- Parece... sei lá... uma qualquer! Como é que você deixou
que fizessem uma coisa dessas?
Era comigo - o mínimo que ele dizia. Gritava coisas
horrorosas. Estava transtornado. Uma fera. Enrolou a revista e a atirou com
raiva contra a parede de nosso apartamento na Rua Paraguai. Sentia-me péssima.
Muda, paralisada. Tentava resmungar alguma desculpa, mas não saía do
"mas... olha aqui...”
Seria inútil qualquer argumento. Calei.
Por uma dezena de vezes eu tomara contato com esse lado
desgovernado do Ayrton, mas nunca na condição de vítima ou de pivô da tragédia.
As coisas que o tiravam do sério eram adversários nas pistas, carros que
quebravam, jornalistas inconvenientes, fãs sem desconfiômetro. Nunca pensei que
ia chegar o meu dia.
E dia pior não poderia haver. Bem na semana em que ele ia começar
tudo de novo na sua carreira - a semana do GP do Brasil em Interlagos. A
revista que ele folheava raivosamente, dez, vinte vezes, até arremessar
na parede, era a edição de Caras, que saiu na quarta-feira. Eu era a capa. Um
longo ensaio fotográfico de doze páginas, fotos grandes, belíssimas, feitas
pelo Fábio Cabral - eu já tinha tomado a cautela de trabalhar com um
profissional da mais absoluta confiança. Às vésperas do GP do Brasil, Caras
apresentava, em grande estilo, a namorada do maior de todos os
ídolos nacionais.
Um ano antes, no dia em que fui pela primeira vez me
encontrar com ele naquele mesmo apartamento dos Jardins e dali seguimos
juntos para Angra, eu levara debaixo do braço o exemplar de uma revista
espanhola chamada Man - ao contrário do que sugere o nome, nada a ver com
Playboy. Era uma revista de muitas fotos, viagens, aventuras. A agência Elite
selecionou um time de dez meninas e passamos um par de dias na praia de
Camburi, de maiô, ilustrando aquela que seria uma reportagem sobre o litoral
brasileiro. Para minha surpresa, fui capa - eu, sozinha. Diante de todo aquele
escrete de beldades, entendi a escolha como uma homenagem ao meu sobrenome
espanhol. Essas coisas envaidecem uma modelo, é claro, enriquecem seu book e
dão um empurrãozinho em sua carreira. Foi por isso que levei a revista até
a casa do Ayrton e, orgulhosa, mostrei-a a ele, quando veio a inevitável
pergunta: "Como é seu trabalho de modelo?”
Ele adorou. Agora, odiava.
Em um ano de convivência, alguma coisa tinha mudado - e
talvez eu não tivesse dado a devida conta. Aquela briga, a primeira que
tínhamos, de verdade, me punha diante de um problema de identidade dupla:
namorada e modelo.
Esperei que ele serenasse - se e que era possível. Falei
calmamente:
- Minha vida inteira, eu trabalhei assim. Não é nenhum
mistério, para mim, chegar diante de um fotógrafo e posar, fazer caras e bocas.
Trato meu trabalho de uma forma absolutamente profissional. Preciso de dinheiro
e preciso trabalhar.
Mas ele voltava a revirar página por página de Caras,
apontava aqui e ali, voltava a se sacudir de irritação, berrava:
- Você precisa entender que não é mais a mesma, Adriane (a
coisa estava feia, ele jamais me chamava de Adriane, só de Dri, Drica). - Você
hoje é a minha namorada.
- Sei disso. Abri mão de minha vida para isso e não estou
aqui lhe cobrando; queria, ao contrário, que você entendesse que estou muito
feliz pela escolha que fiz.
Ele não se conformava, não ouvia, ou não queria ouvir. Ainda
tentei ser razoável:
- Mas o que lhe desagradou? As fotos? O texto?
- A merda toda. As fotos, especialmente.
Ayrton não era do tipo de ter crises de ciúme. Recordo me
que, uma vez, na fazenda, ao me ver descer do quarto com uma minissaia
nova, perguntou:
- Ganhou quando tinha 13 anos?
Dos 9 anos até aquela noite em que achei que tudo estava
acabado, eu sobrevivi como modelo, arcando com os preconceitos que a profissão
provoca e administrando a maior dificuldade de um trabalho em que a beleza é o
elemento primordial. Uma modelo parece ser muitas coisas que ela de fato não é.
