segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Adriane Galisteu Enfrenta a Dura Realidade de Viver Sem Seu Grande Amor Ayrton Senna

Adriane conta no livro "Caminho das Borboletas" como foram seus dias após enterrar seu grande amor Ayrton Senna. As angustias, os medos, a tristeza e a saudade, são alguns dos sentimentos que inundaram o coração de Adriane.

A tristeza e sofrimento de Adriane por ter perdido seu amor
Sintra, Portugal 1994

Trecho extraído do livro "Caminho das Borboletas":

Era azul, todo azul, o meu quarto na fazenda Guariroba, para onde a Luiza e o Braga me levaram, quase pela mão, como se eu fosse uma criancinha desvalida. Azul - a cor preferida dele. Bateu, de cara, a desesperadora compreensão do que me esperava daí para a frente: viver plenamente Ayrton Senna sem ter Ayrton Senna. Tudo ia me fazer lembrar dele; nada eu iria ter em troca de sua ausência.

Um senhor que não me conhecia havia me colocado, na  véspera, depois do enterro, num gesto de simples generosidade, diante do meu day after. Almoçávamos - a Betise, Birgit e o marido, Christian, e eu - no Maksoud, quando esse senhor me reconheceu, levantou-se de sua mesa e,  pedindo mil desculpas, me deu uma coisinha embrulhada  num pacotinho.

- Não é nada, é só um símbolo - ele me disse.

Era um chaveiro em forma de coração, dourado.

- Você perdeu isso. Mas você vai se refazer - despediu-se.

chaveiro em formato de coração dourado
imagem ilustrativa

O coraçãozinho ingênuo, o quarto azul da fazenda, a cama de casal e os sonhos de todos os dias - ah, os sonhos! Ele sempre vivo; muitas vezes em lugares que lembravam um quarto de hotel, malas empilhadas; ou naquela cena típica dele de falar ao telefone. De repente, ele ia sumindo e ia ficando difícil alcançá-lo. Ou  ele se atrasava. Sempre nós dois muito próximos, só que eu não conseguia nunca tocar nele. Ou então nós dois numa lagoa linda, com muito peixe, ele me chamando a atenção para as cores de um, a beleza de outro, e, sem mais nem menos, a água virava uma escada, que descia para um porão, onde ele me esperava, encostado nessa escada. E quando eu, eufórica, corria para mergulhar nos braços dele, despertei.

Acordava sempre com um travo de frustração e uma dor de saudade. Mas mesmo um sonho que eu não podia agarrar, ou parar no tempo, me trazia o consolo de sua imagem e de lembranças de coisas vividas por nós. O sonho da lagoa, por exemplo, me fez voltar a uma noite nossa no Algarve. Madrugada alta, desperto com uns gritos dele:

- Pega o peixe... Olha lá... Ali na frente... Pega o peixe!

Ele estava sentado na cama, berrando, mas com os olhos de um sonâmbulo. Tentei acalmá-lo. Abracei-o e disse:

- Tá bom, peguei o peixe.

Sempre de olho fechado, ele relaxou:

- Então, guarda o peixe.

E voltou a dormir.

Na fazenda, passei a ter medo das noites e dos sonhos. Trouxe minha mãe para perto de mim. Queria que ela ficasse acordada a meu lado, vendo um vídeo atrás do outro, até que as minhas forças cedessem. De dia, voltei a correr. Quarenta e cinco minutos. Falava em voz alta, enquanto  corria:

- Tá vendo? Fica aqui do meu lado. Era isso que eu queria mostrar para você: que podia correr com você...  Descobri um caminho que eu chamava de trilha das borboletas. Antes de ir embora, Braga fez um giro por toda a fazenda comigo e fiquei deslumbrada com aquele lugar, perto de uma cachoeira, muitas árvores serpenteando por um caminho natural e uma quantidade incrível de borboletas, de todas as cores, de todos os tamanhos, de desenhos diferentes, tantas que você corria e elas vinham de encontro a você. No caminho das borboletas tinha uma pedra.

Grande e lisa. Não sei por que a escolhi entre tantos lugares tão bonitos da fazenda, mas era passar ali e me vinha à cabeça aquela idéia do reencontro: "Béco, você podia vir me ver um dia, aparecer por aqui".

Outra coincidência dava relevo àquela pedra. Toda vez  que eu entrava no carro, para uma volta em Campinas ou nas redondezas, tinha alguns CDs à mão. Simone, Phil Collins. Também deles eu tinha pânico - com certeza, iam me remeter para algumas situações muito especiais passadas com ele. Mas tinha um Milton Nascimento, velhíssimo, ou tipo os melhores momentos, não sei - só sei que era Milton direto, Milton, não, só aquela música dele, muito antiga, que me disseram chamar Travessia, que dizia coisas como "solto a voz nas estradas, eu não posso parar; meu caminho é de pedra..." Outro trecho impressionante: "Eu não quero mais a morte". Como aquilo me tocava. Não querer a morte era manter a memória dele viva - foi nesse exato momento que eu decidi deixar para a posteridade as coisas que eu conto agora.

No dia da despedida da Guariroba, antes de seguir para o Rio e, depois, para Lisboa, voltei lá na pedra. Eram cinco da tarde, mais ou menos, de um dia muito frio; o sol já quase não se manifestava e eu quis passear, dar um adeus àquele lugar que tinha me dado um abrigo tão reconfortante. Com minha Bíblia na mão, me encaminhei quase automaticamente em direção à pedra. Abri o livro sagrado para ler, mas o fechei. Por mais de uma hora, eu falei. Sem parar, em voz alta - a minha própria e desesperada oração. Pedia para sair dali purificada de corpo e alma. Deixar para trás as mágoas, os maus sentimentos, revolta, dor, decepção, injustiça. Que a tempestade me fortalecesse. Aí, sim, abri a Bíblia. Por acaso, juro, no Salmo do Perdão.

Béco não apareceu naquela pedra. Mas, não sei por quê, eu o sentia perto, muito perto. Continua pertinho, aqui, do meu lado. E do lado de todos os que o amaram verdadeiramente.

FIM             


FONTE PESQUISADA

GALISTEU, Adriane. Caminho das Borboletas. Edição 1. São Paulo: Editora Caras S.A., novembro de 1994. 









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