No final de cada temporada da Fórmula-1, Ayrton Senna deixava as pistas de alta velocidade e voltava ao Brasil. Nesse momento, o grande campeão reencontrava a família, a casa, os amigos, os lazeres e tudo que o tenso calendário do circo o impedia de fazer. É esse Senna na intimidade, quase desconhecido, que vamos conhecer.
No estádio da Universidade de São Paulo, Ayrton Senna se transformava num simples atleta – para alegria dos pequenos admiradores na época. Sob a orientação do treinador Nuno Cobra (à esquerda, na foto), Senna corria, fazia musculação e alongamento. Um treinamento puxado que Senna assim justificava: "A boa condição física me fortalece psicologicamente."
Nas pistas ou nos céus, o perfeito domínio da velocidade
Sobre a floresta de arranha-céus de São Paulo, Senna pilotava o Ecureil. Com esse helicóptero, comprado "por ser um meio de transporte prático", Senna ampliou a autonomia dos deslocamentos aéreos que seus aviões Piper e Lear-Jet já garantiam. Além de facilitar a existência e abrir-lhe todos os horizontes, Senna encontrava nos aviões e helicóptero um meio de exercer e aprimorar sua capacidade de concentração.
*Ecureil = Esquilo
O aeromodelismo é um campo de prova para perícia na F-1
Ayrton Senna se valia do aeromodelismo para unir o lazer ao útil: na regulagem e manipulação dos minúsculos motores, o campeão aguçava sua sensibilidade de mecânico nato. "Manobrar modelos de aviões exige destreza e gestos muito precisos. O menor descuido, um erro ínfimo, leva o avião a um crash." É certamente graças a esse permanente exercício de atenção que Ayrton mantinha o domínio de sua McLaren a mais de 300km/h. Na pista, qualquer descuido também podia ser fatal.
Junto ao lago de sua fazenda, Senna está construindo um pedacinho de paraíso
Das centenas de milhões de fãs que Ayrton Senna tem no mundo inteiro, quantos já tiveram a oportunidade de conhecer a sua personalidade, de saber algo de sua vida privada ou mesmo a data de seu aniversário? Quantos já o viram – no sentido figurado – de corpo inteiro ou tiveram a experiência de segui-lo disputando um GP, senão pela telinha ou pelo noticiário da imprensa?
Moto Honda NSX 150
Em sua propriedade rural, a 200km da capital paulista, Ayrton se entregava a outras paixões: motociclismo e jet-ski. A velocidade e o motor eram os mais fiéis companheiros do campeão. Senna era um desportista de corpo e alma.
Em seu livro Ayrton Senna, The Hard Edge of Genius (O Duro Fio da Genialidade), editado pela Patrick Stephen Ltd., Christopher Hilton, então redator esportivo do diário inglês Daily Express e autor de uma biografia do piloto Nigel Mansell, desvendou esse homem "enigmático, religioso, tímido, solitário e dotado de um talento assombroso". Alain Prost tinha por motivos óbvios, opinião diferente: "Ayrton tem um pequeno problema. Ele pensa que não pode causar a sua própria morte porque acredita em Deus; acho que isto é muito perigoso para os outros pilotos."
Na época do lançamento desse livro, o autor Hilton, disse: "Ayrton Senna é um homem difícil de cercar. Vive a sua vida profissional diante de um público universal; seu rosto pálido, muitas vezes melancólico, é tão familiar em São Paulo como em Suzuka, Sydney ou Spa, mas, exceto em raras ocasiões improvisadas, é sempre o mesmo rosto. E isto, geralmente, é nada. É capaz de dar uma volta em Mônaco a tamanha velocidade que mesmo os observadores mais obtusos se assustam, e depois passar a falar em estabilidade, pneus, tráfego e tudo o mais, quase como se outra pessoa tivesse completado a volta. Em certo sentido foi isso mesmo. Outro Ayrton Senna"
Quando queria, porém, era franco e eloquente, em inglês, italiano e português [línguas que ele dominava e era fluente]. Assim foi na entrevista que concedeu em Adelaide [1989], na Austrália, pouco mais de um mês depois do GP de Portugal, em que perdeu definitivamente a esperança de vir a ser coroado bicampeão. Falou durante quase uma hora e meia, o olhar enuviado pela tristeza e pelo que considerava uma injustiçada. E o autor contradizia os que consideravam Senna como pessoa avessa aos contatos com a imprensa:
"Nunca o vi agir de forma contrária à mais requintada polidez. Outros podem ter tido experiências diferentes, mas esses não estão escrevendo este livro."
Em 1988, Senna comprou, a nordeste de São Paulo, uma fazenda onde está construindo a casa de seus sonhos. "Me apaixonei por este recanto cheio de lagos naturais. Aqui produzimos nosso própria leite, queijo e manteiga."
O próprio Ayrton disse: "Desde a infância me ensinaram que não é educado ignorar as pessoas e, assim, quando algum jornalista me procura, tento responder às suas perguntas."