Mas para quanta gente a única coisa que vale no mundo não são as aparências?
Pensando bem, isso ali na hora valia também para ele. Ayrton.
Minha lealdade para com aquele admirável ser humano que eu
amo e conheço tão de perto era absoluta. Minha convicção e minha sinceridade me
davam força para enfrentar o desafio. Mesmo que eu tivesse, naquela hora,
de recuar taticamente. Em respeito ao momento que ele passava, a agonia que já
invadia sua alma, a ansiedade que prenunciava o dia seguinte, o outro, o outro,
até o domingo da corrida.
Dei um passo atrás:
- Tá bem, eu errei. Não precisava ter me exposto. Se eu
estivesse no seu lugar, talvez reagisse do mesmo modo. Peço desculpas.
Mas, se você quiser terminar nossa relação por causa desse episódio,
aproveita sua raiva e vai em frente. Termina...
Tinha um travo de choro na garganta, porém fiquei firme para
não chorar. Propunha um fim no nosso namoro, mas meu coração estava do tamanho
de uma ervilha, gritando "não, não". Sair dali seria mergulhar num
abismo sem fundo, eu sabia disso. De repente, vi que caíam lágrimas dos olhos
dele. Entendi aquilo como o seu constrangido jeito de dizer "sim, acabou,
até mais...”
- Tivemos um relacionamento maravilhoso - continuei. - Nunca
chegamos a uma discussão nesses termos. Fiquei chocada com o que se passou
aqui. Você me mostrou um Ayrton que eu não conhecia.
Longe de mim irritá-lo. Eu já me lamentava previamente pelo
desfecho esperado. A discussão havia avançado madrugada adentro. Ele apagava a
luz, a raiva o vencia, acendia de novo, falava, falava. Quatro horas seguidas.
Pensei no pior: "Amanhã, eu me levanto e vou embora". Não seria a
reação de uma mulher vingativa ou ofendida. Seria a atitude correta de uma
mulher vencida. Aí, foi ele quem interrompeu:
- Nunca duvidei do seu caráter, não é isso. Disse que não
gostei e não gostei, é só isso.
Trocamos um olhar em que senti a faísca de um amor que, na
verdade, nenhum de nós queria perder. As feridas estavam expostas, mas, em
silêncio, com uma cumplicidade sem palavras, nos demos um tempo. Fomos deitar.
Engraçado que naquela noite, sem nada combinado, trocamos de papel. Quem subiu
o zíper do uniforme fui eu. Ele, que não dormia, dormiu; eu não preguei olhos.
Eu o vi acordar cedo, pois a quinta-feira já era dia de muitos compromissos, e
fazer a barba. Ele se aproximou da cama, me deu um beijo de tchau e disse:
- A gente se fala depois.
Foi ele pisar fora de casa para eu me dar, enfim, o direito
de um choro franco, forte, sacudido. Desabei, literalmente. Chorar pode ser o
melhor atalho para a compreensão das coisas. De repente, tudo se organizou na
minha cabeça, tudo ficou muito simples:
- Acho que tenho razão; mas a minha razão que vá pro inferno!
Caras era a revista mais disputada nos fins de semana na
fazenda. O senhor Milton comprava - ele chegava abraçado de jornais e revistas.
O próprio Béco lia e gostava. Quando surgiu o convite para eu ser a capa, em
fevereiro, nem cheguei a cogitar, mas, pouco a pouco, fui começando a gostar da
idéia. Naturalmente, consultei-o. Só fiz porque ele disse sim. Na sua condição
de empresário que aumentava seu portfolio de negócios, ele passou dez dias
entre a Alemanha e a Inglaterra, no início de março - e foi lá, num dos vários
telefonemas que trocávamos, dia após dia, que toquei no assunto. Eu faria do
meu jeito, tranqüilizei-o. Com um fotógrafo de confiança.
- Quem? - ele quis logo saber. - Estou pensando no Fábio
Cabral.
Cabral andava me rondando com a proposta de uma exposição de
fotos só minhas. Gosto do trabalho dele.
- Confia? - ele insistiu.
- O estilo dele é bárbaro.
- E você? Está a fim de fazer?
- De repente, até estou. Faz tempo que não tiro foto posada.
- Então, vai - disse ele, sem meias palavras. Comentei que
pensava em fotografar numa praia, três dias, com repórter, produtora,
maquiador juntos.
- Que praia? - quis saber, meticuloso.
- Camburi.
