Xuxa e Viviane Senna andam de mãos dadas pelo cemitério
Cumprimentei a mãe, o pai, a irmã. Fiquei a distância, com a
minha dor. Vi Nuno Cobra, sempre calmo, agora dilacerado. Vi o prefeito Paulo
Maluf. Vi quando Hebe Camargo depositou sobre o caixão o terço verde-amarelo
que ela mandara fazer - e que, me contaram depois, e custo a crer, foi arremessado
no chão pelo ato impensado de fanatismo de outra pessoa que não comunga da
mesma fé. Hebe, chorosa, veio ao meu encontro para me abraçar: "Ó, menina,
ó Adriane, que absurdo, que tragédia!”
Coroas de flores, soldados enfileirados, a bandeira sobre o
caixão, o batalhão de fotógrafos - eu não conseguia fazer uma ligação entre meu
namorado e o homem que recebia aquelas homenagens. Talvez meu estado catalético
tenha me salvado de dores maiores. Imóvel, acompanhada apenas de minhas
lágrimas ou de uma ou outra amiga que me vinha dar a mão, eu me mantive no
mesmo lugar dia e noite. O pouco que saí foi para ver, lá fora, o espetáculo
doloroso da multidão. Quando voltei, o capacete dele estava pousado no caixão.
Olhava, e aquilo me machucava. Dias antes, o Celso, que trabalhava com ele,
tinha me avisado: "Ele quer lhe fazer uma surpresa. Encomendou um,
igualzinho, pra você". Ainda espero por ele. Ou será que não devo esperar?
O F, de família, me dava acesso ao - digamos assim - mais
privilegiado de todos os lugares do velório, mas imaginei a dor que todos ali
sentiam, avalio a sensação deles de dar de cara com aquela que era a imagem
mais íntima do Béco dos últimos tempos. Zaza estava muito abalada. Viviane,
mais ainda. O pai, senhor Milton, não vi derramar nenhuma lágrima, aproximar-se
do caixão uma única vez, mas essa era sua forma de experimentar sua terrível
dor. Léo vagava, meio a esmo. Identifiquei o Dito, um parente do senhor Milton
com quem a gente costumava pescar na fazenda de Tatuí. Ele não tinha como me
consolar, a não ser com aquela conversa meio estranha:
- Sei lá, se lhe der vontade vai ser um prazer recebê-la na
minha fazenda para uma pescaria.
Luiza e Braga estavam no salão ao lado, o dos amigos. Senti
que ali encontraria meu ponto de apoio. Eles conversavam com o Emerson
Fittipaldi, experimentadíssimo, mas abaladíssimo. Passei pela outra sala, a dos
convidados - tudo tinha sido organizado segundo um protocolo profissional.
Circulei um pouco. Eu me sentia olhada, vigiada. Por sorte, estava muito
desligada. Tinha muita conversa em volta, eu não ouvia nada. Foi duro me
conter: diante do caixão, quantas vezes não senti vontade de perder a
compostura, de me arremessar sobre ele, de gritar, berrar, espernear? Mas havia
uma outra Adriane que me puxava para trás: aquela que, mesmo com uma enorme
chaga latejando no coração, assistia a um teatro, da qual ela não fazia parte,
não queria fazer, não tinha forças para fazer. Uma Adriane que não estava ali
encenando a viúva. E que nem estava disposta a entrar num inútil campeonatinho
de viuvez.
Mendigos, milionários, crianças, adolescentes, velhos,
mulheres, deficientes, garotões, políticos, artistas, socialites - a fila era
um democrático mostruário de um país chamado Brasil que se recusava a admitir a
idéia de perder uma das poucas figuras que lhe passavam um sentimento positivo
de vitória. Outros enterros épicos houve. Mas Ayrton Senna era o filho, o
irmão, o namorado, o amigo que todo o Brasil queria ter. Era, talvez, o
sentimento daqueles bilhetes arremessados sobre o caixão, pelos que passavam na
vertiginosa fila. Com todas as letras, era pelo menos o que diziam os meus
bilhetes - aqueles que as pessoas apressadas, pressionadas pelos guardas, ainda
tinham tempo de me lançar.
Se fosse resumir todos eles num só, seria mais ou menos
assim, um consolo oscilando entre o futuro e o passado:
- Fé, Adriane. Nós sofremos com você. E torcemos por você.
Identifiquei um aleijado que passou uma vez diante do caixão
e fez o sinal-da-cruz. Passou uma segunda vez, a mesma coisa. Terceira vez - o
mesmo. Fiquei pensando quanto tempo ele ficou na fila, arrastando-se no
chão. Já era noite e a família Senna se retirara, para descansar. Alguém se
aproximou de mim e propôs:
- Vai você também. Será um dia duro, amanhã.
- Descansar, hoje? Tenho o resto de meus dias para descansar.
