sábado, 8 de junho de 2013

CAMINHO DAS BORBOLETAS - Adriane Galisteu passa a véspera de Natal com a Família Senna


Natal, para mim, é um convite à tristeza. Desde que meu pai morreu, em 1989, era como se a festa não existisse. Ele faleceu em outubro, como eu já contei, numa  situação inesperada, de repente - e nossa casa nunca mais foi a mesma. Minha avó materna, Agnes, que morava ao lado, tipo da mulher determinada, uma fortaleza, ainda tentava levantar nosso astral, naquele dia de má memória, recorrendo a velhas receitas de rabanadas e pães húngaros rabiscadas em cadernos antiquíssimos - e, num ano do qual não me lembro, mamãe, que sempre foi mais desanimada que vovó, bem que preparou um peru recheado com farofa e ameixas. Mas a gente não cultivava o ritual da ceia. Era um jantar comum, quem quisesse se servir que se servisse e nada de árvore enfeitada, os presentes ficando esparramados por aqui e por ali. Cada um de nós buscava, no Natal, um certo recolhimento para cicatrizar a nossa grande ferida na alma que era a ausência prematura de papai.
Agora, porém, era diferente. Béco e eu voltamos da Europa, vivíamos sob o mesmo teto no apartamento da Rua Paraguai, compartilhávamos os mesmos amigos, saíamos para jantar invariavelmente juntos, éramos dois namorados na plena acepção da palavra - se não havia aliança de noivado, sobravam intimidades do tipo dormir na mesma cama na casa da mãe e do pai dele, no Pacaembu. Sentia, no íntimo, que ele até gostava de me mostrar um pouquinho. Meu Natal, portanto, seria com ele. Zaza, pessoalmente, reiterou o convite. Quatro ou cinco dias antes,  toda a família se deslocaria para a fazenda de Tatuí, e a festa teria o duplo sentido de celebrar a ceia com filhos, sobrinhos, genros, noras e de inaugurar o casarão novo, todo restaurado.
Árvore de Natal, presentes que se acumulavam ao pé do pinheiro, a expectativa da criançada, os passeios a cavalo por aquele paraíso, as nossas pescarias, as competições de kart na pista particular construída segundo o traçado de quem começara sua carreira ali, a torcida pelo sobrinho Bruno, filho da Viviane e promessa de campeão - naquela preguiça dos compridos cafés da manhã, de almoços deliciosos e cheios de falatório e de tardes iluminadas como aquela em que um fotógrafo italiano, conhecido do Ayrton, fez nosso ensaio amoroso que correu o mundo, resgatei um  pouco da alegria da data do nascimento de Cristo.
Eu me sentia absolutamente em família, com a primazia do lugar de honra ao lado do príncipe da casa. Nem mesmo àquelas eventuais alfinetadas que cheguei a ouvir, em relação a antigas namoradas de Ayrton, especialmente a mais famosa delas, eu quis atribuir alguma intenção malévola. Iludia-me com a idéia de que, no fundo, o que eles - elas, seria mais correto dizer - queriam era me agradar.
O casarão tinha cheiro de novo, entulho das últimas obras e um quarto feito sob medida para nós. Nosso quarto tinha espaço suficiente para resguardar a intimidade recíproca tanto quanto para atulhar os armários de creminhos, loções e lavandas. Como sempre, não estranhei cama ou ambiente, mas fui despertada de madrugada por uma algazarra monumental e pela ausência dele, a meu lado, na cama. Corri para a janela e assisti a uma cena que faria a delícia daquelas câmeras indiscretas de programas como o do Faustão - que, todo domingo, era também, de uma certa maneira, um bem-vindo hóspede nosso.
Resumo rápido: de pijama, o piloto mais carismático e mais circunspecto do mundo perseguia um bando de pavões alvoroçados que, aparentemente (meu sono profundo não me deixou ouvir nada), tinham transferido seu footing e seus papos noturnos para debaixo de nossa janela. Botando fogo pelas narinas, Ayrton os atacava, arremessando-lhes seus chinelos. Em seguida, armou-se de uma vassoura. De um golpe, conseguiu derrubar um bicho, que se refugiara numa árvore. Os outros, pressentindo a arremetida, trataram de bater em retirada. Não sei, sinceramente, se a zoologia me confirma isso, mas a impressão que me ficou, vendo tudo da janela, às gargalhadas, é de que o QI das citadas aves não é dos mais privilegiados. Elas ficavam rodeando a piscina e Ayrton, cada vez mais nervoso, perseguindo-as. Agora, de moto. Ligou o motor e partiu para cima delas, mas os bichos espaventados só produziam ainda maior berreiro. Quando o dia clareou, o surpreendeu naquela inútil e frustrante batalha.
