- Ai, que bom! Ele vai voltar mais cedo para casa. Foi um
relâmpago na minha cabeça - um pensamento egoísta, com certeza estúpido, talvez
inconseqüente. Mas, por um segundo, tive este flash de esperança: ele
arrancaria luvas e capacete, sairia do carro carregando aquela cara de garoto
ofendido tão familiar por ocasião das derrotas, se recomporia, fugiria às
carreiras do autódromo e das entrevistas, já encontraria o comandante Mahonney
esperando por ele no aeroporto, com a turbina ligada, e em questão de horas
estaria se jogando nos meus braços, em outro país, em nossa casa, no Algarve,
em Portugal.
O impacto do carro no muro ganhava bis e mais bis na
tevê. Curva Tamburello, o nome do lugar, repisavam os comentaristas. Era uma
tomada a distância - e a distância o que dava para ver era a lateral direita do
Williams azul razoavelmente amassada, uma roda perdida, nada que sugerisse
alguma coisa mais grave do que batidas parecidas com aquelas das quais ele já
tinha se livrado, são e salvo. Outra imagem da tevê mostrava com clareza o
momento em que o Williams se desgarrou da pista, em alta velocidade, e sumiu do
campo de visão da câmera acoplada ao carro que o seguia, o do alemão Schumacher.
Dei um salto do sofá, ainda
segurando o prato do almoço na mão - franguinho diet, legumes, para manter a forma.
Minha única companhia, naquele casarão enorme, era Juraci, a caseira.
Expectativa: mas por que demorava tanto o socorro? Bandeiras amarelas
agitavam-se nas proximidades, mas ninguém acudia o piloto acidentado. As
câmeras da televisão italiana, mal localizadas, também pareciam manter um
distante desinteresse pelo que tinha acontecido.
Minutos de espera - na verdade, me
pareceram horas. Minha taxa de adrenalina foi subindo, mas confesso que não me
desesperei de cara. Tinha certeza de vê-lo, de repente, desatando o cinto de
segurança e saltando, lépido, para fora daquela carcaça meio estropiada,
capacete verde-amarelo debaixo do braço, enfezado, a caminho dos boxes.
Nada. O primeiro carro de socorro
enfim se aproxima. Nada. A narrativa do locutor da televisão inglesa começa a
dar sinais de ansiedade. Nada. Eu só gritava: - Mas o que eles estão esperando?
Perdi a fome. Colei os olhos no
telão, enquanto o helicóptero com um cinegrafista a bordo tentava, enfim,
buscar uma imagem mais próxima. A coisa tinha sido pior do que eu imaginara.
Mas eu nunca teria imaginado o pior - e ainda me recusava a imaginar.
- Deve ter
quebrado os braços, ou uma perna - comentei, não sei mais se para mim mesma ou
em voz alta. Buscava a única explicação possível, um consolo, para a cena
inesperada. O Béco que eu conhecia tinha pavor de se machucar. Era cair de um
jet-ski, em Angra, ou escorregar na quadra de tênis, em Sintra, para ele parar
tudo, checar músculos e articulações, pedir uma massagem rapidinha - meticuloso
em seu preparo invejável, ele não tinha a menor vontade ou vocação para entrar
em contato físico com a dor.
- Sai do carro, sai - tinha ímpetos de gritar, e gritava.
Ele não saía. Pensei: desmaiou. Mas o ligeiro movimento de cabeça, meio para a
esquerda, que a câmera captou, deu força a minha teoria: ele pedia ajuda,
implorava para que o retirassem dali. O amontoado de gente sobre ele, as
frestas de imagem mostradas em meio ao atendimento, a aflitiva movimentação dos
paramédicos, os comentários nervosos dos locutores foram desenhando na minha
alma, lenta, lentíssima, muito lentamente, o painel do pânico. Eu continuava de
pé, na sala de tevê, imóvel, em silêncio, quando começou a me subir do
estômago, ou de um lugar qualquer situado entre o estômago e o esôfago, uma
coisa esquisita, entre um grito e um soluço. Vi os pés dele. Sem movimento. Era
a revelação fatal. Sou expert na linguagem dos pés. Eles me dizem tudo. O que
os pés dele me diziam, naquela hora, era a mais terrível de todas as coisas.
Soltei
meu desespero, pranto, berro, medo, inconformidade - mas ainda um quê de
esperança, por que não? Aí, pela reação em torno, é que percebi que já não
estava sozinha naquela sala, que a Juraci berrava, que os vizinhos tinham
acorrido, que cães latiam assustados, que o telefone tocava. Uma sinfonia
fúnebre se instalava na casa em que eu, na minha santa ingenuidade, pensava
vê-lo chegar aquela noite, mais cedo, com aquele sorriso lindo, pronto para um
reencontro que já demorava quase um mês.
Jamais passou pela minha cabeça a idéia de que o palco onde
ele foi três vezes rei poderia ser ó mesmo de sua morte. Nunca se pensou que
Ayrton Sena morreria numa pista de corrida. Nem eu nem ninguém. Ele vivia do
risco da velocidade extrema, mas o seu talento incomparável parecia ter
eliminado, da cabeça de todos os seus adeptos do mundo inteiro, essa sinistra
possibilidade. Ele até que talvez pudesse pensar. Mas essa era a natureza de
seu trabalho - que ele conhecia melhor do que ninguém.
Depositaram o corpo dele, inerte, sobre a pista de Ímola - e
eu continuava ignorando a hipótese do pior. Uma mancha vermelha no chão, da cor
do sangue, me apavorou. Mas uma alma piedosa me enganou:
- Não é nada, não. É uma espuma nova que estão usando,
contra incêndio.
Acreditei.
AYRTON ESTÁ EM ESTADO GRAVE - http://ayrtonsennavive.blogspot.com.br/2013/06/caminho-das-borboletas-ayrton-esta-em.html
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