terça-feira, 23 de outubro de 2018

Os últimos dias no Algarve



26 de abril de 1994, 16h00. Um helicóptero levanta do Aeródromo de Tires. A bordo, Ayrton Senna acena simpaticamente para a câmara de filmar. José Pinto, jornalista da RTP requisitara um helicóptero a um amigo para filmar a participação de Senna na gravação de um spot publicitário para a Sega. «Mantínhamos uma boa relação e disse-me porque é que eu não aproveitava e ia com ele no seu avião para Imola. Já tinha tudo tratado com as viagens da RTP e acabei por recusar», recorda o comentador de F1 e autor dos programas «Rotações» e «Máquinas».

O helicóptero de Ayrton Senna levava-o de volta ao Algarve, à sua Casa da Quinta do Lago, condomínio de luxo que André Jordan criara uns anos antes e onde Ayrton podia gozar da privacidade, do contacto com a natureza e do clima ameno para fazer o seu escrupuloso jogging. A casa da Quinta do Lago, avaliada atualmente em dez milhões de euros, era uma espécie de réplica europeia da sua casa em Angra dos Reis.

Ao contrário do que era habitual, Ayrton passava cada vez mais tempo no Algarve, sob os cuidados da fiel Juracy, que lhe preparava as lendárias canjas de galinha, cuidava da casa e do jardim e ainda lhe servia de competente motorista. Tudo aquilo que Ayrton chamava de «dieta espiritual» e que lhe permitia descomprimir como em nenhum outro lugar.

Ayrton parecia fugir da pressão familiar, que aumentava à medida que a sua relação com Adriane Galisteu parecia evoluir para coisa mais séria. Apenas a mãe, Neyde, parecia aceitar a relação com a plebeia de São Paulo.



Já que Ayrton se refugiava na Europa, a pressão familiar decidiu vir ter com ele, sob a forma do seu irmão Leonardo, que iria acompanhá-lo ao GP de São Marino – talvez uma das razões pelas quais Ayrton preferiu que Adriane fosse esperar por ele ao Algarve, evitando conflitos e a exposição da sua vida privada no paddock de línguas afiadas.



Ayrton estava certo. A missão do seu irmão Leonardo era convencê-lo de que aquela relação com Adriane era um erro. Naquela noite, durante o jantar preparado por Juracy, os dois irmãos discutiram, o que deixou Ayrton perturbado e irritado – ele não conseguia entender a animosidade da sua família com Adriane. O que fizera soar os alarmes fora um Fiat Uno prateado que Ayrton oferecera a Adriane e que despoletou no pai Milton uma preocupação explicada por António Almeida Braga, o Braguinha: «O Miltão achava que todo o mundo que se aproximava do Ayrton tinha interesses, queria tirar vantagens. Bastava um relacionamento durar mais para ele não gostar.» Agora sabemos de quem Ayrton herdou o seu caráter desconfiado.

No dia seguinte, 27 de abril, uma quarta-feira, Ayrton acordou mais bem disposto, apesar da hora madrugadora. Senna gostava de dormir 10 a 12 horas quando não estava nas corridas – aí não dormia mais de quatro horas.

Na sua espaçosa suíte no Algarve não podia entrar nem um ponto de luz. Ayrton sofria de fotofobia e tivera de ser a própria Juracy a isolar milimetricamente todas as fontes de luz que pudessem perturbar o sono do seu patrão. Ayrton não ficou totalmente satisfeito, porque descortinou um minúsculo ponto de luz pelas frestas do armário. Em entrevista a Monica Bergamo da revista Playboy, Ayrton confessou que costumava ser assaltado por um sonho: «Por vezes sonho que tenho um acidente, outras que estou oferecendo um bouquet de flores para a minha namorada». 

