Livio Oricchio
Do UOL - esporte.uol.com.br,
em São Paulo 28/04/2014 | 16h57
Não vi nada de diferente na rotina
do hospital quando cheguei. Imaginava que haveria gente por todo o lado a fim
de acompanhar uma eventual cirurgia em Senna. De imediato, compreendi que eu
chegara bastante cedo ao hospital, a ponto de entrar no edifício e não ver um
único jornalista. No fim de uma rampa que dá acesso a um saguão central, para
onde todos se direcionam ao entrar no hospital, vi a primeira manifestação de
que Senna estava lá.
Um policial, um Carabinieri,
estava agitadíssimo. Alguém acabara de lhe dizer que o piloto se acidentara e
há pouco havia chegado ao hospital, transportado de helicóptero. Ele tinha o
chapéu na mão e dizia: "Meu Deus, o que é isso, não existe mais piloto
como Senna, que corre com o coração".
Eu o ouvi enquanto entrava
rapidamente no saguão principal, atrás de notícias. Estava mais tenso ainda.
Mas ali não havia jeito. Se eu falhasse, provavelmente comprometeria o restante
da minha carreira naquilo que tanto me dedicara para conseguir, ou seja, cobrir
o Mundial de Fórmula 1 para a grande mídia brasileira. Cada vez que me lembrava
disso ganhava força para deixar de lado minhas emoções.
Parei de pensar também nas
reações que estavam ocorrendo no Brasil por conta do acidente de Senna, o que
colaborou para eu me controlar.
Nesse momento, vi Roberto Cabrini,
repórter da TV Globo, com quem sempre tive boa relação profissional, e, um
pouco mais tarde, Celso Itiberê, o correspondente do jornal o Globo em Milão.
No Brasil, era domingo de
manhã. Lembro-me de ter ligado para os jornais em que trabalhava, Estadão e
Jornal da Tarde, além da Agência Estado, a fim de informar ao chefe de
reportagem, Castilho de Andrade, que havia deixado o autódromo e me encontrava
no hospital.
Eu pensei comigo: se Senna
morresse, todas as atenções estariam lá na Itália, ao menos até o embarque do
corpo para o Brasil. Eu estava sozinho, seria o responsável por levar aos
leitores dos jornais da empresa um painel de informações de tudo. Era uma
grande responsabilidade.
Isso fez eu me concentrar
quase doentiamente no meu trabalho. Ao mesmo tempo, comecei a elaborar uma
estratégia de cobertura. As notícias estariam no hospital, mas também no
autódromo. Era imprescindível ouvir Frank Williams, dono da equipe de Senna,
Patrick Head e Adrian Newey, os homens que assinaram o projeto do modelo FW16
pilotado por Senna.
Médicos realmente
profissionais
Não encontrei no hospital um
único cidadão que tivesse um mínimo de sensibilidade com o que estava se
passando: um piloto de F1, ídolo em dezenas de países, mesmo na Itália, lutava
para viver e os funcionários do hospital continuavam sendo mal-educados,
grossos e desinteressados, mesmo com quem falasse em italiano com eles, como
eu.
O que faltava de bom senso a
essas pessoas sobrava nos médicos deslocados para o atendimento. Todos
solícitos e não escondendo nenhuma informação. Fomos orientados a não subir ao
11° andar, mas era impossível atender o pedido do hospital. A notícia estava
lá.
E eu não errei ao decidir
pagar para ver. Logo que sai do elevador, encontrei um médico com roupas usadas
no centro cirúrgico. "O senhor veio lá de dentro, viu o Senna, pode me
dizer alguma coisa?", perguntei, meio afobado, primariamente, imaginando
ouvir um desaforo.
Para a minha surpresa, nada
disso ocorreu. Descobri tratar-se do doutor Servadei, um dos que atendeu Senna
ainda na pista e o acompanhou, no helicóptero, até o hospital. Apesar de
profissional, ele estava abalado. Com voz baixa, começou a descrever o que
vivera naquela última hora.
Pascal Rondeau/ALLSPORT
Choque ao tirar o capacete
Ele é quem fala: "Antes
mesmo de retirar o capacete, ficamos impressionados com a quantidade de sangue
que o piloto perdia. Alguma artéria havia sido atingida com certeza e minha
primeira preocupação era, uma vez exposta a cabeça de Senna, tentar conter a
hemorragia. Quem orientou a complexa retirada do capacete foi o doutor Sid
Watkins, o médico da FIA. Mas tão logo tivemos acesso a sua cabeça, sem o
capacete e a balaclava, compreendi que Senna não sobreviveria", disse-me o
doutor Servadei.
