Você pode imaginar o que é receber um telefonema do Ayrton
Senna e, de repente, ele desabar a chorar? Soluçava, chorava - suas palavras,
embora nítidas e claras, eram interrompidas por longos silêncios que
prenunciavam lágrimas e desespero. Assustei: tinha-o visto chorar de raiva,
como daquela vez em que voou no pescoço de um fotógrafo. Seu choro tinha sempre
a ver com o sentimento de injustiça: um maluco que lhe atravessasse o caminho
na pista, como o irlandês Eddie Irvine, um jornalista que ultrapassasse as boas
maneiras da elegância e da privacidade.
Mas aquele era um choro convulsivo, infantil, que me deixava
em pânico.
- Que que houve? Que que houve? - eu tentava entender.
Era sábado, 31 de abril de 1994. Tinha chegado à quinta da
Luiza e do Braga em Sintra pouco depois do almoço. Nem me incomodei de desfazer
as malas, porque meu destino era o Algarve. Naquela mesma noite, pegaria um
avião para Faro e iria para a nossa casa do Condomínio da Quinta do Lago. Era
uma bagagem e tanto. A idéia era essa: acompanhar com ele todos os cinco meses
da temporada européia. Do GP de San Marino, aquele 1° de maio, até o GP de
Portugal, 25 de setembro. Primavera e verão - de mais a mais, a casa do Algarve
estava reformadinha, uma lindeza, havia aquele céu azul do Mediterrâneo
contrastando com as paredes caiadas de branco e, quando era hora de trabalhar,
bastava convocar o comandante Mahonney, um inglês engraçadíssimo, tirar o avião
do hangar e nos deslocarmos para o local da próxima corrida.
Eu sonhava com a hora de envolvê-lo nos meus braços na noite
de domingo, em nossa casa - depois da prova de Ímola. Cinco meses de ensolarada
lua-de-mel. Na nossa relação, toques, olhares, expressões, até mesmo o silêncio
sempre foram muito mais valiosos do que palavras. Mas que era isso mesmo que
nos esperava, cinco meses de efervescente amor, era. Eu mal podia esperar.
Mas aí ele me surpreende com aquele seu profundo abatimento,
na véspera, assim que eu cheguei a Sintra:
- Que bom escutar sua voz - ele tentou se consolar.
- Mas me conta: como estão as coisas aí?
- Está tudo uma merda!
Só então fiquei sabendo do acidente do Rubinho Barrichello
(ele tinha acompanhado o companheiro ao hospital, ainda se sentia chocado, embora
soubesse que o piloto brasileiro estava fora de perigo).
- Uma merda! Uma merda! - repetia e soluçava.
- O caso do Rubinho?
- Não, não, um austríaco. Menino. Segunda corrida dele.
Bateu e morreu... Eu vi: morreu na minha frente... (o choro entrecortava a
história...) E o pior é que estão dizendo que ele morreu no hospital. Ele
morreu aqui... Eu vi...
De repente, de dentro de seu sincero descontrole, brota a
maior de todas as surpresas:
- Sabe de uma coisa? Eu não vou correr.
Demorei a entender:
- O quê? Não vai ter corrida?
- Você não conhece eles?
Eu já tinha um razoável conhecimento para compreender aquilo
que ele me dizia de modo meio enigmático. Quando ele desligou, corri para a
televisão. Haviam sido quinze minutos de soluços, queixas, dúvidas, raivas de
um homem que nunca se deixava levar na sua carreira senão por pensamentos
positivos. Ele estava baqueado, de verdade. Comentei com Luiza, a minha
anfitriã:
- Ele está ansioso, muito nervoso. Não vai correr. Estávamos
todos ansiosos, nervosos. Fazia doze anos que a Fórmula 1 não provocava uma
morte em plena pista. Nos telejornais, as entrevistas deixavam entrever a
surpresa, a tensão e a possibilidade do cancelamento da prova. Mas na
minha cabeça ecoava aquela frase foral do Ayrton, aquela: "Você não
conhece eles?" O show tinha de prosseguir.
A apaziguante presença da Luiza me fez cochilar no quarto, o
nosso, do anexo, da "Casa do Ayrton" - cansada que eu estava da
viagem de São Paulo para Lisboa. Também me acalmava, definitivamente,
saber que estava em San Marino, com o Ayrton, aquele que por dez anos, com o
jeito meio brincalhão de quem está só se divertindo, na verdade deu a ele a
força espiritual e afetiva de um paizão como daqueles que não se fazem mais no
mundo. O Braga estava lá, com ele, como sempre esteve. Se o desespero ou a
desilusão grudasse na alma daquele campeão da fibra e da coragem chamado Ayrton
Senna, sempre haveria aquele paizão à mão para trazê-lo de volta ao bom
senso e à realidade.
Segundo pai, conselheiro - a amizade de Braga chegava a
detalhes como o de ter de deixar na garagem da quinta de São Pedro de Sintra,
para as esporádicas visitas de Ayrton, um Honda NSX metálico igualzinho ao que
ele teve em São Paulo (depois de tudo o que aconteceu, o Honda continua na
garagem, silencioso, de luto, coberto de pó, pois o doutor Braga avisou aos
criados que não quer que ninguém toque o dedo nele).
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