Peguei o avião para o Algarve às 20h30 com a alma bem mais
leve. Juraci, a caseira, me buscou, cordial como sempre, quis me cobrir
daqueles agrados tipicamente portugueses que desafiam os ponteiros da balança,
conversamos demoradamente, fizemos planos para a recepção do dia seguinte e só
então me recolhi. Sentia tanta falta física dele, depois desse mês de
distância, que abri os armários do nosso quarto, o closet dele e afaguei-lhe as
roupas, em busca de seu cheiro masculino. Sua presença se sentia também na mesa
com o fax, os papéis arrumadinhos, na revista deixada no canto - sim, aquele
Nova Gente que trazia nós dois na capa, mesma reportagem de Caras. Considerei aquilo
uma homenagem proposital dele.
Ao sair do banho, o telefone voltou a tocar. Atendi no
banheiro, espreguiçando sobre o tapete branco e alto, fofo como o pêlo de um
gato angorá:
- Becão, está se sentindo melhor?
Ele não chorava, mas sua voz era um fiapinho:
- Olha, minha cuca está no pé. O Braga, o Léo e o Galvão
(Bueno, da TV Globo) estão aqui, graças a Deus. Saímos para jantar,
conversamos, estou melhor.
Tradução: ele ia correr, e ia correr para vencer.
- Estou preparado para sentar no carro e acelerar fundo -
disse.
Seu generoso coração preparava, em segredo, uma surpresa. Em
vez da bandeira do Brasil que ele costumava acenar nos dias de vitória, já
tinha encarregado um amigo de conseguir uma bandeira da Áustria. Seria sua
homenagem ao infeliz Ratzenberger. Um iniciante na Fórmula l. Mas, para Ayrton,
não existem hierarquias nem na vida nem na morte. Ele me confidenciou seu
gesto. Juro que aí quem teve vontade de soluçar fui eu.
Disfarcei com uma certa irritação:
- Pô, quando morre alguém da família, pára tudo, não pára?
As pessoas põem luto...
Soube depois, pelos amigos, pela imprensa, que a prova de
Ímola esteve por um fio. Ayrton deu declarações públicas denunciando a
insegurança do circuito e lamentando os acidentes. Mas ele era a última pessoa
do mundo a poder comandar uma operação-boicote. Tinha perdido as duas primeiras
provas, estava atrás de resultados, qualquer atitude sua poderia ser entendida
como um pretexto para ganhar tempo, para não competir. E, se havia coisa no mundo
que Ayrton não era, era frágil e covarde. Comigo, naquela noite, às vésperas da
tragédia, ele só repetiu seu constrangimento sintomático:
- É assim mesmo, esse pessoal é assim mesmo - para logo
mudar de assunto.
A caseira interrompeu para animá-lo com o cardápio que ela
preparava para a chegada. Típico da simplicidade dele: galinha grelhada e
legumes no vapor. Peguei de novo o telefone. Falamos de nós. De saudade e de
amor. Trocamos juras apaixonadas.
- Preciso lhe dar umas palmadas - disse ele.
- Palmadas? Por quê?
- Tenho muito a lhe dizer. A lhe propor. A lhe oferecer -
prosseguiu. - Devo estar aí às 20h30, por aí. Quero passar a noite em claro.
Vamos conversar até o amanhecer. Quero convencê-la de que sou, disparado,
o melhor homem de sua vida.
Ri, com aquele comentário inesperado.
- Você não conhece os outros... - brinquei.
- Vou provar-lhe que sou o melhor.
Meu Deus, ele é o melhor homem de minha vida. O único. Será
que eu ainda não deixara isso claro para ele? Ele era uma dádiva, um presente,
um paraíso. Na nossa conversa noturna e meio bobalhona de dois enamorados,
nem de longe imaginei que houvesse espaço para a intriga ou o veneno. De nossa
parte, não havia. A paixão era nosso único alimento...
- Tenho novidades para você - anunciei, ao me despedir.
Queria contar pessoalmente. Besteirinha à toa, mas que para
mim significava suor e progresso. Ia desafiá-lo para uma corrida, tão logo ele
estivesse recuperado da canseira de Ímola.
Nenhum comentário:
Postar um comentário