sábado, 8 de junho de 2013

CAMINHO DAS BORBOLETAS - A briga por causa da Revista Caras



- Parece... sei lá... uma qualquer! Como é que você deixou que fizessem uma coisa dessas?
Era comigo - o mínimo que ele dizia. Gritava coisas horrorosas. Estava transtornado. Uma fera. Enrolou a revista e a atirou com raiva contra a parede de nosso apartamento na Rua Paraguai. Sentia-me péssima. Muda, paralisada. Tentava resmungar alguma desculpa, mas não saía do "mas... olha aqui...”
Seria inútil qualquer argumento. Calei.
Por uma dezena de vezes eu tomara contato com esse lado desgovernado do Ayrton, mas nunca na condição de vítima ou de pivô da tragédia. As coisas que o tiravam do sério eram adversários nas pistas, carros que quebravam, jornalistas inconvenientes, fãs sem desconfiômetro. Nunca pensei que ia chegar o meu dia.
E dia pior não poderia haver. Bem na semana em que ele ia começar tudo de novo na sua carreira - a semana do GP do Brasil em Interlagos. A revista que ele folheava  raivosamente, dez, vinte vezes, até arremessar na parede, era a edição de Caras, que saiu na quarta-feira. Eu era a capa. Um longo ensaio fotográfico de doze páginas, fotos grandes, belíssimas, feitas pelo Fábio Cabral - eu já tinha tomado a cautela de trabalhar com um profissional da mais absoluta confiança. Às vésperas do GP do Brasil, Caras apresentava, em grande estilo, a namorada do maior  de  todos os ídolos nacionais.
Um ano antes, no dia em que fui pela primeira vez me encontrar com ele naquele mesmo apartamento dos Jardins e dali seguimos juntos para Angra, eu levara debaixo do braço o exemplar de uma revista espanhola chamada Man - ao contrário do que sugere o nome,  nada a ver com Playboy. Era uma revista de muitas fotos, viagens, aventuras. A agência Elite selecionou um time de dez meninas e passamos um par de dias na praia de Camburi, de maiô, ilustrando aquela que seria uma reportagem sobre o litoral brasileiro. Para minha surpresa, fui capa - eu, sozinha. Diante de todo aquele escrete de beldades, entendi a escolha como uma homenagem ao meu sobrenome espanhol. Essas coisas envaidecem uma modelo, é claro, enriquecem seu book e dão um empurrãozinho em sua carreira. Foi por isso que levei a revista até a casa do Ayrton e, orgulhosa, mostrei-a a ele, quando veio a inevitável pergunta: "Como é seu trabalho de modelo?”
Ele adorou. Agora, odiava.
Em um ano de convivência, alguma coisa tinha mudado - e talvez eu não tivesse dado a devida conta. Aquela briga, a primeira que tínhamos, de verdade, me punha diante de um problema de identidade dupla: namorada e modelo.
Esperei que ele serenasse - se e que era possível. Falei calmamente:
- Minha vida inteira, eu trabalhei assim. Não é nenhum mistério, para mim, chegar diante de um fotógrafo e posar, fazer caras e bocas. Trato meu trabalho de uma forma absolutamente profissional. Preciso de dinheiro e preciso trabalhar.
Mas ele voltava a revirar página por página de Caras, apontava aqui e ali, voltava a se sacudir de irritação, berrava:
- Você precisa entender que não é mais a mesma, Adriane (a coisa estava feia, ele jamais me chamava de Adriane, só de Dri, Drica). - Você hoje é a minha namorada.
- Sei disso. Abri mão de minha vida para isso e não estou aqui lhe cobrando; queria, ao contrário, que você entendesse que estou muito feliz pela escolha que  fiz.
Ele não se conformava, não ouvia, ou não queria ouvir. Ainda tentei ser razoável:
- Mas o que lhe desagradou? As fotos? O texto?
- A merda toda. As fotos, especialmente.
Ayrton não era do tipo de ter crises de ciúme. Recordo me que, uma vez, na fazenda, ao me ver descer do quarto com uma minissaia nova, perguntou:
- Ganhou quando tinha 13 anos?
