Natal, para mim, é um convite à tristeza. Desde que meu pai
morreu, em 1989, era como se a festa não existisse. Ele faleceu em outubro,
como eu já contei, numa situação inesperada, de repente - e nossa casa
nunca mais foi a mesma. Minha avó materna, Agnes, que morava ao lado, tipo da
mulher determinada, uma fortaleza, ainda tentava levantar nosso astral,
naquele dia de má memória, recorrendo a velhas receitas de rabanadas e pães
húngaros rabiscadas em cadernos antiquíssimos - e, num ano do qual não me
lembro, mamãe, que sempre foi mais desanimada que vovó, bem que preparou um
peru recheado com farofa e ameixas. Mas a gente não cultivava o ritual da ceia.
Era um jantar comum, quem quisesse se servir que se servisse e nada de
árvore enfeitada, os presentes ficando esparramados por aqui e por ali. Cada um
de nós buscava, no Natal, um certo recolhimento para cicatrizar a nossa grande
ferida na alma que era a ausência prematura de papai.
Agora, porém, era diferente. Béco e eu voltamos da Europa,
vivíamos sob o mesmo teto no apartamento da Rua Paraguai, compartilhávamos os
mesmos amigos, saíamos para jantar invariavelmente juntos, éramos dois
namorados na plena acepção da palavra - se não havia aliança de noivado,
sobravam intimidades do tipo dormir na mesma cama na casa da mãe e do pai dele,
no Pacaembu. Sentia, no íntimo, que ele até gostava de me mostrar um pouquinho.
Meu Natal, portanto, seria com ele. Zaza, pessoalmente, reiterou o convite.
Quatro ou cinco dias antes, toda a família se deslocaria para a fazenda
de Tatuí, e a festa teria o duplo sentido de celebrar a ceia com filhos,
sobrinhos, genros, noras e de inaugurar o casarão novo, todo restaurado.
Árvore de Natal, presentes que se acumulavam ao pé do
pinheiro, a expectativa da criançada, os passeios a cavalo por aquele paraíso,
as nossas pescarias, as competições de kart na pista particular construída
segundo o traçado de quem começara sua carreira ali, a torcida pelo sobrinho
Bruno, filho da Viviane e promessa de campeão - naquela preguiça dos compridos
cafés da manhã, de almoços deliciosos e cheios de falatório e de tardes
iluminadas como aquela em que um fotógrafo italiano, conhecido do Ayrton, fez
nosso ensaio amoroso que correu o mundo, resgatei um pouco da alegria da
data do nascimento de Cristo.
Eu me sentia absolutamente em família, com a primazia do
lugar de honra ao lado do príncipe da casa. Nem mesmo àquelas eventuais
alfinetadas que cheguei a ouvir, em relação a antigas namoradas de Ayrton,
especialmente a mais famosa delas, eu quis atribuir alguma intenção malévola.
Iludia-me com a idéia de que, no fundo, o que eles - elas, seria mais correto
dizer - queriam era me agradar.
O casarão tinha cheiro de novo, entulho das últimas obras e
um quarto feito sob medida para nós. Nosso quarto tinha espaço suficiente para
resguardar a intimidade recíproca tanto quanto para atulhar os armários de
creminhos, loções e lavandas. Como sempre, não estranhei cama ou ambiente, mas
fui despertada de madrugada por uma algazarra monumental e pela ausência dele,
a meu lado, na cama. Corri para a janela e assisti a uma cena que faria a
delícia daquelas câmeras indiscretas de programas como o do Faustão - que, todo
domingo, era também, de uma certa maneira, um bem-vindo hóspede nosso.
Resumo rápido: de pijama, o piloto mais carismático e mais
circunspecto do mundo perseguia um bando de pavões alvoroçados que,
aparentemente (meu sono profundo não me deixou ouvir nada), tinham transferido
seu footing e seus papos noturnos para debaixo de nossa janela. Botando fogo
pelas narinas, Ayrton os atacava, arremessando-lhes seus chinelos. Em seguida,
armou-se de uma vassoura. De um golpe, conseguiu derrubar um bicho, que se
refugiara numa árvore. Os outros, pressentindo a arremetida, trataram de bater
em retirada. Não sei, sinceramente, se a zoologia me confirma isso, mas a
impressão que me ficou, vendo tudo da janela, às gargalhadas, é de que o QI das
citadas aves não é dos mais privilegiados. Elas ficavam rodeando a piscina e
Ayrton, cada vez mais nervoso, perseguindo-as. Agora, de moto. Ligou o motor e
partiu para cima delas, mas os bichos espaventados só produziam ainda maior
berreiro. Quando o dia clareou, o surpreendeu naquela inútil e frustrante
batalha.
