quinta-feira, 4 de março de 2021

OS ENIGMAS DE IMOLA

 


No horário da Itália, eram 13h27 do dia 1º de maio de 1994, quando Ayrton surgiu dos fundos do boxe da Williams, macacão amarrado à cintura, pronto para entrar no carro e seguir para o grid de largada. Como fazia em todas as corridas, o cinegrafista Armand Deus, da TV Globo, apertou o botão de sua câmera Betacam e começou a captar as imagens.

 

Procedimento de rotina. Não era uma transmissão ao vivo.

 

As imagens seriam usadas para ilustrar a reportagem sobre a corrida que o correspondente Roberto Cabrini editaria no final do dia, a tempo de ser gerada para o Rio de Janeiro e exibida no programa Fantástico.

 

Não era um dia de sorrisos para ninguém no autódromo de Imola.


Menos ainda para Ayrton, que havia anos já assombrava mecânicos, engenheiros, jornalistas e namoradas com sua capacidade de se concentrar nos momentos que antecediam à largada, tornando todos à sua volta rigorosamente invisíveis e inaudíveis. Seu olhar, naqueles momentos, parecia estar em outra dimensão. Sua seriedade formava uma muralha da qual poucos ousavam se aproximar, não importando a patente familiar ou a relação contratual.

 

Para alguns, naqueles momentos ele antecipava curvas e movimentos dos adversários. Para outros, rezava. Outros ainda achavam que aquela era uma travessia sensorial para um mundo cheio de fúria que só cabia e existia no cockpit. Uma travessia sem volta até que a corrida, a dele, terminasse.

 

A câmera de Armand Deus continuava gravando quando Ayrton se aproximou da parte traseira de sua Williams e pousou as mãos sobre o aerofólio.

 

Teve uma rápida conversa sobre a suspensão traseira com o engenheiro David Brown. Depois, seu olhar passou a se alternar entre o nada e a Williams, ainda suspensa nos cavaletes, sem as rodas, recebendo os últimos ajustes dos mecânicos.

 

Era mais do que a concentração de sempre. Havia uma contida inquietação. E também uma tristeza solene e impotente. Estavam ausentes, no seu semblante, como desde o início daquele ano, a intensidade e aquele olhar de predador dos tempos da Lotus e da McLaren. Nem mesmo o rápido comentário de Patrick Head, o diretor da Williams, pareceu diminuir a distância que ele mantinha de tudo que o rodeava.

 

Algum pensamento finalmente o resgatou daquela estranha dispersão para o ritual do cockpit: balaclava, capacete, macacão fechado até o pescoço e uma espera disciplinada, de pé, com as mãos cruzadas sobre a cintura, pela ordem de entrar no carro e ajustar o cinto de segurança.

 

As imagens gravadas por Armand Deus no boxe da Williams e, minutos depois, as que foram feitas no grid de largada, quando Ayrton mudou a rotina e tirou o capacete, se tornaram históricas. Deflagraram o sofrido exercício ao qual milhões de pessoas, especialmente os brasileiros, se entregaram nos dias seguintes: o que estava por trás daqueles últimos olhares, gestos e silêncios?

 

Havia muitas respostas possíveis, sozinhas ou combinadas. Dentro e fora da pista.

Schumacher estava ali, quase ao lado, mais do que nunca disposto a destroná-lo. Roland Ratzenberger morrera depois de uma batida centenas de metros à sua frente, no dia anterior, e o fizera, pelo menos por algumas horas, desistir de correr. Rubens Barrichello, que ele vinha tratando como uma espécie de irmão mais novo das pistas, sobrevivera a um acidente assustador, na sexta-feira. Aquela Williams que ele chamava de "cadeira elétrica", um carro arisco e difícil de guiar, estava consumindo pneus com preocupante rapidez.

 

A placa de um minuto foi erguida.

 

Vinte e cinco motores de Fórmula 1 começaram a rugir.

 

Ayrton, na hora de acelerar, costumava deixar todas as preocupações de lado. Não trocava as emoções do cockpit por nada da vida. Em mais alguns segundos, ele se entregaria de novo à aventura que tinha começado aos quatro anos de idade, ao soar de um motor de picadeira de cana, com três cavalos de potência.


FONTE PESQUISADA

RODRIGUES, Ernesto. Ayrton, o herói revelado. Edição 1. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2004.

 









Um comentário:

  1. Ao fim de tantos anos, voltar a ver essas fotos, de Imola e do acidente, dão um sentimento de nostalgia.
    É impossível agora, falar no nome Imola sem associar Ayrton Senna.

    Abraço

    visitem: https://estrelasf1.blogspot.com/

    ResponderExcluir