- Mas por que Camburi?
- Porque é aqui perto, uma praia bonita, à qual faz muito
tempo que eu não vou. Não tem sentido ir a Angra fazer isso. Lá é o nosso
canto. Tenho milhões de maravilhosas fotos minhas, com você, em Angra.
Ele quis saber mais: onde ficar, qual seria o esquema.
Resumi:
- Aquele mesmo esquema de modelo, fica tranqüilo.
Fiz as fotos com o maior prazer e o maior cuidado. Mas foi
uma trabalheira para todos. Saiu do jeito que eu queria. Tão logo as fotos
foram reveladas, Cabral me ligou:
- Está o máximo.
Eu queria ver tudo antes mesmo de chegar à revista, mas ele
argumentou:
- Da minha parte, seria antiético. Eles estão agindo com
correção, não dá para preocupar.
Ainda assim, insisti: um cromo só, de cada série, aquele que
estivesse pior, para eu ver como tinha ficado. Ele concordou. Peguei na
portaria do ateliê dele e aquilo só me confirmou o que eu, modelo com mais de
dez anos de janela, desconfiava: perfeito.
Guardei o pacote para fazer uma surpresa pro Béco, que
estava de volta. Deixei para mostrar a ele no fim de semana, na fazenda, quando
estivéssemos, só os dois, na cama. Dia 21 de março, a segunda-feira da semana
do GP, era aniversário dele: 34 anos. No domingo, teve bolo, doce, parabéns,
sob a batuta da Zaza. Descobri, naquela noite, na fazenda, que ele
tinha vocação de editor de fotografia. Olhou os cromos um a um, contra a luz,
com rigor e atenção.
- Gostou? - eu estava ansiosa.
- Gostei. De uma em especial. Esta da bicicleta.
A minha predileta. Pensei de novo: se a Photo soubesse que
um cara com esse olhar existe, quem sabe não ia lhe propor mudar de ramo?
Fiquei tão encorajada que desci com o maço de fotos para o café da manhã.
Queria que a Zaza compartilhasse de nosso segredo. A mãe viu:
- Lindo.
O Léo, os amigos que estavam na fazenda - enfim, os cromos
passaram pelas mãos de todos. Comentários sempre elogiosos. E não se falou mais
nisso. Como a reportagem de Caras sairia na semana do GP do Brasil, o
jeito de eu descarregar minha adrenalina era esperar pela revista. A do Béco,
ele aliviava correndo diariamente na USP - seu treino para aquela que, além de
impor a incógnita de estréia de uma temporada com escuderia nova, carregava a
responsabilidade de ser em São Paulo, sua terra. Eu o acompanhava na USP e
ficava impressionada. Onde quer que ele fosse, paravam-no para a pergunta
fatal: "E o carro, como está?" Ele era vago, mas a conversa sempre escorregava
para o otimismo. "Já ganhou, você vai ser tetra", diziam todos. O GP
do Brasil era o cardápio da semana. Pior para o já ansioso Ayrton. "Estou
corroído por dentro" - confessou a mim naquela terça-feira, 22 de março. -
"As pessoas estão enganadas: não vai ser esse passeio que elas imaginam.”
O primeiro contato dele com a pista de Interlagos, na
quarta, ainda só para a gravação de um comercial da Nacional Seguros, coincidiu
com o primeiro contato dele com a minha Caras, já impressa. Um assessor dele,
Charles, sem maldade, fez a gentileza. Ele só deu uma folheada e foi trabalhar.
Por coincidência, quem produzia o comercial da Nacional era Tina Krugg, a mesma
que me acompanhou com Caras a Camburi. Ela pediu-lhe um autógrafo e, em troca,
deu-lhe de presente uma cartela com sobras das minhas fotos. Mais fotos. Ele
brincou:
- Então, você é a famosa Tina!
Tudo muito ameno, tudo muito cordial. Ainda me ligou para
dizer que, à noite, jantaríamos na casa dos pais dele. Lá, ficou mais quieto do
que nunca, mas vi no seu silêncio a expectativa do GP que chegava. Engano meu.
Foi a gente se despedir dos pais, abrir a porta do elevador e apertar o botão
2S da garagem para ele fechar de vez a cara:
- Você viu a Caras?
Claro: durante o almoço, no McDonald's da Avenida Rebouças,
eu tinha passado e repassado as páginas. Confesso que, no final, me veio pela
primeira vez um friozinho na barriga. Estava linda, a reportagem. O texto,
corretíssimo. Mas, no fundo, no fundo, eu me perguntava: era preciso ter feito?
