O Sentido da vida é que ela termina. (Franz Kafka)
Há indícios de que Senna estava se cansando de sua
vida espartana de esportista. Parece que antes da temporada de 1994 não se
preparou fisicamente tão forte quanto fizera das vezes anteriores. Tinha mais
vontade de curtir melhor a vida, usufruir os momentos agradáveis. Deixar de
lado o Ayrton brincalhão da intimidade com os amigos, para vestir a roupa do
Senna vencedor - mas contraído e super tenso - nas pistas de corridas, estava
ficando cada vez mais difícil. Tudo indica que vivia um amor estimulante com Adriane
Galisteu, queria vivenciá-lo mais. Começava a se entusiasmar pelo seu lado
empresário.
Se a primeira fase da crise era a descoberta das
pressões do ser interno, fazendo Ayrton até declarar que gostaria no futuro de
aprofundar seu lado religioso, chegando mesmo a se transformar numa espécie de
pregador do Evangelho, outra fase era essa e curtir mais a vida comum.
Eventualmente casar, ter filhos.
O ser interno de Ayrton, aquela porção mais tímida
da psique, à espera de sua vez, manifestava-se fortemente, em busca de espaço.
Nas demais pessoas, quando eclode essa crise e não é atendida adequadamente,
pode explodir um câncer, um divórcio traumático, uma perda de emprego. Todos
nós, em alguma medida, funcionamos durante uma boa parte da vida atuando apenas
com a nossa máquina biológica. Aquela que reage aos insultos e aplausos externos
e vai se colocar competitivamente no mundo. Mas o ser interno, delicado e
sutil, vai cobrar seu lugar ao sol, algum dia. O desafio é ajustar os dois
lados, colocando a máquina biológica a serviço do ser interno. Evitar a posição
inversa, em que a máquina escraviza a consciência interior, enquanto essa luta
para sair à luz.
O grave, para um piloto de Fórmula 1, é que sua
máquina biológica interage com uma máquina verdadeira, artificial, que opera
sob risco fatal para o homem. Por isso, a meu ver, a porção mais íntima de
Ayrton, seu lado mais humano, digamos assim, estava pressionando para tormar
seu lugar de comando desde 1992. A luta de Ayrton com sua máquina biológica ganhou
uma simbologia evidente e dramática quando se transferiu para a Williams e não
conseguia acertar-se com o carro. Sugiro que, na verdade, o ser Ayrton
rebelava-se contra a personalidade Senna. Já bastava o que Senna conquistara,
era hora de mudar ou alterar o estilo. Era hora de ler os sinais,
tranquilizar-se, esperar nascer de dentro a decisão para a nova empreitada. Era
hora de harmonizar o Senna com o Ayrton.
Apesar de seu acesso a aspectos sutis da realidade,
talvez não tenha conseguido trabalhá-los o suficiente. Talvez não tenha tido
tempo para transformar-se como gostaria. Faltou tempo, faltou força, faltou
intuição mais apurada ainda. Morreu nunca máquina, vitimado por ela própria,
cujo pedaço atinge-lhe fatalmente o crânio. Símbolo da outra luta titânica,
interna, entre o ser e a máquina biológica humana.
Está é uma leitura livre. Válida até certo ponto,
mas simples hipótese. Porque no grande desígnio das coisas, na verdade, não
sabemos os propósitos maiores nem as razões mais profundas que regem uma vida.
Se Ayrton Senna houvesse recuado, abandonado a Fórmula 1, seu ato produziria um
tipo de efeito na consciência das pessoas. Sua vida teria outro sentido. Agindo
como agiu, o efeito foi outro. E o sentido, para ele, quem sabe qual era?
Talvez tenha escolhido mesmo acelerar fundo nesta existência, aprender até a
última gota tudo o que fosse possível, qualquer que fosse o preço. Para não
precisar repetir a dose. E quem somos nós para julgar?
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Nuno Cobra esteve três semanas na casa do Algarve, para um
trabalho intensivo com Senna. Disse ter formado com ela uma "aliança"
para não deixar que ele voltasse a ser "aquela pessoa tensa, preocupada,
responsável, lacônica, triste e taciturna":
"A Adriane dizia: 'Ataca daí, Nuno, que eu vou atacar
daqui. Vamos tirar esse Senna daí. Ele está virando Senna, está ficando
triste'.”