Dos 9 anos até aquela noite em que achei que tudo estava acabado, eu sobrevivi como modelo, arcando com os preconceitos que a profissão provoca e administrando a maior dificuldade de um trabalho em que a beleza é o elemento primordial. Uma modelo parece ser muitas coisas que ela de fato não é. Mas para quanta gente a única coisa que vale no mundo não são as aparências? Pensando bem, isso ali na hora valia também para ele. Ayrton.
Minha lealdade para com aquele admirável ser humano que eu amo e conheço tão de perto era absoluta. Minha convicção e minha sinceridade me davam força para enfrentar o desafio. Mesmo que eu tivesse, naquela hora, de recuar taticamente. Em respeito ao momento que ele passava, a agonia que já invadia sua alma, a ansiedade que prenunciava o dia seguinte, o outro, o outro, até  o domingo da corrida.
Dei um passo atrás:
- Tá bem, eu errei. Não precisava ter me exposto. Se eu estivesse no seu lugar, talvez reagisse do mesmo modo. Peço desculpas. Mas, se você quiser terminar nossa relação por causa desse episódio, aproveita sua raiva e vai em frente. Termina...
Tinha um travo de choro na garganta, porém fiquei firme para não chorar. Propunha um fim no nosso namoro, mas meu coração estava do tamanho de uma ervilha, gritando "não, não". Sair dali seria mergulhar num abismo sem fundo, eu sabia disso. De repente, vi que caíam lágrimas dos olhos dele. Entendi aquilo como o seu constrangido jeito de dizer "sim, acabou, até mais...”
- Tivemos um relacionamento maravilhoso - continuei. - Nunca chegamos a uma discussão nesses termos. Fiquei chocada com o que se passou aqui. Você me mostrou um Ayrton que eu não conhecia.
Longe de mim irritá-lo. Eu já me lamentava previamente pelo desfecho esperado. A discussão havia avançado madrugada adentro. Ele apagava a luz, a raiva o vencia, acendia de novo, falava, falava. Quatro horas seguidas. Pensei no pior: "Amanhã, eu me levanto e vou embora". Não seria a reação de uma mulher vingativa ou ofendida. Seria a atitude correta de uma mulher vencida. Aí, foi ele quem interrompeu:
- Nunca duvidei do seu caráter, não é isso. Disse que não gostei e não gostei, é só isso.
Trocamos um olhar em que senti a faísca de um amor que, na verdade, nenhum de nós queria perder. As feridas estavam expostas, mas, em silêncio, com uma cumplicidade sem palavras, nos demos um tempo. Fomos deitar. Engraçado que naquela noite, sem nada combinado, trocamos de papel. Quem subiu o zíper do uniforme fui eu. Ele, que não dormia, dormiu; eu não preguei olhos. Eu o vi acordar cedo, pois a quinta-feira já era dia de muitos compromissos, e fazer a barba. Ele se aproximou da cama, me deu um beijo de tchau e disse:
- A gente se fala depois.
Foi ele pisar fora de casa para eu me dar, enfim, o direito de um choro franco, forte, sacudido. Desabei, literalmente. Chorar pode ser o melhor atalho para a compreensão das coisas. De repente, tudo se organizou na minha cabeça, tudo ficou muito simples:
- Acho que tenho razão; mas a minha razão que vá pro inferno!
Caras era a revista mais disputada nos fins de semana na fazenda. O senhor Milton comprava - ele chegava abraçado de jornais e revistas. O próprio Béco lia e gostava. Quando surgiu o convite para eu ser a capa, em fevereiro, nem cheguei a cogitar, mas, pouco a pouco, fui começando a gostar da idéia. Naturalmente, consultei-o. Só fiz porque ele disse sim. Na sua condição de empresário que aumentava seu portfolio de negócios, ele passou dez dias entre a Alemanha e a Inglaterra, no início de março - e foi lá, num dos vários telefonemas que trocávamos, dia após dia, que toquei no assunto. Eu faria do meu jeito, tranqüilizei-o. Com um fotógrafo de confiança.
- Quem? - ele quis logo saber. - Estou pensando no Fábio Cabral.
Cabral andava me rondando com a proposta de uma exposição de fotos só minhas. Gosto do trabalho dele.
- Confia? - ele insistiu.
- O estilo dele é bárbaro.
- E você? Está a fim de fazer?
- De repente, até estou. Faz tempo que não tiro foto posada.
- Então, vai - disse ele, sem meias palavras. Comentei que pensava em fotografar numa praia, três dias, com repórter, produtora, maquiador juntos.
