sábado, 8 de junho de 2013

CAMINHO DAS BORBOLETAS - Adriane Galisteu viaja a Toquio para encontrar Ayrton Senna




Então, merecíamos uma lua-de-mel, não merecíamos? Não conheço caso de mulher nenhuma que tenha dormido tanto, antes de uma lua-de-mel. Mas, o durante, fora um pequeno incidente gástrico do noivo, foi daquelas coisas para não se esquecer nunca mais. Do lugar à conta do hotel - esta, também, literalmente inesquecível.
Para culminar, tiramos nossas férias só de amor entre o GP do Japão, em Suzuka, e o GP da Austrália, a última corrida da temporada de 1993. Tudo, ou quase tudo, até então, dera errado para o Ayrton. Pois não é que, no embalo da lua-de-mel, antes e depois, a maré virou? Lua-de-mel em dose dupla. Vitória em Suzuka, apesar de um probleminha com um iniciante que logo vou contar. E, em Adelaide, último GP em que Ayrton vestiu as cores vermelha e branca da McLaren, ele foi de novo o primeiro do pódio. Fim de temporada, vice-campeão do mundo, 73 pontos. Cinco vitórias. Para meu namorado, era pouco.
Em outubro, porém, ele já parecia estar de novo de bem com a vida. São Paulo, amigos, festas, fazenda. Propôs até que eu tirasse meu visto para os Estados Unidos,  porque, quem sabe, um dia, aquela história da Disneyworld... Estávamos tão próximos que fui levando gradativamente minhas coisas, da casa de minha tia para o apartamento da Rua Paraguai. Tipo mudança mesmo. Levei-o e o busquei de uma rápida viagem de negócios a Miami. Eu o recebi com um brinquedo-papagaio, desses que repetem o que  você diz. Presente do Dia das Crianças.
Próxima parada, Japão. Saí de São Paulo sozinha, via Los Angeles, no sábado, 22 de outubro. Desembarquei em Tóquio na manhã de segunda, 24, horário local. Botei aí, de propósito, a palavra sozinha porque o Japão já tinha ameaçado entrar na minha vida aos 14 anos. Modelo, um convite, aquelas coisas. Minha mãe foi decidida: "Muito menina. Não vai, e ponto final".
Enquanto eu voava, agora nas asas da Varig, ele voava dentro de seu McLaren. Ficaria mais alguns dias, por compromissos de negócios e para saborear a repercussão da vitória. Sua carreira no automobilismo sempre fora salpicada de griffes japonesas e pontuada por profissionais japoneses. Só um exemplo: a Honda. De 1987, na  Lotus, a 1992, na McLaren, os motores Honda foram seus parceiros nas inúmeras vezes em que subiu ao pódio - sem falar de seus três campeonatos mundiais, em 1988,  1990 e 1991. Osamu Goto, inspirador do vitorioso projeto Honda F1, ganhara do difícil Senna um total respeito por sua competência. Soichiro Honda, o boss da companhia,  gostava de marcar presença nos eventos sociais da Fórmula 1. Quando Akimasa Yasuoka anunciou ao final da temporada de 1992 que a Honda não queria mais gastar milhões  de dólares na Fórmula 1 - Ayrton me contou que foi um dos que choraram, junto com tantos mecânicos japoneses.
Continuou em 1993 recebendo toneladas de cartas de fãs japoneses - tinha uma enorme legião de adeptos, torcedores, amigos no país. Escrevia uma coluna no Tokyo Chunichi  Sports, o jornal esportivo de maior tiragem. Sem se esquecer de que a admiração sempre foi recíproca. Muitas vezes, quando nos aventurávamos por ilhas desconhecidas da baía de Angra, trilhávamos caminhos arborizados quase selvagens, atravessávamos inesperados riachos, Béco gostava de dizer:
- Bonito, né? Pois é, me lembra o Japão.
Angra é um dos poucos santuários da mata atlântica.
Um botânico diria que não tem nada a ver, absolutamente nada, com qualquer paisagem do Japão, talvez apenas um ou outro lugar bem ao sul do arquipélago japonês. Ainda assim, Ayrton gostava de comparar. Depois de minha viagem, consegui entender por quê, para ele, uma coisa lembrava a outra. Ele não comparava cenários. É que beleza chama beleza. Assim era o Japão para ele.
Ao se antecipar a mim, em Tóquio, em outubro, ele me poupava de formalíssimos jantares de negócio, mas eu ainda cheguei a tempo de recolher o calor humano que o Japão lhe dedicava.
Ainda em Cumbica, mal tinha embarcado, a aeromoça me ofereceu uma taça de champanhe - escolhi um copo d'água -, comecei a ouvir, já entorpecida, aqueles avisos de afivelar os cintos, esperei apenas que a aeronave se estabilizasse na sua altura de cruzeiro, inclinei a poltrona para trás, fechei os olhos e despertei com o anúncio de que, em poucas horas, estaríamos pousando em nossa escala em Los Angeles. Desci a contragosto. Encostei numa daquelas cadeiras de aeroporto e voltei a ferrar no sono - tão profundamente que uma comissária veio me despertar. Novo embarque, novo desmaio. A bem da verdade, em 28 horas de viagem, devo ter aberto os olhos e trocado o travesseiro de lado uma meia dúzia de vezes, mas foi um sono só, impregnado de imagens, um entorpecimento de drogado. Ou talvez eu apenas estivesse muito  bem com a vida.
A realidade, a rigor, só bateu no meu rosto quando, já na confusão do aeroporto de Narita, sem perder de vista aquele chapeuzinho do cantor Fagner, que eu vira no vôo, um guarda da alfândega resolveu pegar no meu pé. Eu já estava nervosa. Minhas malas, cheias de creminhos, custaram a aparecer. Agora, o guarda queria ver tudo. Falou em japonês - eu, nada. "Speak English?" "No, no." Abriu um livro, enorme, com várias perguntas em espanhol:
- Você tem drogas? Tem roupas para vender?
Pediu para abrir minha bolsa - aquela Louis Vuitton, enorme, que o Ayrton me deu e que depois foi roubada em Lisboa. Ah, o guarda tinha o pretexto: uma caixa  de bombons de cereja, da Kopenhagen, que Béco adorava. Criada a confusão: pode, não pode. Um brasileiro veio me ajudar da forma mais objetiva possível, em português mesmo:
- Namorada do Ayrton Senna. Senna, Senna. Williams, Williams.
O implicante me devolveu logo a caixa de bombons e saiu correndo para comentar com os outros coisas incompreensíveis, das quais eu entendia apenas "Senna" ou "Brasil". A definitiva salvaguarda estava assegurada por um sorriso familiar e um cabelinho espetado que me aguardava do lado de fora. Norio, o fotógrafo particular do Ayrton, fora me esperar. Animado, sacudia uns jornais japoneses que para mim eram grego. Mas deu para sacar que Ayrton tinha vencido. Cumprimentei o Norio com  um abraço e com a meia dúzia de palavras em inglês que ele e eu podíamos trocar. Entrei no táxi, senti o acalanto daquela pista sem trepidações e dormi mais uma horinha. Era manhã de segunda-feira quando o Norio me deixou no hotel Hilton Tokyo Bay. Bem diante da Disneylândia de Tóquio. Era maravilhoso, dava para ver o castelo.


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