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Ex-assessora Fala do Momento Especial de
Ayrton Senna ao Lado de Adriane Galisteu
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Depoimento de Nuno Cobra, ex-preparador físico e mental de Ayrton Senna
No ano passado (1993) eu estava num programa de televisão
no dia do aniversário do Ayrton, 21 de março. Então me perguntaram que presente
eu daria a ele. Todos ficaram estupefatos quando disse que gostaria que
parasse de correr. Ficaram mudos. Foi constrangedor. Em dez anos de convivência
ele me conquistou como pessoa – era amigo, era irmão, era filho. Dez anos é uma
vida. Os outros me disseram: "Mas como? Ele é a alegria de todos os
brasileiros". Respondi: "O que é o melhor para ele? Espero que esse
tal de Senna consiga logo essas proezas todos, esses recordes, e dê um pouco de
paz para o Ayrton".
Tive um relacionamento com o Ayrton, que era
totalmente diferente do Senna. Eram duas figuras distintas.Meu objetivo nos
encontros era dar a ele paz, momentos agradáveis em que pudesse desenvolver não
apenas sua máquina humana, mas também encontrar seu equilíbrio. Esse era nosso
objetivo nesses dez anos. Na paz dos gramados do Cepeusp (Centro Poliesportivo
da Universidade de São Paulo, que fica na Cidade Universitária, no bairro do
Butantã, em São Paulo) parece que ele encontrava oxigênio, como uma
compensação. Recarregava a bateria. Naqueles momentos nunca fiz uma pergunta a
ele sobre Fórmula 1. Conversávamos muito sobre esporte e olimpíadas. Ele
gostava de saber dos recordes. Tinha admiração pelo Serguei Bubka (recordista
mundial de salto com vara). Não era o Senna que estava lá correndo. Era o
Ayrton, um amigo que soube me conquistar com sua meiguice, alegria de vida,
sensibilidade. O traço mais marcante de sua personalidade, que sempre me
deixava impressionado, era a simplicidade.
No início da carreira, saía no domingo daquele terra
horrível que a Europa era para ele na segunda-feira já estava aqui para
melhorar seu condicionamento físico e mental. Nos domingos eu assistia aos
desempenhos extraordinários, às façanhas sobre-humanas dele nas pistas. Era
quase um ET naquele bólido. Depois me impressionava ver aquela pessoa
transmudada. Chegava uma pessoa tão simples, guiando o próprio carro. Nunca
teve motoristas, nunca teve guarda-costas. Essa pessoa ninguém conheceu,
infelizmente. Ele não era nada "Senna". Era aquela pessoa humilde,
que me escutava, sedenta por informação, com enorme vontade de crescer – tinha
o céu como limite.
Ayrton era muito empolgado com seu estado atlético,
com suas conquistas. Quando ganhou o campeonato mundial no Japão (1988), me deu
a maior emoção da minha vida. Ele me ligou do circuito mesmo e disse: "Eu
não cansei". Tinha ultrapassado todos os carros na pista, o que é um
estresse absurdo. O mérito todo foi dele. Não fiz nada. Apenas estimulava e
orientava. Ele era reto, um exemplo para todo o povo brasileiro. A forma de
Ayrton conseguir as coisas foi pelo trabalho, única e exclusivamente. Ele nunca
ultrapassava seus limites – empurrava-os. Seu consumo máximo de oxigênio
dobrou. Ele podia correr sem cansar. Aí é que está a beleza – nesses momentos
em que o organismo está apto a fazer esforço.
Eu ficava com raiva da imprensa em 1986, 1987 quando
ele ainda não era campeão (foi campeão em 1988, 1990 e 1991), mas já era o
Senna. Diziam que era afobado, nervoso. Esqueciam os tais especialistas que,
pra ser veloz e rápido, tinha de ser o mais sereno e tranquilo. Ayrton não
respirava na curva para fazê-la com perfeição. Fazia com toda a segurança as
ultrapassagens que pareciam absurdas para nós. Com seu talento e seu
desenvolvimento orgânico, com um cérebro muito oxigenado, tinha uma visão
diferente das coisas.
Ayrton disse para a Adriane (a modelo Adriane
Galisteu, namorada do piloto) que não queria correr no domingo em Ímola. Essa
moça foi muito importante na vida dele. Só eu sei. Foi a única coisa boa dos
últimos tempos. Ele estava feliz. Era uma das poucas pessoas que percebia
também esse Ayrton que ninguém conheceu. No ano passado, estivemos três semanas
em Portugal em um trabalho intensivo. Ela dizia: "Ataca daí que vou atacar
daqui. Vamos tirar esse Senna daí. Ele etá virando Senna, está ficando
triste". Adriane foi a pessoa que lhe deu mais carinho. Ela me ajudava.