- Vou matar esses desgraçados! - prometeu, voltando para a cama.
Ele tinha o sono leve, levíssimo, e muitas vezes me olhava com o olhar suplicante como o daqueles penitentes que vão a Fátima ou a Aparecida do Norte:
- Me conta sua fórmula. Me empresta um pouquinho de seu sono.
- Se pudesse, eu trocava com você - dizia eu, e olha que a instabilidade das noites mal dormidas dele me preocupava tanto, de fato, que eu faria de verdade a troca. Ele, sim, precisava de descanso. Foi tê-lo, quem sabe, em outro lugar por mim desconhecido.
Ninguém é idiota de imaginar, porém, que um homem cujo trabalho é um risco pior do que o de um trapezista e que trafega pela vida a mais de 300 quilômetros por hora seria do tipo de recostar na cama, fechar os olhos e em dois segundos já estar embalado pelos anjinhos.
Podre de sono, ele implorou ao seu Milton, no café da manhã do dia seguinte, véspera de Natal:
- Pai, dá um jeito nesses pavões. Sei lá: dá de presente, manda embora.
O senhor Milton me dava a impressão de um homem seco, muito discreto, às vezes impenetrável, mas que não se deixava convencer com muita facilidade. Assim como foi ele quem fez de Ayrton um automobilista, era ele agora quem tentava manter a tradição dinástica da família, depositando todas as esperanças no neto Bruno. Aos 12 anos, Bruno corria de kart e já tinha alguns títulos no seu currículo. Assim como tinha também - e me confidenciou, a meia voz, naqueles dias por lá - certas dúvidas se sua vocação era de fato aquela. Mas, se for o avô a decidir que ele vai ser piloto ou, digamos, jogador de squash, eu não teria dúvidas em apostar que daqui a alguns anos Bruno Senna estará percorrendo, com seu nome poderoso, as pistas ou competindo nas quadras.
Fiquei com peninha dos pavões, mas, salvo um casal, que sobrou para contar a história, foram todos despachados para outra freguesia, especialmente depois que o Ayrton descobriu mais uma deles. Ficava num galpão uma motinha normal, 250 cilindradas. Os bichos entravam lá, viam-se refletidos no reservatório de gasolina e, de tão assustados, passavam a atacar. Resultado: as bicadas furaram o reservatório. Até o senhor Milton se deixou convencer. Hoje eu sou capaz de imaginar que, se não fosse por sua  beleza, os pavões teriam ficado do lado de fora da arca do bom Noé.
Aquele agito todo na casa, dia 24, Zaza animadíssima com o jantar, que, por causa das crianças, seria mais cedo, mas o Béco teve a sutil percepção de que a nuvem negra voltava a se formar em cima da minha cabeça:
- Dri, você não prefere passar a meia-noite com sua mãe?
Meu coração balançava entre estar ali, ao lado do meu amado, e estar em São Paulo, junto ao leito de minha avó. Pedi um tempo para pensar. De repente, me deu um estalo:
- Vou sim. Acho que devo ir.
Troquei de roupa, Zazá me emprestou seu carro, uma Quantum, e, de uma gentileza que só vendo, ainda mandou umas lembrancinhas para minha família. Ayrton me acompanhou, preocupado, até o carro. Pediu para eu ligar tão logo chegasse. Corri para o quarto de minha avó. Eu a amava intensamente. Vivia me cobrando casamento. "Quero ver tudo preto no branco", divertia-se. Vizinha de parede, sempre soube muito de minha vida e de meus amores - que foram poucos, diga-se. Encontrei-a inerte, no leito, incapaz de dizer palavras com os lábios, mas apta a expressar grandes sentimentos com os olhos. Foi assim meu Natal de 1993, na cabeceira de minha vó, nos seus 80 anos de idade. Não me arrependo. No dia 26 de janeiro, um mês e dois dias depois, vovó descansou  para sempre.


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