da Fórmula-1, um mundo que convive com a morte. Nos meus primeiros anos, as décadas de 1970 e 80, ela se fez presente aos circuitos com assiduidade. Depois a segurança dos carros foi evoluindo e hoje, felizmente, são raríssimos os acidentes fatais.

Os aviões estão na mesma linha. São hoje tão evoluídos tecnicamente que, apesar de mais pesados que o ar, podem ser considerados o meio de transporte mais seguro. As estatísticas mostram que falhas humanas são as responsáveis pela quase totalidade dos acidentes. Daí a nossa quase incredulidade sobre o acidente com o avião da Chapecoense, ainda mais doloroso pela juventude de grande parte das vítimas e pelo momento, em que vislumbravam o caminho do sucesso.

A sensação é de que passamos por um momento estranho, que parece ir além da realidade. Vivi isso na Áustria, em 1974, quando o americano Mark Donahue, depois de um acidente, passou por mim na maca em direção ao helicóptero, sorrindo e dizendo que estava bem. Morreu cinco minutos antes de chegar ao hospital.

Outro episódio estranhíssimo aconteceu com Tom Pryce no GP da África do Sul de 1977. Ele descia a reta dos boxes em altíssima velocidade quando um comissário atravessou a pista à sua frente, com um extintor na mão. O atropelamento foi inevitável, e o extintor, que subiu aos ares, caiu precisamente no capacete do piloto. O impacto matou Pryce. Nem mestre Hitchcock poderia imaginar essa cena.

De todos, porém, o acidente menos explicável foi o do dia 1º de maio de 1994 no GP de San Marino, em Imola: a morte de Ayrton Senna. Nunca imaginei que um acidente na pista pudesse levá-lo deste mundo. Como piloto, ele era nota dez em tudo. Sua técnica de condução era perfeita. Habilidade havia para dar e vender.

Quando relembro a batida na curva Tamburello, vejo claramente que, não bastasse sua perícia, estavam ali todos os outros requisitos para que ele saísse do carro apenas um pouco dolorido, mas andando normalmente.

Dez em dez batidas como aquela resultam apenas em cortes superficiais nos ombros produzidos pela pressão do cinto de segurança, e um hematoma no fim das costas, causado pela pancada contra o banco.

A velocidade não era crítica. O ângulo de encontro com o muro, perfeito para amortizar o impacto e evitar qualquer consequência mais grave. Mas o destino não quis assim e criou sutilezas para contrariar as leis da física.

O pneu, com uma ponta da suspensão, veio como um míssil em direção ao capacete de Ayrton. O impacto foi tremendo, produziu uma teia de microfraturas no crânio, o que impossibilitou qualquer intervenção dos médicos no hospital de Bolonha. Não bastasse isso, a ponta da suspensão, presa na roda, acertou milimetricamente seu olho. Era como se houvesse uma conspiração para produzir um fato que contrariava a lógica.

Há coisas nesse mundo que acontecem para provar a falibilidade de nossos conceitos. O momento é de grande tristeza, e não há palavras que possam minimizar a dor dos que perderam entes queridos nesse acidente com o avião da Chapecoense. Gostaria que pensassem que a vida nos reserva circunstâncias tão inesperadas e tão chocantes que só seis letras podem explicar: “Maktub”. Estava escrito.


FONTE PESQUISADA

ITIBERÊ, Celso. Maktub. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/esportes/maktub-20565328>. Acesso em: 30 de novembro 2016.


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