Todos viam apenas o Senna, aquela pessoa tensa, preocupada, responsável,
lacônia, triste, taciturna. Era óbvio que era penoso para Ayrton suportar essa
figura. Eu brincava cojm ele: "Ayrton, hoje você está tão
macambúzio". Em Angra (Angra dos Reis, município fluminense onde o piloto
tinha uma casa), quando eu estava olhando as ondas, às vezes ele chegava por
trás, me abraçava e dizia: "Você está tão macambúzio hoje". Era sua
forma de expressar carinho, sempre com uma brincadeira. Numa outra vez, eu
estava escorregando nas pedras e o Ayrton não perdoou: "Você não botou
pneu de chuva, hein?"
Atrás daquele profissional tão austero e
mal-humorado, premido por tanta responsabilidade, tinha um Ayrton humilde e
simples. Ele era meio no olhar, sereno nas atitudes e muito alegre. Por incrível
que pareça, falava demais. Sempre tinha um chiste, uma tirada. Ficava sempre
com a última palavra. Não tinha como a gente continuar depois que fazia sua
gozação final. Era sempre mordaz e sutil. Ayrton tinha fluidez de pensamento e
era muito rápido. Também era muito observador e atencioso.
Essa é talvez uma das possibilidades mais sagradas
que Deus ofereceu ao homem: ir mudando, se transformando, crescendo e buscando
a luz. A gente notava que o Ayrton ia ficando cada vez mais sensível, cada vez
mias espiritual nessa mudança a que ele se propunha, de buscar seu
aperfeiçoamento físico, mental, espiritual e moral.
Agora ele desfrutava o melhor momento da vida. O
Senna estava cada vez mais ficando Ayrton. A imprensa às vezes se surpreendia.
Era o Ayrton crescendo, mudando o próprio Senna. Mas não houve mais tempo para
isso. Minha tristeza mesmo é qeu ninguém pôde conhecer esse Ayrton. Tenho a
tarefa de levar ao povo esse homem, a quem não foi dada a chance de se fazer
presente – empurrado e massacrado por esse mundo medonho.
A última vez que nos encontramos no Cepeusp. Ele ele
me disse: "Puxa, você engordou, está melhor, mais forte". A primeira
vez que fui à Europa, em 1985, na corrida de Brands Hatch (Inglaterra), os
seguranças foram me tirar do boxe. Ayrton já estava colocando a balaclava
(protetor contra fogo usado pelos pilotos), mas pulou por cima do carro e
disse: "Esse não". Numa entrevista para a Rede Globo, ele falou de
mim com muito carinho. Gostaria de ter essa fita.
Se eu tivesse nessa prova na Itália, ele não iria
correr de forma nenhuma. Quando ficou passando a mão no carro alguns minutos,
com aquela carinha de criança, parecia que estava sabendo, estava sentindo o
que ia acontecer na pista. Ele nunca tinha feito isso. Eu teria tirado Ayrton
do boxe, ia provocar um vexame. Estava tudo escrito no rosto dele. Mas ele era
tão responsável que, mesmo sabendo que não tinha nenhuma segurança, se impôs
cumprir seu dever. Morreu no Dia do Trabalho, trabalhando. Fazendo o que mais
gostava. Foi Senna até o fim.
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FONTES PESQUISADAS
LIMA,
Edvaldo Pereira. Ayrton Senna: Herói de um novo tempo. Volume 1. São
Paulo: Clube de Autores, 2009.
RODRIGUES, Ernesto. Ayrton, o herói revelado. Edição 1. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2004.
COBRA, Nuno. Nuno Cobra, o treinador de Senna. Revista Caras, São Paulo, Ano 1, Especial Nº2, Editora Abril, 04 de maio 1994.
Documentário Ayrton Senna do Brasil, Esporte Espetacular, TV Globo 2014
Saiu da vida entrou para a historia virou a lenda mitica de todo apreciador do esporte,mas se eu tivesse o poder de mudar algo do passado certamente mudaria a mentalidade dele para que naquele fatidico 01/05/1994 ele larga se o senna e vira se o ayrton.
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