De madrugada, não tenho idéia da hora (1h30? 2h00?), alguém
tocou no meu ombro, cerimoniosamente. "Tem um senhor chamando você lá
fora?" Um senhor? Sim, Frank Williams. Imóvel no meu canto, eu tinha visto
quando, sempre amparado em sua cadeira de rodas, aquele que havia sido o último
patrão de Ayrton chegou diante do caixão, guardou um silêncio comovido, alheio
a tudo que se passava ao lado, como se estivesse numa comunicação muito
direta com a vítima de um infeliz acidente de trabalho - o seu trabalho.
Afastou-se assim como chegou, sempre muito discreto, como se seu status pudesse
ficar invisível diante da curiosidade dos que ali estavam. Agora, Frank me
mandava chamar lá fora. Já se instalara no seu carro. Aproximei-me e ele me
disse, como se sua alma falasse, não a sua boca:
- I'm very sorry, Adriane.
Repetiu, com sentimento. Na surpresa, não esbocei nenhuma
resposta, a não ser um gesto qualquer de cabeça. O chefão de uma das usinas da
Fórmula 1 pedindo desculpas a mim? Só no dia seguinte, ao vê-lo de novo, no
enterro, é que fui até ele e o beijei no rosto, com um obrigado, obrigado.
Ainda de madrugada, recostei num sofá escondido por um dos tapumes, atrás do
caixão, enquanto a multidão continuava seguindo sua romaria. Entorpecida,
depois de cinco noites insones, eu saboreei a primeira sensação de algum alívio
espiritual. Não era sequer sono. Mas as imagens que rodopiavam pela minha
cabeça, na minha vigília sonolenta, evocavam um Ayrton vivo e emoções bonitas
que tínhamos vivido. Um trailer de todos os sonhos que eu viria a ter com
ele, nos dias seguintes - e que até hoje enchem de ternura as noites em que eu
rolo na cama, estendo o braço para alcançá-lo e não o alcanço.
Quando, de madrugada, alguém me arrastou para o Maksoud
Plaza, onde estavam hospedados a Luiza e o Braga, com o argumento de um banho e
recuperar as energias para o pior de todos os momentos, o do enterro, eu
me deixei levar. Na portaria, rabiscado em papel timbrado do hotel, eu recebi
essa mensagem. Leiam comigo, por favor, porque é muito importante:
"Filha querida: sei que a sua dor é muito grande, mas
você é também forte.
Eu daria tudo, um pedaço de mim, para não vê-la nesse estado.
Mas lembre-se de que eu a amo muito. Pode contar comigo para
tudo.
Cuide-se, que Deus é bom e está sempre com você. Lembre-se
também de que você foi muito feliz ao lado dele.
Agora, está doendo muito. Esta dor vai passar, mas a doce
lembrança do amor você nunca vai esquecer.
Beijos de sua mãe que a adora.
Emma 5-5-94”
Quando eu estudava num ginásio público da Lapa, mal e
porcamente freqüentando aula nas horas vagas de meus shows de música e de minha
vida de modelo, os professores de português e de literatura gostavam de indicar
livros complicados e cheios de sabedoria sobre a escrita, sobre a humanidade e
sobre a vida. Duvido que, numa hora daquelas, alguém pudessse escrever
algo tão forte, tão direto, tão verdadeiro como o que escreveu uma pessoa que
teve de fazer da vida um trabalho e não um lazer intelectual. Guardei o
bilhetinho de minha mãe como se fosse uma oração de bolso. Ela entendia tudo -
ela me entende. Por isso nunca escondi nada de meus sentimentos para ela.
Por isso pedi sua mão e seu colo quando, aqui, distante do Brasil, ainda que em
país hospitaleiro, comecei a escarafunchar essas minhas lembranças.
Por pudor e por reserva, minha mãe jamais esteve
pessoalmente com Ayrton, ao longo de nosso namoro de mais de um ano. Falaram-se
ao telefone, trocaram notícias - mas a doce Emma sentia-se intimidada
diante de uma celebridade. No entanto, está escrito, testemunhado, juramentado:
ninguém conhecia mais de nós dois, Béco e eu, do que ela. E, assim como deixou
a mensagem, assim se foi, sem querer me incomodar, antes que eu chegasse e
antes que eu saísse para o funeral do herói que, por acaso, tinha sido meu
namorado.
O funeral, então, seria para mim ainda mais chocante. Do
ponto de vista da encenação e do cerimonial, a namorada poderia estar ali como
poderia não estar. O que eu tinha, além daquele crachá F, de família, que me
fazia ter uma importância a qual eu nem ligava, era o amparo dos amigos
verdadeiros e a vontade de acompanhar o Béco em sua última viagem. Sem
pretensão, acho que ele, se tivesse como, gostaria muito, mas muito mesmo, de
me ver por perto.