"Vimos que a base
craniana estava aberta e ele perdia massa cefálica, cérebro, pelo corte de mais
de um centímetro de largura que corria por trás das orelhas, de lado a lado da
cabeça. Para mim, ele havia batido a cabeça no muro da curva Tamburello, em
alta velocidade. Isso explicava aquele traumatismo generalizado da caixa
craniana".
Depois de ouvir aquilo,
estava claro para mim que não havia mais o que fazer. A morte de Senna era uma
questão de tempo. Pouco tempo. Lembro-me de ter procurado um lugar para sentar
e dizer a mim mesmo que aquilo era verdade. Eu estava em choque.
Nesse instante, passou um
cidadão que, educadamente, me informou que os médicos do caso falariam no
centro de conferências do hospital, no térreo. Profundamente abatido, sem saber
o que pensar, fui para lá, sempre transportando o meu bloco de anotações e o
velho computador laptop Toshiba 1000, uma peça de museu se comparada aos que
uso hoje.
Atrás da mesa do centro de
conferência ficaram, de pé, o doutor Domenico Cosco, a doutora Maria Tereza
Fiandri, o doutor Andreolli, neurocirurgião, o doutor Servadei e o doutor
Gordini, anestesista.
Não há nada que possamos
fazer
O primeiro a falar foi
Andreolli, que descreveu o quadro como o mais traumático possível. "Não
existe uma área específica do crânio que podemos atuar para a reparação, tudo
foi danificado no acidente. O traumatismo é generalizado, bem como os danos a
todo o tecido nervoso", explicou.
Entre a minha conversa com o
doutor Servadei, no 11° andar, e o início da conferência houve um intervalo de
uma hora. Já haviam muitos repórteres no hospital para acompanhar o caso. Na
sala de conferência, pude observar até mesmo doentes de pijama, internados, que
sabiam da internação de Senna em estado de emergência. Desejavam mais notícias.
A consternação pelo anunciado
pelo doutor Andreolli foi impressionante. As pessoas tomaram consciência de que
Senna, ídolo de tanta gente, aquele que parecia imortal, morreria no máximo em
questão de horas. Entrei em contato com o nosso chefe de reportagem para
informar o que já apurara e o que viria pela frente.
Como eu teria de escrever um
volume respeitável de textos naquele dia, Castilho sugeriu que eu já enviasse o
primeiro com o que tinha até então. Achei prudente. Sentei numa das cadeiras da
sala de conferência e conectei meu laptop em uma tomada que descobrira ali,
próximo da mesa dos médicos, que já haviam deixado o local.
Comportamento irracional
Nesta hora, apareceu um
cidadão, daqueles imbecis que há pouco citei, dizendo que não poderia ficar lá.
"Vou fechar esta sala", disse, com a maior agressividade pensável. Eu
lhe pedi que me desse uns 50 minutos para redigir um texto. Isso em nada
alteraria a rotina do hospital. Outros jornalistas também manifestaram a
necessidade de trabalhar.
Quase sem olhar para nós o
indivíduo foi até o painel de controle de luzes da sala e nos ameaçou, com a
mão nas chaves elétricas: se não saíssemos de lá naquele instante desligaria a
luz do ambiente. Fechei meu laptop e fui embora.
Fui procurar o doutor
Servadei novamente, o do helicóptero, que tão gentil se mostrara. Por sorte, o
encontrei numa sala do térreo. Ele me deu mais detalhes: "A hemorragia que
Senna tinha ainda na pista era tão violenta que durante o voo nós lhe demos
litros de sangue". Ele também falou da perda de líquor, líquido
cefalorraquidiano existente entre as camadas nervosas, a fim de protegê-las.
"Em decorrência da
desaceleração sofrida pelo cérebro, Senna perdia massa cinzenta e líquor, o que
começou a deformar rapidamente suas feições".
Toda vez que essas camadas
são rompidas, o líquor, mantido sob elevada pressão entre elas, se espalha
pelas cavidades que encontra, causando o inchaço de todos os tecidos. Em outras
palavras, a cabeça de Senna estava se deformando rapidamente, ganhando volume.
Vida vegetativa
O doutor Gordini, o
anestesista, próximo ao doutor Servadei, contou-me também outra passagem
durante o voo de helicóptero até o Hospital Maggiore: "Senna teve uma
depressão respiratória importante. Nós administramos drogas que reverteram o
quadro. Mesmo que ele não tivesse sofrido todos os estragos no cérebro, decorrentes
do impacto no muro, só aquela depressão já lhe teria causado danos
irreversíveis no tecido nervoso. Ele teria apenas vida vegetativa. Seu cérebro
recebeu pouco oxigênio durante um tempo precioso. No CTI, Senna chegou a ter
uma parada respiratória. De novo, nós o reanimamos".
