A última vez que vi seu rosto, eu tive de repartir esse
privilégio com milhões de espectadores. Vi e revi por uma centena de vezes
aquele longo, longuíssimo momento de meditação e concentração no boxe da
Williams antes da largada em Ímola. A tevê repisou insistentemente, eu acionei
inúmeras vezes o replay, porque em tudo aquilo havia a indisfarçável expressão
de um mistério. A cena acentuava o sentimento que ele me deixou, por telefone,
na véspera: se pudesse, não corria. Ayrton Senna ia sair na frente, como pela
65° vez em sua carreira - pole position, sempre motivo de orgulho. Mas aquele
choro infantil (me contaram, depois, que ele se escondeu no boxe, no sábado,
para chorar em paz) me acendeu uma luz de alerta. E aí veio a imagem da
tevê.
Dia de corrida, para ele, era pura adrenalina. Chegava
sempre muito cedo ao boxe, energia a mil, brincando com os mecânicos. Braga não
sentiu muita diferença à chegada, mas, depois do warm up, depois daquela sumida
tradicional no motor home, ele voltou sisudo e circunspecto. Apoiou, meio
desligado, as duas mãos no aerofólio traseiro. Ficou muito tempo concentrado,
com o olhar vazando o que havia na frente. Aí, sim, demorou-se numa lentíssima
inspeção do carro. Aquilo me chocou, porque percebia que havia um Ayrton que
olhava atentamente e outro Ayrton que parecia totalmente alheio. Ficou assim,
imóvel, um tempo intolerável. Idéias tinham tempo suficiente para se
suceder em sua cabeça. Patrick Head, o diretor técnico, aproximou-se, como que
para despertá-lo daquele momento de absoluta intimidade. Só então ele botou
máscara, capacete e se meteu no cockpit, sem dizer uma só palavra. Apertou o
cinto. Pela brecha da viseira, eu vi meu homem triste.
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