O manager do hotel chamou dois valeis para me conduzirem à
suíte, o que me levou a crer que, em vez de encontrar o Ayrton, encontraria no
máximo um bilhetinho carinhoso dele, "tive compromissos, me espere",
por aí.
Abri a porta e meu coração veio à garganta. Essa coisa de
adolescente. Ele correu para mim, me apertou num abraço e me deu um beijo
escandaloso. Ficamos conversando na cama, gigantesca e convidativa, até que,
quando percebi, estava sendo despertada por ele:
- Ei, Dri, pedi uma comidinha pra nós dois... Acreditem: eu
tinha apagado de novo.
Já não sabia se era dia ou se era noite, recordo-me apenas
de umas pessoas que subiram à suíte para levar uns presentes para o Ayrton.
Percebi que todos estavam sorridentes, ele especialmente, com a vitória. Quando
saíram, ele me surpreendeu:
- Pô, fiz uma besteira.
- Besteira?
- É, discuti com um irlandês louco.
Em qualquer lugar do mundo, será sempre uma besteira discutir
com um irlandês louco.
- Esse, quem é?
- Um novato, um moleque. Sem cabeça, não sabe o que faz.
Pedi, excitada:
- Me conta, vai! Ele desconversou:
- Lindo esse seu sapato.
Era apenas um dockside, comprado no Brasil, na Side Walk.
Ele definitivamente não estava a fim de voltar a falar da corrida. Foi ótimo
porque pudemos nos entregar aos assuntos do amor.
Dormimos, dormimos - quando acordei, ele já estava de pé, ao
telefone. Comentou do meu sono:
- Nunca vi, é um milagre. Você não tem fuso horário?
- Não, meu fuso horário é você - respondi.
Pena que o meu Japão, fora aquelas intermináveis horas de
sono, tenha durado apenas um dia. Abri as janelas, vi a paisagem, linda,
imaginei as cenas típicas de cidades que eu só tinha visto em cartões-postais e
me fiz a promessa solene, naquele momento, de voltar. Ayrton ainda tinha um
encontro de negócios, do qual ele voltou com uma lata de biscoitos de morango,
com estampa do Mickey e a inscrição "Disneyworld de Tóquio". Redobrei
minha promessa de voltar ali, um dia.
Passamos o resto do dia juntos, preparando-nos para um
jantar formal e importante que teríamos aquela noite. Eu me preocupei porque
sabia que teria de enfrentar o desafio dos hashi - ou seja, comer com
pauzinhos. Rosa, minha cabeleireira de São Paulo, a única pessoa que mexe nos
meus cabelos, é nissei e várias vezes tentou me doutrinar em favor do sushi e
do sashimi e me ensinar a comer com pauzinhos. Inútil. Houve uma época em que
cheguei a pensar em trabalhar profissionalmente em Tóquio, ela teve a gentileza
de me dar uma agenda cheia de endereços, inclusive de um irmão dela: "Fica
hospedada lá, vai ser mais fácil para você".
Acabei me saindo razoavelmente com os hashi, naquele
restaurante maravilhoso, do próprio hotel, mas ao ar livre, perfumado pelos aromas
de jardim japonês, com acesso entre pontezinhas charmosas e tortuosos caminhos
de pedra. Não tive coragem de experimentar peixe cru, mas me deliciei com um
camarão feito na chapa - capturado vivo, enorme, ali mesmo num aquário. Eu
pensava: "Coitadinhos dos bichinhos". Mas foi a refeição mais
deliciosa de que me lembro em toda a minha vida - disparada na frente até
dos meus maníacos Big Macs, posso confessar. Nossos quatro anfitriões, todos
homens, curvando-se e recurvando-se em gentilezas, trouxeram de presente uma
câmera fotográfica. Estavam todos muito formais, de terno escuro e gravata.
Todos, inclusive o Ayrton. Quando nos despedimos e subimos para nossa última
noite japonesa, a primeira coisa que Béco fez foi arrancar a gravata, com força:
- Tenho ódio de terno e gravata - disse.
Não é esse, com certeza, em meio a um cenário de sutilezas
japonesas e lembranças bonitas, o melhor momento para protestar contra um
pequeno detalhe do triste dia do enterro de meu Béco. Mas vá lá: achei um
absurdo, fiquei horrorizada, quando soube que o vestiram com terno e gravata.
Quem sou eu para conhecer - e mesmo para acreditar - alguns mistérios do
universo, mas pensei, com ternura, comigo mesma:
- Se daqui do esquife ele tiver que se apresentar em algum
outro lugar, alguma outra dimensão, outra esfera, vai ficar furioso em se ver
nesses trajes.
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