- Que praia? - quis saber, meticuloso.
- Camburi.
- Mas por que Camburi?
- Porque é aqui perto, uma praia bonita, à qual faz muito tempo que eu não vou. Não tem sentido ir a Angra fazer isso. Lá é o nosso canto. Tenho milhões de  maravilhosas fotos minhas, com você, em Angra.
Ele quis saber mais: onde ficar, qual seria o esquema. Resumi:
- Aquele mesmo esquema de modelo, fica tranqüilo.
Fiz as fotos com o maior prazer e o maior cuidado. Mas foi uma trabalheira para todos. Saiu do jeito que eu queria. Tão logo as fotos foram reveladas, Cabral me ligou:
- Está o máximo.
Eu queria ver tudo antes mesmo de chegar à revista, mas ele argumentou:
- Da minha parte, seria antiético. Eles estão agindo com correção, não dá para preocupar.
Ainda assim, insisti: um cromo só, de cada série, aquele que estivesse pior, para eu ver como tinha ficado. Ele concordou. Peguei na portaria do ateliê dele e aquilo só me confirmou o que eu, modelo com mais de dez anos de janela, desconfiava: perfeito.
Guardei o pacote para fazer uma surpresa pro Béco, que estava de volta. Deixei para mostrar a ele no fim de semana, na fazenda, quando estivéssemos, só os dois, na cama. Dia 21 de março, a segunda-feira da semana do GP, era aniversário dele: 34 anos. No domingo, teve bolo, doce, parabéns, sob a batuta da Zaza. Descobri,  naquela noite, na fazenda, que ele tinha vocação de editor de fotografia. Olhou os cromos um a um, contra a luz, com rigor e atenção.
- Gostou? - eu estava ansiosa.
- Gostei. De uma em especial. Esta da bicicleta.
A minha predileta. Pensei de novo: se a Photo soubesse que um cara com esse olhar existe, quem sabe não ia lhe propor mudar de ramo? Fiquei tão encorajada que desci com o maço de fotos para o café da manhã. Queria que a Zaza compartilhasse de nosso segredo. A mãe viu:
- Lindo.
O Léo, os amigos que estavam na fazenda - enfim, os cromos passaram pelas mãos de todos. Comentários sempre elogiosos. E não se falou mais nisso. Como a reportagem de Caras sairia na semana do GP do Brasil, o jeito de eu descarregar minha adrenalina era esperar pela revista. A do Béco, ele aliviava correndo diariamente na USP - seu treino para aquela que, além de impor a incógnita de estréia de uma temporada com escuderia nova, carregava a responsabilidade de ser em São Paulo, sua terra. Eu o acompanhava na USP e ficava impressionada. Onde quer que ele fosse, paravam-no para a pergunta fatal: "E o carro, como está?" Ele era vago, mas a conversa sempre escorregava para o otimismo. "Já ganhou, você vai ser tetra", diziam todos. O GP do Brasil era o cardápio da semana. Pior para o já ansioso Ayrton. "Estou corroído por dentro" - confessou a mim naquela terça-feira, 22 de março. - "As pessoas estão enganadas: não vai ser esse passeio que elas imaginam.”
O primeiro contato dele com a pista de Interlagos, na quarta, ainda só para a gravação de um comercial da Nacional Seguros, coincidiu com o primeiro contato dele com a minha Caras, já impressa. Um assessor dele, Charles, sem maldade, fez a gentileza. Ele só deu uma folheada e foi trabalhar. Por coincidência, quem produzia o comercial da Nacional era Tina Krugg, a mesma que me acompanhou com Caras a Camburi. Ela pediu-lhe um autógrafo e, em troca, deu-lhe de presente uma cartela com sobras das minhas fotos. Mais fotos. Ele brincou:
- Então, você é a famosa Tina!
Tudo muito ameno, tudo muito cordial. Ainda me ligou para dizer que, à noite, jantaríamos na casa dos pais dele. Lá, ficou mais quieto do que nunca, mas vi no seu silêncio a expectativa do GP que chegava. Engano meu. Foi a gente se despedir dos pais, abrir a porta do elevador e apertar o botão 2S da garagem para ele fechar  de vez a cara:
- Você viu a Caras?
