segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Libertinagem e bom coração

Ayrton Senna

O motor diesel do velho Mercedes 240 trepidava impaciente na fila de táxis, alinhada à porta do Aeroporto da Portela. João Justino, um antigo chauffer da embaixada sueca em Lisboa, esperava a sua vez para recolher um cliente, na esperança de ser uma boa corrida e não daquelas que ficam logo em Moscavide. Não ficaria desiludido. Um jovem «um pouco mal vestido, com casaco de ganga [casaco jeans] e óculos escuros, entrou no carro e pediu-me para o levar a Sintra.» O velho e fumegante Mercedes 240 lá cumpriu a missão e quando chegaram à porta de um grande casarão em Sintra o cliente perguntou quanto era a corrida. O taxista apontou para o taxímetro que marcava 2 500 dos velhos escudos. O cliente do blusão jeans pagou com cinco notas e despediu-se. João Justino, por respeito ao cliente, meteu as notas no bolso da camisa, sem as conferir. Só quando já regressava a Lisboa é que o taxista percebeu que o cliente se tinha enganado e lhe tinha pago em notas de 5 mil escudos em vez das de 500. «Ele confundiu-se. Em vez de me dar cinco notas de 500 escudos, pagou com cinco notas de cinco contos, dava um total de 25 contos, um balúrdio.» João Justino não caiu na tentação e inverteu a marcha do Mercedes. Pouco depois batia à porta da Quinta da Penalva em Sintra. Uma criada abriu a porta e Justino explicou que estava ali para devolver o excedente. «A criada foi lá dentro e voltou com um recado do patrão, a dizer que eu podia guardar o dinheiro. Era um prémio pela minha honestidade e pediu-me também o meu contacto». 

Mercedes 240
Foto: Ilustrativa

A partir dali João Justino tornou-se o motorista oficial do generoso cliente, nada mais, nada menos, do que o tricampeão do mundo de F1, Ayrton Senna, sempre que este precisava de se deslocar em Lisboa ou não tirar o carro da garagem. O motorista chegou mesmo a levar Ayrton Senna e Adriane Galisteu numa viagem entre Lisboa e o Algarve no final de 1993. 



Na foto, João Justino aparece ao lado do menino Renan, filho de um casal de passageiros brasileiros, ao conceder entrevista ao site SporTV da Globo.com

A generosidade e o bom coração de Ayrton eram características humanas, reconhecidas pelos seus amigos mais próximos e que contrastavam com a sua desconfiança natural ou com os súbitos ataques de mau humor, normalmente provocados pela sua lendária desconfiança ou por ciúmes, conforme explica Domingos Piedade: «Isso era uma coisa que o Ayrton sempre tinha – os conflitos com os amigos. Havia sempre um bocadinho de ciúme – e comigo foi por causa de Michele Alboreto, de quem eu era manager e muito amigo. Esteve quase dois anos só com um «bom dia, oi cara, como vai você» até que de repente, sem explicação nenhuma, um dia tudo ficou normal e ele volta e meia telefonava-me só para fazer conversa fiada. Lembro-me de uma noite, às 3h da manhã, tocar o telefone da minha casa em Estugarda. Apanhei um susto e quando fui atender do outro lado da linha era o Ayrton, naquele seu jeito: «Oi, que coisa você está fazendo, está dormindo?» Eu, fulo da vida: «Não, cara, que acha que eu estou fazendo às três da manhã?» E afinal aquele telefonema era só para me dizer: «Não cara, você não imagina. Tenho que falar com você. Eu hoje saí de manhã com o helicóptero, levei uma geladeira. Fui numa ilha, não tinha ninguém. Você não imagina como é bom ficar na areia, onde só tem pegada de ave» «Eu respondi: «Escuta, Becão, não dá para a gente falar disso amanhã?» «Não dá não, tenho de falar agora». Nessa altura eu pegava no telefone e descia para o andar de baixo, sentava-me num sofá e ficava, às três da manhã, a ouvi-lo contar o que tinha visto na natureza e meia hora depois se despedia: «Tchau, um beijão para você, depois a gente fala que agora vou jantar.»

Estes telefonemas National Geographic, além de revelarem um pouco da solidão do campeão, mostram o seu grande amor pela natureza e pelos animais. Além da fiel cadela Kinda, uma schnauzer preta nascida no Algarve, Ayrton passava algum tempo tratar das vacas e cavalos na fazenda de Tatuí e chegou a poupar a vida a uma galinha que uma vizinha do Algarve oferecera a Juracy para preparar a sua famosa canja. 

Depois de fechar a galinha na garagem, Juracy foi mostrá-la a Ayrton, que estendeu a mão com um pouco de pão que a galinha foi rapidamente debicar. Ayrton virou-se então para Juracy e disse-lhe: «Eu não vou comer galinha que come na minha mão, devolve ela.» A galinha morreu de velha, recordou Juracy a Ernesto Rodrigues no livro Ayrton Senna- o herói revelado. 

várias organizações de solidariedade social, especialmente com projetos de apoio a crianças de rua em São Paulo. Ayrton sempre preferiu manter essas doações sob anonimato, mas a partir de 1993 elas começaram a ganhar outra expressão, quando fez uma doação pública de 45 mil dólares a uma fundação que apoiava crianças doentes, cujo presidente era o seu amigo Sid Watkins. Terá sido esta doação a sugerir em Ayrton e na sua irmã Viviane a ideia de criar uma entidade que pudesse organizar o apoio a crianças e que acabaria por se transformar, após a morte do piloto, no Instituto Ayrton Senna, que gere o legado do piloto em favor de crianças desprotegidas, tendo prestado auxílio a mais de 200 mil crianças brasileiras. Foi também nesse ano que foi lançada a banda desenhada com o herói das corridas Senninha, mais um herói da criançada, com vilão e namorada loirinha. 

*Senninha foi lançado em janeiro de 1994, e não em 1992.

A namorada loirinha não era Cristine Ferracciu de quem Ayrton se separou naquele final de ano de 1992, ficando livre para mais umas recaídas com Xuxa e, sobretudo, para um ano de descomprometimento e libertinagem. Alguns amigos mais próximos consideram que 1992 foi o ano mais wild thing de Ayrton Senna fora das pistas. Era frequente vê-lo sempre acompanhado por diferentes beldades nos clubes mais badalados de São Paulo, Rio de Janeiro ou na sua privada discoteca em Angra dos Reis. Dançava até de madrugada bebendo o seu whisky preferido – Haig Gold Label – e depois saía sempre muito bem acompanhado. Naquele ano, Ayrton Senna não chegaria ao recorde de James Hunt, mas não seria por falta de esforço. 

A vida de playboy no longo verão brasileiro estava prestes a terminar e o tricampeão do mundo de Fórmula 1 sabia que a temporada de 1992 não ia ser moleza. 

*Em 2013, João Justino concedeu uma entrevista ao site do SporTV da Globo.com. Confira!


FONTE PESQUISADA

PELEJÃO, Rui. A paixão de Senna. Edição 1. Editora Leya Portugal. S.A., julho de 2014. 

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