Observe que em nenhum momento
os médicos falaram em afundamento do frontal, causado por algum componente do
carro que se projetou na direção da cabeça no momento do impacto. Hoje,
acredita-se que a barra que conecta a manga de eixo da suspensão dianteira
direita ao conjunto mola-amortecedor, denominada push-rod, se soltou no choque
do Williams no muro e se deslocou na direção do capacete de Senna.
A seguir a barra perfurou a
viseira e pressionou a cabeça do piloto contra a parte de trás do cockpit. Essa
compressão é que teria causado a fratura da base do crânio, descrita pelo
doutor Servadei. A barra atingiu antes a artéria temporal, gerando a forte
hemorragia.
Recapitulando: pouco antes
das 16 horas eu já estava no Hospital Maggiore e conversava com o doutor
Servadei, na porta do CTI. Às 16h30 a doutora Fiandri anunciou, no centro de
conferências do hospital, que o neurocirurgião, doutor Andreoli, falaria sobre
o estado de Senna. Ficamos sabendo que não havia como intervir cirurgicamente e
que a morte era uma questão de horas.
Depois, voltei a falar com os
médicos presentes no autódromo e eles me deram mais informações do atendimento.
A doutora Fiandri, que se tornou uma espécie de porta-voz do grupo médico, nos
avisou que só se pronunciaria se tivesse "alguma novidade".
Às 17h55, ela surge novamente
no saguão principal do hospital, na porta do pronto-socorro. A esta altura, o
hospital não mais permitia o acesso ao 11° andar, onde estava Senna, no CTI.
Morte cerebral
A doutora Fiandri estava
visivelmente emocionada. Uma multidão de repórteres se aproximou para ouvi-la.
Não se manifestou até que o silêncio foi feito. Eu estava ao seu lado. Com a voz
embargada, a médica afirmou: "Senhores, o eletroencefalograma de Senna não
acusa mais atividade elétrica". Deu uma pausa. Parecia estar se
recompondo. "Senna tem morte cerebral". Saiu em completo silêncio,
devagar.
Os profissionais de imprensa
que permaneceram no autódromo, a esta altura, com o fim da corrida, já estavam
no hospital. Para a maioria, aquele foi o primeiro contato com os médicos que
cuidavam de Senna. A notícia causou comoção em todos. Quem estava lá já sabia
que o desfecho do caso seria aquele.
Uma disputa intensa pelos
telefones públicos seguiu. A telefonia celular de longa distância estava apenas
começando. Não me lembro de ver alguém com celular na época.
O comunicado da doutra
Fiandre informava, no fundo, a morte de Senna. Seu coração continuava batendo,
mas não por muito tempo. Vi pessoas chorando, entre eles jornalistas muito
emocionados também. Eu ainda não chorara, talvez por conta daquele preparo a
que me submeti, dizendo a mim mesmo que, ao menos enquanto estivesse ali, atrás
de informações, mantivesse a situação sob controle. Mas estava abalado, sem
dúvida.
Todos nós, jornalistas,
precisávamos nos comunicar com nossas bases, para, de novo, informar o
andamento das notícias. A doutora Fiandri, por exemplo, disse que só voltaria a
falar com a imprensa às 21 horas ou se "tivesse alguma novidade".
Isso depois de anunciar a morte cerebral do piloto, às 18h05.
A verdade crua e dura
Às 19h05, ela surgiu de novo,
proveniente do pronto-socorro. Não era onde estava o piloto. Com os olhos
marejados, claramente havia chorado, falou em voz pausada, carregada de emoção,
enquanto não se ouvia um ruído sequer a sua volta, apesar da presença de
centenas de jornalistas. Todos precisavam ouvir para acreditar.
"Senhores, por
favor...(tempo para respirar fundo). Desde as 18h40, Senna não registra mais
atividade cardíaca", afirmou. Nova pausa. Ninguém se manifesta, silêncio
absoluto. A doutora Fiandri sugere ter algo mais a dizer e todos se mantêm ao
seu redor. Com os olhos cheios de lágrimas, afirma delicadamente:
"Senhores, Senna está morto".
FONTE PESQUISADA
ORICCHIO, Livio. Capítulo 9: O acidente e a
morte de Senna em detalhes que você nunca viu. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/f1/ultimas-noticias/2014/04/28/capitulo-9-o-acidente-e-a-morte-de-senna-em-detalhes-que-voce-nunca-viu.htm>.
Acesso em: 04 de abril 2016.
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