Naquela manhã solarenga, Senna acordou bem disposto e disse a Juracy: «Já viu como a vida é bela quando a gente se sente bem?». Depois de tomarem o pequeno-almoço no terraço junto à piscina, ele e o seu irmão foram conduzidos por Juracy até ao Aeroporto de Faro. Na pista, o comandante Owen O ´ Mahoney esperava por ele com o seu BAe HS125 jet, o jato particular que naquele dia o iria a levar a cruzar os céus de meia europa num autêntico air show de compromissos comerciais. Primeira escala em Munique para uma reunião com executivos da Audi, para discutir os pormenores do negócio que pretendia tornar a empresa de Senna a representante da marca alemã no Brasil. Depois do almoço, o comandante acionou os motores do jato e levantou voo. Próxima escala, Aeroporto de Forli, próximo de Bolonha. Owen O ´ Mahoney, que achara o seu patrão particularmente sorumbático naquele dia, despediu-se com o a habitual saudação antes de cada Grande Prémio: «Eu fiz o meu trabalho agora é a sua vez». Seria a última vez que faria aquele cumprimento.

Dali, Ayrton partia num helicóptero para Pádua, onde estaria presente no lançamento de uma nova bicicleta em fibra de carbono da marca Carraro com o logótipo do duplo esse de Senna.

Na conferência de imprensa que se seguiu à apresentação da bicicleta foi instado a comentar a vantagem da Benetton e de Michael Schumacher naquele início de campeonato, que Ayrton Senna desconfiava ser fruto de uma ilegalidade com o sistema de tração do Benetton:« É difícil falar de algo que não podemos provar.»

As desconfianças públicas de Ayrton Senna deviam-se ao péssimo arranque de temporada da Williams, contrastando com a eficácia da Benetton. Cumpridas que estavam duas provas do mundial – Brasil e GP do Pacífico em Aida –, Ayrton ainda não havia somado qualquer ponto, abandonando nas duas corridas, enquanto Schumacher somara duas surpreendentes vitórias.

Neste momento, e como noticiava o Autosport inglês, o campeonato estava «Michael 20 – Ayrton 0».

Senna, que tanto lutara para chegar à Williams, estava agora no centro da panela de pressão e afirmava que o campeonato iria começar em Imola, palco da terceira prova daquele mundial de 1994.

Os problemas da Williams manifestaram-se logo desde os testes de inverno no Paul Ricard e no Estoril, que levaram Ayrton a confessar aos seus amigos mais próximos: «Este carro é uma merda».

Com efeito, a Williams perdera a sua vantagem baseada na eletrónica, porque a FIA havia banido todos os dispositivos que haviam dado a ponta do pelotão tecnológico à equipa de Didcot – suspensão ativa, controlo de tração, ABS, etc. Numa tentativa de travar a escalada tecnológica e devolver ao piloto o papel principal na F1, a FIA acabara de criar sérios problemas às equipas e aos pilotos. As primeiras foram obrigadas a um retrocesso tecnológico que, em última análise, comprometia a segurança. Os segundos tiveram de adaptar de novo a sua técnica pilotagem a carros que dispensavam ajuda eletrónica.

Mas mesmo um piloto com as extraordinárias qualidades e capacidade de adaptação de Ayrton se via a braços com um carro «mal nascido». O chassis do Williams FW16, supervisionado por Patrick Head, era instável e difícil de controlar e o pacote aerodinâmico, desenvolvido por Adrian Newey, estava longe de poder disfarçar as imperfeições do conjunto.

Nem mesmo o poderoso motor V10 da Renault, o mais potente de todos os carros da F1, conseguia dar ao FW16 um temperamento vencedor. A Williams estava consciente das deficiências do seu monolugar e na fábrica testavam-se afincadamente novas evoluções que permitissem a Ayrton Senna diminuir o fosso que o separava do Benetton de Michael Schumacher. Além da fraca competitividade do seu carro, Ayrton estava seriamente desconfiado da legalidade do Benetton.

No paddock circulava o rumor de que a equipa italiana estava a utilizar um sistema de controlo de tração no motor, que ficava à margem das regras impostas pela FIA no início daquele ano. Ayrton ligava várias vezes ao seu antigo rival Alain Prost, fazendo queixas da Williams e manifestando a sua desconfiança com a superioridade do Benetton: «Naqueles dois ou três meses antes de Imola, o comportamento do Ayrton comigo mudou radicalmente. Eu deixara de ser uma ameaça, agora era seu confidente. Ligava-me várias vezes e ficávamos falando imenso tempo. Ele estava preocupado com o Williams e com a segurança na F1, queria que eu integrasse uma comissão de pilotos para as questões de segurança», explicou o francês, em entrevista a uma série da BBC dedicada a lendas da competição automóvel.

