Então, merecíamos uma lua-de-mel, não merecíamos? Não
conheço caso de mulher nenhuma que tenha dormido tanto, antes de uma
lua-de-mel. Mas, o durante, fora um pequeno incidente gástrico do noivo,
foi daquelas coisas para não se esquecer nunca mais. Do lugar à conta do hotel
- esta, também, literalmente inesquecível.
Para culminar, tiramos nossas férias só de amor entre o GP
do Japão, em Suzuka, e o GP da Austrália, a última corrida da temporada de
1993. Tudo, ou quase tudo, até então, dera errado para o Ayrton. Pois não é
que, no embalo da lua-de-mel, antes e depois, a maré virou? Lua-de-mel em dose
dupla. Vitória em Suzuka, apesar de um probleminha com um iniciante que logo
vou contar. E, em Adelaide, último GP em que Ayrton vestiu as cores vermelha e
branca da McLaren, ele foi de novo o primeiro do pódio. Fim de temporada,
vice-campeão do mundo, 73 pontos. Cinco vitórias. Para meu namorado, era pouco.
Em outubro, porém, ele já parecia estar de novo de bem com a
vida. São Paulo, amigos, festas, fazenda. Propôs até que eu tirasse meu visto
para os Estados Unidos, porque, quem sabe, um dia, aquela história da
Disneyworld... Estávamos tão próximos que fui levando gradativamente minhas
coisas, da casa de minha tia para o apartamento da Rua Paraguai. Tipo mudança
mesmo. Levei-o e o busquei de uma rápida viagem de negócios a Miami. Eu o
recebi com um brinquedo-papagaio, desses que repetem o que você diz.
Presente do Dia das Crianças.
Próxima parada, Japão. Saí de São Paulo sozinha, via Los
Angeles, no sábado, 22 de outubro. Desembarquei em Tóquio na manhã de segunda,
24, horário local. Botei aí, de propósito, a palavra sozinha porque o Japão já
tinha ameaçado entrar na minha vida aos 14 anos. Modelo, um convite,
aquelas coisas. Minha mãe foi decidida: "Muito menina. Não vai, e ponto
final".
Enquanto eu voava, agora nas asas da Varig, ele voava dentro
de seu McLaren. Ficaria mais alguns dias, por compromissos de negócios e para
saborear a repercussão da vitória. Sua carreira no automobilismo sempre fora
salpicada de griffes japonesas e pontuada por profissionais japoneses. Só um
exemplo: a Honda. De 1987, na Lotus, a 1992, na McLaren, os motores Honda
foram seus parceiros nas inúmeras vezes em que subiu ao pódio - sem falar de
seus três campeonatos mundiais, em 1988, 1990 e 1991. Osamu Goto,
inspirador do vitorioso projeto Honda F1, ganhara do difícil Senna um total
respeito por sua competência. Soichiro Honda, o boss da companhia, gostava
de marcar presença nos eventos sociais da Fórmula 1. Quando Akimasa Yasuoka
anunciou ao final da temporada de 1992 que a Honda não queria mais gastar
milhões de dólares na Fórmula 1 - Ayrton me contou que foi um dos que
choraram, junto com tantos mecânicos japoneses.
Continuou em 1993 recebendo toneladas de cartas de fãs
japoneses - tinha uma enorme legião de adeptos, torcedores, amigos no país.
Escrevia uma coluna no Tokyo Chunichi Sports, o jornal esportivo de maior
tiragem. Sem se esquecer de que a admiração sempre foi recíproca. Muitas vezes,
quando nos aventurávamos por ilhas desconhecidas da baía de Angra, trilhávamos
caminhos arborizados quase selvagens, atravessávamos inesperados riachos, Béco
gostava de dizer:
- Bonito, né? Pois é, me lembra o Japão.
Angra é um dos poucos santuários da mata atlântica.
Um botânico diria que não tem nada a ver, absolutamente
nada, com qualquer paisagem do Japão, talvez apenas um ou outro lugar bem ao
sul do arquipélago japonês. Ainda assim, Ayrton gostava de comparar. Depois de
minha viagem, consegui entender por quê, para ele, uma coisa lembrava a outra.
Ele não comparava cenários. É que beleza chama beleza. Assim era o Japão para
ele.
Ao se antecipar a mim, em Tóquio, em outubro, ele me poupava
de formalíssimos jantares de negócio, mas eu ainda cheguei a tempo de recolher
o calor humano que o Japão lhe dedicava.
Ainda em Cumbica, mal tinha embarcado, a aeromoça me
ofereceu uma taça de champanhe - escolhi um copo d'água -, comecei a ouvir, já
entorpecida, aqueles avisos de afivelar os cintos, esperei apenas que a
aeronave se estabilizasse na sua altura de cruzeiro, inclinei a poltrona para
trás, fechei os olhos e despertei com o anúncio de que, em poucas horas,
estaríamos pousando em nossa escala em Los Angeles. Desci a contragosto.
Encostei numa daquelas cadeiras de aeroporto e voltei a ferrar no sono - tão
profundamente que uma comissária veio me despertar. Novo embarque, novo
desmaio. A bem da verdade, em 28 horas de viagem, devo ter aberto os olhos e
trocado o travesseiro de lado uma meia dúzia de vezes, mas foi um sono só,
impregnado de imagens, um entorpecimento de drogado. Ou talvez eu apenas
estivesse muito bem com a vida.
A realidade, a rigor, só bateu no meu rosto quando, já na
confusão do aeroporto de Narita, sem perder de vista aquele chapeuzinho do
cantor Fagner, que eu vira no vôo, um guarda da alfândega resolveu pegar no meu
pé. Eu já estava nervosa. Minhas malas, cheias de creminhos, custaram a
aparecer. Agora, o guarda queria ver tudo. Falou em japonês - eu, nada.
"Speak English?" "No, no." Abriu um livro, enorme, com
várias perguntas em espanhol:
- Você tem drogas? Tem roupas para vender?
Pediu para abrir minha bolsa - aquela Louis Vuitton, enorme,
que o Ayrton me deu e que depois foi roubada em Lisboa. Ah, o guarda tinha o
pretexto: uma caixa de bombons de cereja, da Kopenhagen, que Béco
adorava. Criada a confusão: pode, não pode. Um brasileiro veio me ajudar da
forma mais objetiva possível, em português mesmo:
- Namorada do Ayrton Senna. Senna, Senna. Williams, Williams.
O implicante me devolveu logo a caixa de bombons e saiu
correndo para comentar com os outros coisas incompreensíveis, das quais eu
entendia apenas "Senna" ou "Brasil". A definitiva
salvaguarda estava assegurada por um sorriso familiar e um cabelinho espetado
que me aguardava do lado de fora. Norio, o fotógrafo particular do Ayrton, fora
me esperar. Animado, sacudia uns jornais japoneses que para mim eram grego. Mas
deu para sacar que Ayrton tinha vencido. Cumprimentei o Norio com um
abraço e com a meia dúzia de palavras em inglês que ele e eu podíamos trocar.
Entrei no táxi, senti o acalanto daquela pista sem trepidações e dormi mais uma
horinha. Era manhã de segunda-feira quando o Norio me deixou no hotel Hilton
Tokyo Bay. Bem diante da Disneylândia de Tóquio. Era maravilhoso, dava para ver
o castelo.
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