sábado, 8 de junho de 2013

CAMINHO DAS BORBOLETAS - Os fãs e admiradores se solidarizam com Adriane Galisteu



A correspondência que desabou sobre mim, nos dias e nas semanas seguintes, os telefonemas recebidos, as manifestações espontâneas, tudo, ou quase tudo, parecia trazer, além da marca do consolo pela perda, o sentido de uma solidariedade explicita  - coisa que eu nem entendia bem, na minha cabeça vazia de toda e qualquer noção de realidade. Detive-me, a princípio, num texto ditado pela própria mão de Deus e por Sua sabedoria. O salmo 81 veio sublinhado, num papel avulso da Bíblia:
Deus se levanta no conselho divino. Em meio aos deuses, ele julga:

"Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios?
Pretejei o fraco e o órfão, 
Fazei justiça ao pobre e ao necessitado.
Libertai o fraco e o indigente
Livrai-os da mão dos ímpios.
Eles não sabem, não entendem,
Vagueiam em trevas:
Todos os fundamentos da Terra se abalam.
Eu declarei: Vós sois deuses,  
Todos vós sois filhos do Altíssimo.
Contudo, morrereis como homem qualquer,
Caireis como qualquer dos príncipes ".
Levanta-te, ó Deus, julga a Terra.
Pois as nações todas pertencem a ti.

Salmo 81. Coincidência? O dele, predileto.
O baú com os milhares de cartas que me chegaram, pelos caminhos mais transversais do mundo, são hoje o meu mais genuíno tesouro. Algumas nem cartas eram, os recortes de jornais, com rápidas anotações sobre fotos minhas e de outras figuras do adeus ao Béco. "Sempre só", escreveram a meu respeito sobre uma das fotos de jornal. Sobre outra, em que, à frente do Prost, eu olhava para cima, a mão tapando a boca, rabiscaram: "Linda! O Ayrton te olhará do céu". A atitude em meu favor dos deserdados de Senna - todo aquele mundão subitamente órfão - me aliviava. A atitude contra alguém, eventualmente, me era indiferente.

"Silêncio para injúria.
Olvido para o mal.
Perdão às ofensas (...).
Não te voltes contra ninguém.
E assim vencerás.”

Poema em forma de oração. Como em outros casos, com amor, mas sem assinatura. Sinceramente, não entendia por que tantos se preocupavam em falar em perdão e em inimigos. Eu nunca os tive, nunca os cultivei. Mas havia também cartas de pura dor e desespero, como a da francesinha de 15 anos, Julia, de um lugarejo da Provence, que, num cansativo esforço de se comunicar em inglês, me dizia que compartilhava comigo o amor por Ayrton Senna e que naquele 1° de maio também teve ímpetos de se  matar.
Da Inglaterra, de Portugal, do Japão, da Itália, da Suíça - e especialmente do Brasil, as páginas que eu ia lendo e catalogando, com paciência, revelavam às vezes histórias tenebrosas, na identificação com o meu sofrimento e na vã tentativa de dizer que, um dia, isso pode passar. Da Alemanha, uma linda carta enfeitada com trevos de quatro folhas e palavras de ânimo. Dentro de um envelope, flores secas colhidas dos buquês que, numa romaria que não pára nem há de parar, os fás depositam no túmulo dele (antes de viajar para Portugal, tentei passar despercebida, bem cedinho, de manhã, com a amiga Isabel, no cemitério, para lhe prestar uma homenagem silenciosa, mas é impressionante a peregrinação diária dos fãs inconsoláveis). Uma mocinha do Rio insistia no tema de "esquecer as mágoas" (que mágoas, me perguntava?) e "ser superior":
"PS: que você seja a eterna primeira-dama da Fórmula 1. Como Jacqueline Kennedy é a eterna primeira-dama dos Estados Unidos".
Adolescentes, velhos, homens, mulheres, empresários, amigas que tinham sumido de vista. Poetas que jamais tinham escrito poesia revelavam uma súbita vocação, como o Sandro, do Limelight - onde Béco e eu nos conhecemos. Místicos me acenavam com fórmulas de alívio rápido. Um número surpreendente de cartas psicografadas, assinadas Ayrton Senna da Silva, ou até A. S. da Silva, passavam, de algum lugar para outro lugar, a idéia de que o destino fora traçado, que o repouso do guerreiro era resultado de vontade superior e quanto ele sentia os efeitos da separação física. Gostaria de acreditar nessa possibilidade da comunicação com ele. De vê-lo,  nem que fosse por um segundo.
Ao amarrar no braço a correntinha mágica que minha amiga carioca Bebel me deu, antes da viagem para Sintra, eu tinha três desejos a fazer e este, de vê-lo de  novo, onde quer que seja, foi o terceiro, pela ordem, mas o mais importante, o mais aguardado e talvez o mais improvável deles.
Uma dessas cartas que recebi trazia o recorte de jornal anunciando que Senna ia virar nome de uma estrela. Homenagem de astrônomos da Europa. Estrela para sempre - nada mais perfeito. Assim será, remoia eu, recolhida pelos braços sempre estendidos da Luiza e do Braga, nos dias seguintes ao enterro, na fazenda Guariroba, a  poucos quilômetros de Campinas.



Nenhum comentário:

Postar um comentário