Olho para trás e entendo que não podia ser diferente: ele
tinha um problemaço pela frente. Ficar na McLaren, ele não podia. Tanto ele
quanto o patrão, Ron Dennis, em seu silêncio enigmático, sabiam que não dava
mais. Seu timing lá estava esgotado. E o futuro? Benetton? Ferrari? (No início
da temporada de 1994, ele me disse que as duas escuderias lhe dariam trabalho e
a história confirmou suas previsões.) Fórmula Indy? Ele odiava aqueles
circuitos ovais, embora tivesse recebido um convite de Roger Penske e pilotado,
com a devida licença de Dennis, um protótipo em Phoenix, Arizona. Confessou ao
Braga que era uma besteira. Parar por um ano, dar um tempo? Na verdade, correu
o risco concreto, objetivo do desemprego.
Imaginem: tricampeão do mundo encostado no INPS da Fórmula 1.
Lembro-me bem: foram seis dias e cinco noites dificílimas,
de tensões quase permanentes que concediam, às vezes, um ou outro intervalo de
relax. Nossos adversários principais eram o fax, que não parava de vomitar
uma papelada que ele lia e relia com a expressão carregada; o telefone,
que sempre cobrava conversas de uma hora, duas horas, às vezes com seu pai, o
senhor Milton, e com o Fábio Machado, no escritório de São Paulo, mas quase
sempre com o Julian Jakobi, que cuidava dos interesses profissionais dele na
Inglaterra; e o tempo - a dúvida, a espera, a indefinição o exasperavam mais
até do que as derrotas que lhe surrupiavam o tetracampeonato.
Marquei no relógio um desses telefonemas DDI. Cinco horas e
quarenta minutos. Ele estava tenso e o que eu ouvia, de passagem, era:
- Mas, Frank... Veja bem, Frank...
Ele não comia. Tentava beliscar uma saladinha, mas batia com
o garfo na mesa, com fúria inexplicável:
- Deve ser o francês... O francês...
Nem perguntava nada - sozinha ali com ele, não queria botar
lenha na fogueira. Dormir, então, nem pensar. Ele vestia o pijama e, sem mais
delongas, começava a distribuir as cartas para um jogo de tranca que,
pressentia eu, iria varar a madrugada. Quando a família estava no Algarve,
costumávamos jogar, ele e eu em dupla, contra a Zaza e a Bia, a sobrinha mais
velha. Adorávamos trapacear. Agora, só os dois, ele casmurro, sem dizer nada,
eu tentava desanuviar o clima - roubava pra valer. Ele estava tão entretido em
suas próprias encucações que não percebia. Íamos dormir com o canto dos
primeiros galos.
Mas tínhamos um aliado nessa briga contra o profissional que
não tirava o uniforme, um único e solitário aliado, que, por estranho que
pareça, era ele mesmo - ele em seus doces momentos de Béco, acordado
subitamente do ronco dos motores para os sons da vida que desfilava,
convidativa, à sua frente, comigo, diante daquele paraíso que era a casa do
Algarve.
- Não liga, não - pedia-me ele, como gentil penitência. -
Espera por mim, fica por perto, me serve de travesseiro, que eu preciso de você.
- Então me dá um único sorriso - pedia eu.
Ele ria da criançona que eu não conseguia disfarçar. Aquele
sorriso me bastava. Eu tinha a paciência do mundo para esperar que o Béco
triunfasse sobre o Senna. Nunca fui daquelas mulheres impertinentes que, ao ver
o marido amuado, perguntam: "Benhê, em que que você tá pensando?" O
amor que prevalece é aquele em que há uma troca desinteressada e espontânea. Se
houve, aliás, segredo numa relação que durou catorze meses e duraria a
eternidade - eu não estou brincando com isso - foi que eu pude lhe
emprestar muito da minha jovialidade molecona e ele me ensinou virtudes como o
respeito à privacidade, a dedicação incondicional e o silêncio providencial, coisas
que só a maturidade conhece.
Bom, tudo isso aí é uma teoria, mas não passaria de uma
linda explicação se também não rolasse entre nós roçar de pele, toques, beijos,
pêlos, músculos rijos, tesão, amor e sexo - desculpem o súbito e indiscreto
entusiasmo dessa revelação, mas éramos um casal de qualidade e de quantidade,
vocês me entendem, não entendem?
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