Minha sorte foi sentir, de volta ao velório, já à espera do
enterro, o calor de uma mão firme e resoluta. Eu estava mais catatônica do que
nunca e se não fosse a Birgit, aquela minha amiga de perambulações européias,
talvez não conseguisse distinguir um pé do outro. Birgit tomou conta,
literalmente. No atropelo da saída do cortejo, com helicópteros, ônibus,
carros, bandas militares, honras marciais, ela me puxou resolutamente para
dentro de um dos microônibus especiais, onde pude distinguir o rosto amarfanhado
de um ou outro piloto: Berger, Prost, me parece, talvez o Christian. Com a
Birgit e o marido, sentei ao fundo, refúgio tranqüilo. Mas o ônibus se pôs em
movimento e não resisti a entreabrir a cortina e olhar para fora.
Pessoas choravam, gritavam, acenavam. Sentia, no movimento
dos lábios de alguns, a identificação imediata: "Adriane... namorada..."
As fotos que tinham sido o pretexto de nossa briga eram exibidas a mim - que
ironia - como sinal de algo de que ele haveria de se orgulhar. A outra reportagem,
do casal ao pôr-do-sol na fazenda de Tatuí, o atestado público do amor dele por
mim, tramado por ele, presente-surpresa para o reencontro que não houve,
virou pôster, virou símbolo, virou sei lá o quê - as pessoas queriam, à
passagem do funeral, compensar o luto com a imagem de um homem feliz, bonito e
vitorioso. Ele me reconhecia, eles me reconheciam, eu chorava.
Lento o cortejo, e no meio da massa uma figura da qual não
vou me esquecer: um pretinho, adolescente, começou a correr ao lado do ônibus,
bem abaixo de minha janela. Acenava para mim e chorava. Acenava, chorava e
corria, no ritmo do ônibus. Tenho a impressão de tê-lo visto a primeira vez ali
no final da Avenida Rebouças, quase na ponte que atravessa a Marginal de
Pinheiros. Ao chegarmos ao ponto de desembarque no Cemitério do Morumbi, ele
continuava ali, embaixo da janela, acenando, correndo e chorando. Tento
adivinhar quantos quilômetros são: oito? Dez? A entrada que levava à tumba era
restrita - mais uma vez, Leonardo tinha acionado um impecável cerimonial. Vi o
crioulinho e pedi para que ele viesse também, em homenagem a seu esforço. Mas
foi ele quem dispensou:
- Vim até aqui porque amava o Ayrton. Daqui pra frente, não
tenho mais nada a fazer, não senhora.
Sábias palavras. Não era ele o único que estava dispensado
de participar - me desculpem a sinceridade - da festa.
Comigo, muito respeito. E a mão da Birgit pousada no meu
ombro, servindo de retaguarda. Lugares marcados, e lá estava para a Adriane
Galisteu reservada uma cadeira na segunda fila, atrás da mãe, do pai, do irmão,
da irmã, dos sobrinhos. Por um momento, recordo-me de ter acariciado o ombro do
senhor Milton, de pé, bem a minha frente. Calado em seu sofrimento, ele cedeu a
um leve tremor de susto, quem sabe de reconhecimento. Ao me aproximar do
meu lugar, vi, ao lado, a Xuxa. O cerimonial achou por bem botar uma ao lado da
outra. Ela estava muito bonita - bonita como ela sempre é. Desde menina,
eu a admirava. Cheguei a me apresentar no programa dela, com o Meia Soquete,
anos atrás. Era como se fosse uma figura familiar para mim.
No meu torpor, não senti um milímetro de estranheza ao
reencontrar ali uma ex-namorada de Ayrton Senna. Estranhei, isso sim, quando a
minha chegada provocou nela o imediato efeito gangorra. Foi eu sentar, ela se
levantou. Buscou lugar do outro lado, num outro conjunto lateral de cadeiras.
Reconheço: talvez eu nem me desse conta de nada,
absolutamente nada, se a imprensa não tivesse, nos dias seguintes, insistido na
falsa questão da competição. Naquela história de ela chegar de helicóptero, eu
de ônibus - ou a versão maluca de que um segurança me impediu de entrar no
carro da família, na hora de ir embora. E de ela ter se hospedado com a
Viviane, irmã do Ayrton, enquanto a família me ignorava. Sabem o que penso? Eu
não estava ali para disputar o papel de viúva. Eu estava ali porque a única
coisa que realmente me interessava eu perdera. Queixas, rancores, ciúme eram
sentimentos que não cabiam no meu coração, onde só transbordava a melancolia
e a dor.
Quem sou eu para julgar?
Que lindas palavras. Ela certamente o amava profundamente e com muita sinceridade.
ResponderExcluirAdriane realmente não estava ali para uma competição.Ela não precisava disso.Ela
ResponderExcluirera a namorada.A outra ,gostaria de ter sido.Exemplar comportamento,Adriane.
Se mostrou superior.Você é muito gente.
Me sinto triste toda vez que sei que esse amor se desfez! Adriane, gostaria que vc e Airton ainda estivem juntos até hoje.
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