- Você gostou? - prosseguiu ele.
- Não sei, você não gostou?
- Não.
Só isso: não. O elevador chegara à garagem, cada um de nós
tinha ido com seu próprio carro, o que me condenava a uns dez minutos de
angústia até nos reencontrarmos no nosso apartamento da Paraguai.
- Me fala, me fala - implorei.
- Você estava muito sexy.
E em casa que aconteceu toda a explosão que narrei. Eu já o
tinha visto emburrado, cabisbaixo - era o jeitão dele de mostrar sua
contrariedade. Conhecera e aprendera a conviver com isso, respeitando o timing
da crise dele, sem entrar na paranóia de que era eu a culpada, ou que era de
mim que ele tinha se enchido. Mas, discutir daquela forma, nunca. Ainda assim,
eu pensava primeiro nele:
- Meu Deus, ele vai ter corrida, não pode ficar assim. Foi
uma experiência dramática mas muito educativa, como podem ser instrutivas
algumas brigas entre casais que verdadeiramente se amam. No dia do enterro do
ídolo Senna, pessoas do povo abriam as páginas de Caras, não só a do casal
feliz, de uma edição seguinte, mas também aquelas mesmas que geraram tanto
ódio. Elas me acenavam com a revista, não para me adular, eu sei, mas como uma
forma de espontânea solidariedade com a mulher que ele tinha.
Digo isso nunca por vaidade, e sim com o coração tão partido
como naquela noite difícil e em outras que se seguiram. Olho para trás e vejo
que muitas coisas se juntaram ali naquelas páginas de revista. Tirem fora a
tensão da semana, muito compreensível. Mas havia a surpresa de ele me ver, de
novo, como modelo - depois de uma sumida legal que eu tinha dado das páginas e
dos outdoors. Talvez, inconscientemente, eu quisesse lembrar: tenho um
trabalho, tenho uma profissão. O Béco, de repente, já não se conformava.
- Você não precisa mostrar ao mundo que tem um corpo bonito,
que tem esse outro lado Adriane Galisteu - foi uma de suas frases mais
esclarecedoras.
Esse outro lado Adriane Galisteu quer dizer: a modelo, aquela
que continuava, bem ou mal, no book da Elite. Ele, jamais disse com clareza,
mas devia sonhar com outros rumos profissionais para mim. E tinha mais, aquilo
que ele não escondeu mesmo diante dos meus argumentos do-tipo "mas
você sabia tudo", ou "você viu os negativos antes". Um
sentimento bem humano chamado ciúme.
- Seu corpo bonito é para mostrar só pra mim.
Eu sou ciumenta, embora disfarce. Ele é ciumento, pensei.
"Ciúme de namorado, isso passa", me acalmou mamãe, sempre discreta,
quando liguei na manhã posterior à tempestade. "Normal, coisa de quem
gosta da gente", reforçou Nádia, amiga do Rio, mulher do Oscar Guerra -
outra a quem recorri, por telefone, pedindo colo e luz. O que ele próprio,
de certo modo, me reconfirmou, antes de sair para o primeiro treino oficial, na
sexta-feira, 25 de março, já aplacada a onda de fúria:
- Me faz só um favorzinho sobre aquilo. Vai na revista e
pede os cromos. Todos. Quero guardar pra mim.
Nenhum problema. Ele ainda teve tempo de reconhecer, dias
mais tarde, que ao promover todo o furacão o que mais o incomodava era o
fotógrafo. Até onde tinha ido a ousadia dele? Exatamente até o ponto que as
fotos revelavam. Mas há outro desconto que dou hoje ao descontrole do
Béco, e uma lição que ele sempre quis me incutir, eu reconheço: o perigo que a
celebridade acarreta. Não tem nada a ver com a revista, ou com a imprensa,
mas tem a ver com a vida.
- Eu já estou calejado - dizia ele, alertando para as cascas
de banana que invejosos e futriqueiros gostam de botar no caminho dos que
ganham fama e respeito. - Mas você, que é menina, preste atenção para não
se machucar.
Foi um maravilhoso cidadão, que eu amo, de nome Ayrton, quem
me falou essas coisas.
Adriane Galisteu foi capa da
revista Caras Edição 20
Leia também: Adriane Galisteu Primeira Vez na Revista Caras
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