sábado, 8 de junho de 2013

CAMINHO DAS BORBOLETAS - A cumplicidade entre Ayrton Senna e Adriane Galisteu


Olho para trás e entendo que não podia ser diferente: ele tinha um problemaço pela frente. Ficar na McLaren, ele não podia. Tanto ele quanto o patrão, Ron Dennis, em seu silêncio enigmático, sabiam que não dava mais. Seu timing lá estava esgotado. E o futuro? Benetton? Ferrari? (No início da temporada de 1994, ele me disse que as duas escuderias lhe dariam trabalho e a história confirmou suas previsões.) Fórmula Indy? Ele odiava aqueles circuitos ovais, embora tivesse recebido um convite de Roger Penske e pilotado, com a devida licença de Dennis, um protótipo em Phoenix, Arizona. Confessou ao Braga que era uma besteira. Parar por um ano, dar um tempo? Na verdade, correu o risco concreto, objetivo do desemprego.
Imaginem: tricampeão do mundo encostado no INPS da Fórmula 1.
Lembro-me bem: foram seis dias e cinco noites dificílimas, de tensões quase permanentes que concediam, às vezes, um ou outro intervalo de relax. Nossos adversários principais eram o fax, que não parava de vomitar uma  papelada que ele lia e relia com a expressão carregada; o telefone, que sempre cobrava conversas de uma hora, duas horas, às vezes com seu pai, o senhor Milton, e com o Fábio Machado, no escritório de São Paulo, mas quase sempre com o Julian Jakobi, que cuidava dos interesses profissionais dele na Inglaterra; e o tempo - a dúvida, a espera, a indefinição o exasperavam mais até do que as derrotas que lhe surrupiavam o tetracampeonato.
Marquei no relógio um desses telefonemas DDI. Cinco horas e quarenta minutos. Ele estava tenso e o que eu  ouvia, de passagem, era:
- Mas, Frank... Veja bem, Frank...
Ele não comia. Tentava beliscar uma saladinha, mas batia com o garfo na mesa, com fúria inexplicável:
- Deve ser o francês... O francês...
Nem perguntava nada - sozinha ali com ele, não queria botar lenha na fogueira. Dormir, então, nem pensar. Ele vestia o pijama e, sem mais delongas, começava a distribuir as cartas para um jogo de tranca que, pressentia eu, iria varar a madrugada. Quando a família estava no Algarve, costumávamos jogar, ele e eu em dupla, contra a Zaza e a Bia, a sobrinha mais velha. Adorávamos trapacear. Agora, só os dois, ele casmurro, sem dizer nada, eu tentava desanuviar o clima - roubava pra valer. Ele estava tão entretido em suas próprias encucações que não percebia. Íamos dormir com o canto dos primeiros galos.
Mas tínhamos um aliado nessa briga contra o profissional que não tirava o uniforme, um único e solitário aliado, que, por estranho que pareça, era ele mesmo - ele em seus doces momentos de Béco, acordado subitamente do ronco dos motores para os sons da vida que desfilava, convidativa, à sua frente, comigo, diante daquele paraíso que era a casa do Algarve.
- Não liga, não - pedia-me ele, como gentil penitência. - Espera por mim, fica por perto, me serve de travesseiro, que eu preciso de você.
- Então me dá um único sorriso - pedia eu.
Ele ria da criançona que eu não conseguia disfarçar. Aquele sorriso me bastava. Eu tinha a paciência do mundo para esperar que o Béco triunfasse sobre o Senna. Nunca fui daquelas mulheres impertinentes que, ao ver o marido amuado, perguntam: "Benhê, em que que você tá pensando?" O amor que prevalece é aquele em que há uma troca desinteressada e espontânea. Se houve, aliás, segredo numa relação que durou catorze meses e duraria a eternidade - eu não estou brincando com isso - foi que eu  pude lhe emprestar muito da minha jovialidade molecona e ele me ensinou virtudes como o respeito à privacidade, a dedicação incondicional e o silêncio providencial,  coisas que só a maturidade conhece.
Bom, tudo isso aí é uma teoria, mas não passaria de uma linda explicação se também não rolasse entre nós roçar de pele, toques, beijos, pêlos, músculos rijos, tesão, amor e sexo - desculpem o súbito e indiscreto entusiasmo dessa revelação, mas éramos um casal de qualidade e de quantidade, vocês me entendem, não entendem?


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