Claro: durante o almoço, no McDonald's da Avenida Rebouças, eu tinha passado e repassado as páginas. Confesso que, no final, me veio pela primeira vez um friozinho na barriga. Estava linda, a reportagem. O texto, corretíssimo. Mas, no fundo, no fundo, eu me perguntava: era preciso ter feito?
- Você gostou? - prosseguiu ele.
- Não sei, você não gostou?
- Não.
Só isso: não. O elevador chegara à garagem, cada um de nós tinha ido com seu próprio carro, o que me condenava a uns dez minutos de angústia até nos reencontrarmos no nosso apartamento da Paraguai.
- Me fala, me fala - implorei.
- Você estava muito sexy.
E em casa que aconteceu toda a explosão que narrei. Eu já o tinha visto emburrado, cabisbaixo - era o jeitão dele de mostrar sua contrariedade. Conhecera e aprendera a conviver com isso, respeitando o timing da crise dele, sem entrar na paranóia de que era eu a culpada, ou que era de mim que ele tinha se enchido. Mas, discutir daquela forma, nunca. Ainda assim, eu pensava primeiro nele:
- Meu Deus, ele vai ter corrida, não pode ficar assim. Foi uma experiência dramática mas muito educativa, como podem ser instrutivas algumas brigas entre casais que verdadeiramente se amam. No dia do enterro do ídolo Senna, pessoas do povo abriam as páginas de Caras, não só a do casal feliz, de uma edição seguinte, mas também aquelas mesmas que geraram tanto ódio. Elas me acenavam com a revista, não para me adular, eu sei, mas como uma forma de espontânea solidariedade com a mulher que  ele tinha.
Digo isso nunca por vaidade, e sim com o coração tão partido como naquela noite difícil e em outras que se seguiram. Olho para trás e vejo que muitas coisas se juntaram ali naquelas páginas de revista. Tirem fora a tensão da semana, muito compreensível. Mas havia a surpresa de ele me ver, de novo, como modelo - depois de uma sumida legal que eu tinha dado das páginas e dos outdoors. Talvez, inconscientemente, eu quisesse lembrar: tenho um trabalho, tenho uma profissão. O Béco, de  repente, já não se conformava.
- Você não precisa mostrar ao mundo que tem um corpo bonito, que tem esse outro lado Adriane Galisteu - foi uma de suas frases mais esclarecedoras.
Esse outro lado Adriane Galisteu quer dizer: a modelo, aquela que continuava, bem ou mal, no book da Elite. Ele, jamais disse com clareza, mas devia sonhar com outros rumos profissionais para mim. E tinha mais, aquilo que ele  não escondeu mesmo diante dos meus argumentos do-tipo "mas você sabia tudo", ou "você viu os negativos antes". Um sentimento bem humano chamado ciúme.
- Seu corpo bonito é para mostrar só pra mim.
Eu sou ciumenta, embora disfarce. Ele é ciumento, pensei. "Ciúme de namorado, isso passa", me acalmou mamãe, sempre discreta, quando liguei na manhã posterior à tempestade. "Normal, coisa de quem gosta da gente", reforçou Nádia, amiga do Rio, mulher do Oscar Guerra - outra a quem recorri, por telefone, pedindo colo e luz. O que ele próprio, de certo modo, me reconfirmou, antes de sair para o primeiro treino oficial, na sexta-feira, 25 de março, já aplacada a onda de fúria:
- Me faz só um favorzinho sobre aquilo. Vai na revista e pede os cromos. Todos. Quero guardar pra mim.
Nenhum problema. Ele ainda teve tempo de reconhecer, dias mais tarde, que ao promover todo o furacão o que mais o incomodava era o fotógrafo. Até onde tinha ido a ousadia dele? Exatamente até o ponto que as fotos revelavam. Mas há outro desconto que dou hoje ao descontrole do Béco, e uma lição que ele sempre quis me incutir, eu reconheço: o perigo que a celebridade acarreta. Não tem nada a ver com a revista, ou com a imprensa, mas tem a ver com a vida.
- Eu já estou calejado - dizia ele, alertando para as cascas de banana que invejosos e futriqueiros gostam de botar no caminho dos que ganham fama e respeito. -  Mas você, que é menina, preste atenção para não se machucar.
Foi um maravilhoso cidadão, que eu amo, de nome Ayrton, quem me falou essas coisas.

Adriane Galisteu foi capa da revista Caras Edição 20




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