Ayrton Senna
O motor diesel do velho Mercedes 240 trepidava impaciente na fila
de táxis, alinhada à porta do Aeroporto da Portela. João Justino, um antigo
chauffer da embaixada sueca em Lisboa, esperava a sua vez para recolher um
cliente, na esperança de ser uma boa corrida e não daquelas que ficam logo em
Moscavide. Não ficaria desiludido. Um jovem «um pouco mal vestido, com casaco
de ganga [casaco jeans] e óculos escuros, entrou no carro e pediu-me para o levar a Sintra.» O
velho e fumegante Mercedes 240 lá cumpriu a missão e quando chegaram à porta de
um grande casarão em Sintra o cliente perguntou quanto era a corrida. O taxista
apontou para o taxímetro que marcava 2 500 dos velhos escudos. O cliente do
blusão jeans pagou com cinco notas e despediu-se. João Justino, por respeito ao
cliente, meteu as notas no bolso da camisa, sem as conferir. Só quando já
regressava a Lisboa é que o taxista percebeu que o cliente se tinha enganado e
lhe tinha pago em notas de 5 mil escudos em vez das de 500. «Ele confundiu-se.
Em vez de me dar cinco notas de 500 escudos, pagou com cinco notas de cinco
contos, dava um total de 25 contos, um balúrdio.» João Justino não caiu na
tentação e inverteu a marcha do Mercedes. Pouco depois batia à porta da Quinta
da Penalva em Sintra. Uma criada abriu a porta e Justino explicou que estava
ali para devolver o excedente. «A criada foi lá dentro e voltou com um recado
do patrão, a dizer que eu podia guardar o dinheiro. Era um prémio pela minha
honestidade e pediu-me também o meu contacto».
Mercedes 240
Foto: Ilustrativa
A partir dali João Justino
tornou-se o motorista oficial do generoso cliente, nada mais, nada menos, do
que o tricampeão do mundo de F1, Ayrton Senna, sempre que este precisava de se
deslocar em Lisboa ou não tirar o carro da garagem. O motorista chegou mesmo a
levar Ayrton Senna e Adriane Galisteu numa viagem entre Lisboa e o Algarve no
final de 1993.
Na foto, João Justino aparece ao lado do
menino Renan, filho de um casal de passageiros brasileiros, ao conceder entrevista ao site SporTV da Globo.com
A generosidade e o bom coração
de Ayrton eram características humanas, reconhecidas pelos seus amigos mais
próximos e que contrastavam com a sua desconfiança natural ou com os súbitos
ataques de mau humor, normalmente provocados pela sua lendária desconfiança ou
por ciúmes, conforme explica Domingos Piedade: «Isso era uma coisa que o Ayrton
sempre tinha – os conflitos com os amigos. Havia sempre um bocadinho de ciúme –
e comigo foi por causa de Michele Alboreto, de quem eu era manager e muito
amigo. Esteve quase dois anos só com um «bom dia, oi cara, como vai você» até
que de repente, sem explicação nenhuma, um dia tudo ficou normal e ele volta e
meia telefonava-me só para fazer conversa fiada. Lembro-me de uma noite, às 3h
da manhã, tocar o telefone da minha casa em Estugarda. Apanhei um susto e
quando fui atender do outro lado da linha era o Ayrton, naquele seu jeito: «Oi,
que coisa você está fazendo, está dormindo?» Eu, fulo da vida: «Não, cara, que
acha que eu estou fazendo às três da manhã?» E afinal aquele telefonema era só
para me dizer: «Não cara, você não imagina. Tenho que falar com você. Eu hoje
saí de manhã com o helicóptero, levei uma geladeira. Fui numa ilha, não tinha
ninguém. Você não imagina como é bom ficar na areia, onde só tem pegada de ave»
«Eu respondi: «Escuta, Becão, não dá para a gente falar disso amanhã?» «Não dá
não, tenho de falar agora». Nessa altura eu pegava no telefone e descia para o
andar de baixo, sentava-me num sofá e ficava, às três da manhã, a ouvi-lo
contar o que tinha visto na natureza e meia hora depois se despedia: «Tchau, um
beijão para você, depois a gente fala que agora vou jantar.»
Estes telefonemas National
Geographic, além de revelarem um pouco da solidão do campeão, mostram o seu
grande amor pela natureza e pelos animais. Além da fiel cadela Kinda, uma
schnauzer preta nascida no Algarve, Ayrton passava algum tempo tratar das vacas
e cavalos na fazenda de Tatuí e chegou a poupar a vida a uma galinha que uma
vizinha do Algarve oferecera a Juracy para preparar a sua famosa canja.
Depois de fechar a galinha na
garagem, Juracy foi mostrá-la a Ayrton, que estendeu a mão com um pouco de pão
que a galinha foi rapidamente debicar. Ayrton virou-se então para Juracy e
disse-lhe: «Eu não vou comer galinha que come na minha mão, devolve ela.» A
galinha morreu de velha, recordou Juracy a Ernesto Rodrigues no livro Ayrton
Senna- o herói revelado.
várias organizações de
solidariedade social, especialmente com projetos de apoio a crianças de rua em
São Paulo. Ayrton sempre preferiu manter essas doações sob anonimato, mas a
partir de 1993 elas começaram a ganhar outra expressão, quando fez uma doação
pública de 45 mil dólares a uma fundação que apoiava crianças doentes, cujo
presidente era o seu amigo Sid Watkins. Terá sido esta doação a sugerir em
Ayrton e na sua irmã Viviane a ideia de criar uma entidade que pudesse
organizar o apoio a crianças e que acabaria por se transformar, após a morte do
piloto, no Instituto Ayrton Senna, que gere o legado do piloto em favor de
crianças desprotegidas, tendo prestado auxílio a mais de 200 mil crianças
brasileiras. Foi também nesse ano que foi lançada a banda desenhada com o herói
das corridas Senninha, mais um herói da criançada, com vilão e namorada
loirinha.
*Senninha foi lançado em janeiro de 1994, e não em 1992.
A namorada loirinha não era
Cristine Ferracciu de quem Ayrton se separou naquele final de ano de 1992,
ficando livre para mais umas recaídas com Xuxa e, sobretudo, para um ano de
descomprometimento e libertinagem. Alguns amigos mais próximos consideram que
1992 foi o ano mais wild thing de Ayrton Senna fora das
pistas. Era frequente vê-lo sempre acompanhado por diferentes beldades nos
clubes mais badalados de São Paulo, Rio de Janeiro ou na sua privada discoteca
em Angra dos Reis. Dançava até de madrugada bebendo o seu whisky preferido
– Haig Gold Label – e depois saía sempre muito bem acompanhado. Naquele ano,
Ayrton Senna não chegaria ao recorde de James Hunt, mas não seria por falta de
esforço.
A vida de playboy no
longo verão brasileiro estava prestes a terminar e o tricampeão do mundo de
Fórmula 1 sabia que a temporada de 1992 não ia ser moleza.
*Em 2013, João Justino concedeu uma entrevista ao site do SporTV da Globo.com. Confira!
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