Às 17h30 daquele dia 27 de abril, depois de terminar os seus compromissos comerciais em Pádua, Ayrton Senna apanhou de novo o helicóptero, agora com destino ao circuito de Imola, onde aterrou por volta das 18h00. Foi de imediato às boxes da equipa Williams, onde cumprimentou, como sempre, todos os membros da equipa.

Esteve alguns minutos à conversa, desta vez não com Giorgio Ascanelli, o seu engenheiro de pista da McLaren, mas com David Brown, que tinha as mesmas funções na Williams. Ayrton queria inteirar-se das evoluções que a equipa trazia para Imola e que testara no início da semana em Nogaro com o seu companheiro de equipa, Damon Hill.

Além de novos acertos aerodinâmicos, os engenheiro da Williams elevaram a posição do volante, o que obrigava os pilotos a expor mais os seus ombros, conforme depois notaria Emerson Fittipaldi.

Ayrton estava preocupado e sabia que apesar de o campeonato ainda estar na sua fase inicial, a vantagem de Schumacher era já preocupante. Senna queria acreditar que Imola iria marcar o ponto de viragem daquele campeonato, mas não estava muito confiante: «O carro é muito difícil de guiar, é tão duro que qualquer ondulação do piso faz ele saltar.»

O Autódromo Enzo e Dino Ferrari, perto da cidade de Imola, a quatro quilómetros da cidade de Bolonha e a 80 quilómetros da sede da Ferrari, em Maranello, era justamente considerado a «casa» da Ferrari e um dos mais perigosos e traiçoeiros circuitos do mundial. Ao contrário da maioria dos circuitos, este corria-se em sentido inverso aos ponteiros do relógio. Era um circuito de média-alta velocidade, com um ponto muito perigoso: a curva Tamburello.

Era uma curva de alta velocidade, normalmente feita de acelerador a fundo, com o ponteiro dos conta-quilómetros a passar dos 300 km/ h. As pequenas ondulações e ressaltos aconselhavam a que a suspensão fosse regulada com maior distância ao solo e que o apoio aerodinâmico fosse mais incisivo. O problema é que essa afinação mais segura para Tamburello iria penalizar o comportamento do monolugar nas zonas mais rápidas do circuito, fazendo-o perder velocidade de ponta e, logo, tempo, o bem mais precioso da Fórmula 1. Mas o principal problema da curva era a sua exígua escapatória, tendo em conta a velocidade que os carros atingiam naquela zona.

As dezenas de metros de brita não eram suficientes para travar embates com o muro de betão, conforme tão amargamente experimentara Gerhard Berger em 1989, quando o seu Ferrari embateu no muro e se incendiou. O austríaco foi retirado do carro em chamas e sobreviveu ao terrível acidente. No ano seguinte, ele e Ayrton Senna fizeram uma vistoria a pé à fatídica curva, na tentativa de identificar uma solução que permitisse torná-la mais segura. Quando espreitaram para lá do muro de betão, viram que por ali passava um ribeiro. Não havia nada a fazer e os dois amigos conformaram-se com a inevitabilidade daquele perigo que continuariam a desafiar todos os anos.

Depois de partilhar uma macarronada com alguns jornalistas brasileiros na motorhome da Williams, Ayrton Senna dirigiu-se ao Castello, o hotel onde habitualmente se hospedava desde os tempos da McLaren na pequena estância termal de Castel San Pietro. À sua espera, atempadamente reservado, o quarto número 200. Ayrton era um animal de hábitos e gostava de jantar nos mesmos restaurantes de sempre e ficava quase sempre nos mesmos hotéis. Gostava desta familiaridade, ainda que fictícia. Naquela noite, depois de jantar com o irmão Leonardo, com o seu empresário Julian Jakobi, com o seu amigo e preparador físico Josef Leberer, com o seu compagnon de route António Almeida Braga e com outros amigos brasileiros, igualmente hospedados no hotel, Ayrton Senna retirou-se, cansado de um dia de frenéticas viagens. Ligou para Adriane, no Brasil, que preparava as malas para embarcar no dia seguinte para Lisboa.




FONTE PESQUISADA

PELEJÃO, Rui. A paixão de Senna. Edição 1. Editora Leya Portugal. S.A., julho de 2014. 

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