- Está sendo difícil pra mim - dizia ele.
- Como?
- A Williams está sendo difícil pra mim - repetia.
Desde os primeiros testes oficiais no Estoril, em meados de
janeiro, testes que o Braga acompanhou, já que ele ficou hospedado em Sintra,
Ayrton andava se queixando ao travesseiro. Sentia-o cabisbaixo. Ele havia
brigado muito por aquilo. A Williams era uma conquista. .
- Lutei muito para sentar naquele carro, para estar ao lado
do Frank Williams. Mas estou sentindo que vai me dar trabalho. Ou eu não me
adaptei ao carro ou é o carro que não foi com a minha cara.
Eu o ouvia: no fundo, ele achou que ia sentar no Williams,
encontrar um carro acertadinho, acelerar e partir para o abraço da galera. Mas
vieram as mudanças no regulamento da FIA, uma tentativa de nivelar por baixo.
Eu o ouvia e vinha com minhas opiniões de leiga:
- É uma imbecilidade mudar a regra. A Fórmula 1 vai andar
para trás.
Palpite meu: se já existiam os computadores, a eletrônica em
cima, o próprio sistema eletrônico garantindo uma segurança muito maior,
controlando a aceleração e a aderência, por que voltar à era da manivela? Ele
concordava e pegava especialmente num ponto: o reabastecimento em plena corrida.
- Quero ver só como vai ser - disse, com uma ponta de ironia
e, como se viu depois, uma sabedoria profética. Design atualíssimo, motores
poderosíssimos, modernidade absoluta na questão da aerodinâmica - e, do ponto
de vista da segurança, muitos passos para trás. Vejam bem: isso a gente dizia
bem antes de tudo acontecer. Naquele primeiro dia que eu vi o Williams,
secretamente, na Inglaterra, achei o carro lindo e ainda brinquei com o Béco:
- Pô, de azul você vai estraçalhar corações.
Mas, na minha intuição meio bobona, também achei a frente do
carro fina demais - um palmo de bico, se tanto, enquanto a McLaren era mais
parrudinha. Dava idéia de fragilidade. Ele estava convencido, porém, de que as
mudanças na estrutura do veículo seriam compensadas por pneus mais largos.
Comentou comigo. Não aconteceu nada daquilo e ele, às vésperas da estréia, se
debatia com a dificuldade de um iniciante:
- Estou praticamente começando do zero - confessou, enquanto
eu cabeceava no colo dele, esparramada no sofá. Ele se dividia entre olhar uma
prova em Surfer's Paradise, Austrália (é o que penso, vagamente) - "olha
só esse Mansell", gritava ele, de repente, "devia estar num
circo" - e pensar na corrida que esperava por ele, dali a pouco mais de
uma semana.
(As quatro da madrugada, ele me despertou com um beijo e me
levou nos braços até a cama, ironizando: "Que bela companhia, eu
arrumei".)
Feliz ele estava. Era um desafio. Mas a decepção inicial ele
já não escondia.
- Vou pegar leve. É uma equipe nova, caras novas, quero ir
mudando as coisas gradualmente. Melhor carro, melhor piloto? Sei não - ele me
afirmou, com todas as letras, em Angra.
Interpretem vocês como quiserem essa frase do Ayrton, o
determinado, o fanático, o obstinado, contestando o que, de boca em boca, só se
proclamava nos bastidores do automobilismo mundial. Vou me dar o direito de
interpretá-la assim: finalmente, o homem se colocava num plano superior à
máquina. Espiritual e moralmente, ele a sobrepujava. Chamasse Williams,
McLaren, Ferrari, Benetton, não importa o nome - Ayrton descobria que o
material que o fazia ser humano era bem mais consistente do que o dos carros,
que lhe davam títulos, dinheiro e glória.
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