Aos sete anos, Senna saiu dirigindo um jipe. Era o começo da gloriosa carreira de campeão
Ayrton Senna da Silva nasceu em São Paulo, em 21 de março de 1960. Seus pais, Milton e Neyde, eram gente abastada. Sua fortuna consistia de uma fábrica de peças para automóveis, com 750 empregados, e cerca de dez fazendas, num total de 400 mil hectares e bem mais de 10 mil cabeças de gado. O casal tinha também uma filha, Viviane, a primogênita, e um filho caçula, Leonardo.
Ayrton confirma o ditado: "É de pequenino que se torce o pepino." Aos quatro anos, ele já brincava de campeão em kart de pedal, e pilotava jipe.
Ayrton Senna segurou um volante pela primeira vez quando tinha sete anos: era um jipe de uma das fazendas do pai. Ninguém jamais lhe ensinara a dirigir e ele mudava as marchas sem pisar no pedal da embreagem. Jim Clark, morto num acidente em 1968, e que Hilton considera o maior piloto do mundo – ao lado de Ayrton Senna – teve um início de carreira semelhante.
Quando fez dez anos, o pai deu-lhe um kart, mas o menino não podia dirigi-lo legalmente antes de completar treze. E ganhou a sua primeira corrida logo em seguida. Já em 1977, passou para a categoria internacional de 100cc e venceu o Campeonato Sul-Americano, no Uruguai. Evidentemente era também campeão brasileiro, título que conquistaria quatro vezes e, em 1978 e 1979, participava de provas de kart na Europa. Na época, a revista Karting o descreveu como "extremamente rápido" e chegou a chamá-lo de "sensacional".
Em 1981, Senna corria na Formula Ford 1600 e ganhou 11 das 13 provas disputadas. Em 1982, na Formula Ford 2000, só não venceu três das 22 corridas programadas para a temporada. E em 1983, já na Fórmula-3, foi o primeiro a atravessar a chegada em 16 do total de 21 circuitos.
E em 1984, finalmente, a Fórmula-1. Uma estreia fraca, com apenas uma vitória durante a temporada. E vencer para Senna era a coisa mais importante do mundo. O kartista inglês Martin Hines assim o descreveu:
"Senna era um piloto dedicado mas, como a maioria dos artistas das pistas, é um egoísta, cuja meta é ganhar de qualquer jeito. Sempre tive a impressão de que ninguém nasce para ser piloto por força de um total talento natural. A pessoa é impelida para o automobilismo porque ele está em seu sangue, e uma vez chegando lá, é o tipo de pessoa que se é que vai decidir o sucesso ou não: ganhar é uma necessidade visceral. Todos os vencedores são egoístas."
*Senna não venceu nenhuma prova em 1984, mas teve bons resultados, visto que o carro era bem fraco.
Já no ano seguinte, em 1985, Senna deixava a Toleman e ingressava na Lotus "porque a escuderia oferecia uma oportunidade melhor". Tanto que já na segunda corrida, o GP de Portugal, Senna cruzava a chegada em primeiro.
A melhor descrição de Senna no volante é, sem dúvida, a de John Watson, durante o GP Europeu de 1985, disputado em Brands Hatch, na Inglaterra:
"... Ayrton me ultrapassou por dentro. Eu havia aberto espaço para ele. Testemunhei visível e audivelmente algo que eu jamais havia visto alguém fazer num carro de corrida. Era como se ele tivesse quatro mãos e quatro pernas. Estava freando, reduzindo a marcha, dirigindo, acionando o afogador, e o carro parecia quase sob controle para depois perdê-lo. Tudo durou talvez dois segundos. Tendo controlado a velocidade do carro e engrenado a marcha certa, o que estava procurando fazer era manter a pressão de impulso. Num turbo, a gente acelera e a potência some depressa. Chegou ao local da pista onde queria se preparar para entrar na curva. O carro foi lançado com uma arrogância que me arregalou os olhos. Depois, o pé firme no acelerador e a curva foi vencida. Era um mestre controlando a máquina. Eu jamais havia visto um turbo ser dirigido dessa maneira. A capacidade do cérebro de separar cada componente e colocá-lo de volta no seu lugar com tal ritmo e coordenação foi para mim uma experiência extraordinária, um privilégio de observar. Fiquei tão emocionado que fui até o boxe da Lotus e disse ao pessoal: 'Acabo de ver uma coisa.' E eles responderam: 'Sim, nós sabemos.'"
Senna descreve a sua atuação ao volante de forma um tanto diferente:
"Limpo o visor. É esquisito, mas um troço como este pode lhe custar a vitória. Transpiro um bocado durante a corrida, mas tenho um tubo pelo qual posso beber. Esse tubo tem de estar bem firme, para não se soltar. Isso me aconteceu uma vez e eu quase perdi a corrida. Na cabeça eu levo em conta cada detalhe. É um trabalho que nunca acaba. O menor erro de verificação, o menor erro no ajuste do espelho retrovisor pode causar uma catástrofe. Durante o circuito é tarde demais para pensar nisso. Verifico se todos os botões estão no lugar certo, se funcionam ou não. Há tanto em que pensar que não sobra tempo – nem lugar na cabeça – para processar corretamente todas as informações de maneira adequada... e depois fica muito cansativo."
Tio Ayrton e seus sobrinhos Bianca, 10, Bruno, 5, e Paula, 4, filhos da irmã Viviane.
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