- Vou matar esses desgraçados! - prometeu, voltando para a
cama.
Ele tinha o sono leve, levíssimo, e muitas vezes me olhava
com o olhar suplicante como o daqueles penitentes que vão a Fátima ou a
Aparecida do Norte:
- Me conta sua fórmula. Me empresta um pouquinho de seu sono.
- Se pudesse, eu trocava com você - dizia eu, e olha que a
instabilidade das noites mal dormidas dele me preocupava tanto, de fato, que eu
faria de verdade a troca. Ele, sim, precisava de descanso. Foi tê-lo, quem
sabe, em outro lugar por mim desconhecido.
Ninguém é idiota de imaginar, porém, que um homem cujo
trabalho é um risco pior do que o de um trapezista e que trafega pela vida a
mais de 300
quilômetros por hora seria do tipo de recostar na cama,
fechar os olhos e em dois segundos já estar embalado pelos anjinhos.
Podre de sono, ele implorou ao seu Milton, no café da manhã
do dia seguinte, véspera de Natal:
- Pai, dá um jeito nesses pavões. Sei lá: dá de presente,
manda embora.
O senhor Milton me dava a impressão de um homem seco, muito
discreto, às vezes impenetrável, mas que não se deixava convencer com muita
facilidade. Assim como foi ele quem fez de Ayrton um automobilista, era ele
agora quem tentava manter a tradição dinástica da família, depositando todas as
esperanças no neto Bruno. Aos 12 anos, Bruno corria de kart e já tinha alguns
títulos no seu currículo. Assim como tinha também - e me confidenciou, a meia
voz, naqueles dias por lá - certas dúvidas se sua vocação era de fato aquela.
Mas, se for o avô a decidir que ele vai ser piloto ou, digamos, jogador de
squash, eu não teria dúvidas em apostar que daqui a alguns anos Bruno Senna
estará percorrendo, com seu nome poderoso, as pistas ou competindo nas quadras.
Fiquei com peninha dos pavões, mas, salvo um casal, que
sobrou para contar a história, foram todos despachados para outra freguesia,
especialmente depois que o Ayrton descobriu mais uma deles. Ficava num galpão
uma motinha normal, 250 cilindradas. Os bichos entravam lá, viam-se refletidos
no reservatório de gasolina e, de tão assustados, passavam a atacar. Resultado:
as bicadas furaram o reservatório. Até o senhor Milton se deixou convencer.
Hoje eu sou capaz de imaginar que, se não fosse por sua beleza, os pavões
teriam ficado do lado de fora da arca do bom Noé.
Aquele agito todo na casa, dia 24, Zaza animadíssima com o jantar,
que, por causa das crianças, seria mais cedo, mas o Béco teve a sutil percepção
de que a nuvem negra voltava a se formar em cima da minha cabeça:
- Dri, você não prefere passar a meia-noite com sua mãe?
Meu coração balançava entre estar ali, ao lado do meu amado,
e estar em São Paulo, junto ao leito de minha avó. Pedi um tempo para pensar.
De repente, me deu um estalo:
- Vou sim. Acho que devo ir.
Troquei de roupa, Zazá me emprestou seu carro, uma Quantum,
e, de uma gentileza que só vendo, ainda mandou umas lembrancinhas para minha
família. Ayrton me acompanhou, preocupado, até o carro. Pediu para eu ligar tão
logo chegasse. Corri para o quarto de minha avó. Eu a amava intensamente. Vivia
me cobrando casamento. "Quero ver tudo preto no branco", divertia-se.
Vizinha de parede, sempre soube muito de minha vida e de meus amores - que
foram poucos, diga-se. Encontrei-a inerte, no leito, incapaz de dizer palavras
com os lábios, mas apta a expressar grandes sentimentos com os olhos. Foi assim
meu Natal de 1993, na cabeceira de minha vó, nos seus 80 anos de idade. Não me
arrependo. No dia 26 de janeiro, um mês e dois dias depois, vovó descansou para
sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário