segunda-feira, 13 de agosto de 2018

A VANTAGEM GENIAL DO CANHOTO


Tricampeão mundial de Fórmula 1, Ayrton Senna é mais um dos canhotos bem-sucedidos do esporte mundial

"Ayrton Senna não respondeu à provocação que fiz a ele. Apenas franziu a testa e suas sobrancellas se curvaram. E ficou na defensiva. A resposta viria depois 

Em novembro de 1983 eu tinha três páginas brancas esperando por uma reportagem sobre Ayrton Senna da Silva, um talento promissor que se preparava para entrar na Fórmula 1 e ainda assinava o nome por extenso. Já havia escrito bastante sobre ele e sua campeoníssima carreira na Fórmula Ford 3 e FF2000 e tinha louvado seus feitos, como os recordes espetaculares do Silvastone (trocadilho que misturava o sobrenome do jovem piloto ao do circuito de Silverstone). Até apostar eu tinha apostado: ele seria um sucesso na Fórmula 1. Não exatamente no carro da estréia, um Toleman meia potência, mas num futuro próximo.
Bom, então tínhamos que revelar algo de novo sobre o nosso estreante. Os ingleses nem sequer conseguiam pronunciar seu nome. Esforçavam-se, é verdade, mas o melhor que se ouvia dos seus mecanicos na Toleman era um Harryr-tonn desengonçado. Começei pelo trivial:

- Por que você acha que vai dar certo na Fórmula 1?

- Porque sou canhoto e não sou burro - me respondeu, sem titubear.

Claro que não era burro. Sua biografia de piloto e homem de negócios iriam provar o que já se sabia, mas eu queria um Senna mais inteiro, algo inédito, além do mero currículo e futura promessa da Fórmula 1.

- Bom - concordei, bancando o expert.

- Ser canhoto é vantagem. Principalmente em Mônaco, onde se fazem 2 730 trocas de marchas nas 78 voltas do grande prêmio. Significa que você, ao contrário dos demais pilotos, vai ficar com a mão boa, a esquerda, no volante metade da corrida, usando a direita livremente para cambiar à vontade.

Fiz uma pausa e provoquei.

- Mas quem garante que você não é burro?

Conheci, naquele momento, o Ayrton Senna que iria enfrentar na década seguinte. Pela primeira vez reparei no franzir da sua testa e vi as sobrancelhas formarem dois circunflexos que iria rever cada vez que ele se punha na defensiva.

- É, terei uma certa vantagem em ser canhoto e, como você mesmo disse, principalmente em Mônaco.

Depois, curvou novamente as sobrancelhas e passou a falar do carro, ignorando minha provocação.

O tempo passou, Ayrton Senna já era bicampeão quando a Fórmula 1 enveredou pelo irreversível caminho da cibernética. A grande novidade era o computador a bordo, os chips com seqüência de marchas e a inovadora caixa de cambio automática. Os oito anos de vantagem do Ayrton canhoto iam terminar, pois ser canhoto deixava de ser um privilégio sem a necessidade das sucessivas trocas de marcha. Nada mais lógico do que voltar ao assunto. Minha oportunidade veio no GP de Mônaco de 1991.

- Com o cambio automático você perdeu a vantagem de ser canhoto?

- É, acho que fica tudo igual - me respondeu, prendendo a viseira do capacete, e, já virando de costas, concluiu: - Agora somos 27 burros.

Ali, Senna devolveu a ironia guardada na geladeira por 113 grandes prêmios (quase 10 anos depois). Assimilei o golpe genial de Ayrton e me calei. O grid era limitado a 26 pilotos." 

Lemyr Martins

*texto publicado na edição de abril de 1999 da revista QUATRO RODAS 


Lemyr Martins é o jornalista brasileiro com maior número de GPs cobertos ao vivo e autor de ótimos livros, entre eles, "Uma estrela chamada Senna".

O Ayrton tinha disso: "guardar" e responder muito tempo depois, às vezes até anos depois, como aconteceu nessa provocação que Lemyr Martins fez com ele.





13/08 , Dia do Canhoto!







Ayrton Senna sendo entrevistado por Lemyr Martins








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