sábado, 8 de junho de 2013

CAMINHO DAS BORBOLETAS - A transferência de Ayrton Senna para a Williams


Sentada displicentemente sobre um pneu esquecido por ali, num canto, enregelada pelo frio do inverno inglês, eu fui a única testemunha, no início de dezembro de 1993, do mais bem guardado segredo da Fórmula 1. O cenário era um galpão enorme que servia de oficina para a escuderia Williams/Renault, a algumas centenas de milhas de Londres. Um silencioso mas atento Frank Williams, o dono da casa, recepcionava, ao lado de não mais do que três ou quatro projetistas e engenheiros do mais alto escalão e da mais absoluta confiança, aquele que ele jamais escondera ser o seu filho dileto nas pistas.
Nada assinado, no papel, aparentemente - embora a imprensa já pressentisse a espetacular notícia e farejasse a novidade, em tocaia permanente. Depois de seis anos de McLaren, Ayrton Senna ia trocar de veículo, ia mudar de camisa. Ele me confidenciava, mas em doses de conta-gotas, os convites que recebera (Benetton, Ferrari, Williams, a própria McLaren) e comentava por alto o drama que vivia com a escolha provável - de trocar o certo da McLaren pelo desconhecido da Williams. De mais a mais, as más-línguas faziam esparramar o veneno de que a transferência perigava. Por ironia do destino, Ayrton estava nas mãos do "francês". Se ele decidisse continuar a correr, tchau Williams. Mas Alain Prost estava de saída da Williams e das pistas, parecia certo; supostamente, por uma cláusula contratual qualquer ou então por sua influência junto aos compatriotas da Renault, o fato é que o francês aceitaria a idéia de entregar sua máquina voadora a não importa que piloto, com exceção de seu arquirrival brasileiro. Por um momento, até o próprio Ayrton chegou a acreditar na versão venenosa.
A realidade, porém, é que, cercado de todo o sigilo possível, lá estava Ayrton, em pessoa, na fábrica da Williams, pronto para cumprir o primeiro e mais elementar dos ritos de iniciação de um novo piloto numa nova escuderia. Meticuloso que só ele, vestiu macacão, luva, capacete, sapatilha - e se meteu dentro do cockpit do seu futuro carro como se já fosse acelerar para a largada. Cockpit, ou em outras palavras, a carcaça, só aquela parte externa, com o banco mas sem motor, sem nada que pudesse botar em movimento o Williams por meio metro, que fosse. A partir do protótipo, aí sim, os engenheiros tratariam de construir o motor, a suspensão, os aerofólios, todos os componentes da aerodinâmica. Era só um teste, por assim dizer, ergométrico - se bem que de alto significado psicológico. Saber se Senna se sentia à vontade lá dentro.
Eu tremia de frio, e ele cumpriu, por quarenta minutos siberianos, os pré-requisitos com a paciência de um profissional do detalhe.
- Está me apertando aqui - reclamava ele, e vinha um projetista assinalar com giz o lugar onde a carcaça tinha de ser modificada.
- Isso aqui não está confortável - ressentia ele - e mais uma marca de giz.
Ao final, o cockpit estava todo riscado, enquanto Frank Williams, sempre em silêncio, em sua cadeira de rodas, só confirmava com a cabeça, dizendo sim ao que poderia parecer mero capricho de um menino mimado. Quando a sessão acabou, o Ayrton meio obcecado pôde se dar ao direito de uma piadinha típica de Béco, sussurrando em português  ao meu ouvido:
- Acho que estão acostumados com um cara mais baixinho - brincou, puxando-me pela mão. A vítima da perfídia vocês sabem quem é, não sabem?
Fizemos um tour pela nova casa: o galpão gigantesco, os laboratórios onde engenheiros simulavam exercícios de aerodinâmica e desempenho em seus mapas de computação gráfica, fomos até o escritório do chefão, Frank, para umas boas-vindas calorosas, ainda que extra-oficiais. Estava lá uma filha dele, lindíssima, a quem me apresentaram. Tive a melhor impressão do novo patrão. No seu jeitão observador e reservado, sabia ser cordial como ninguém. Um gentleman à inglesa.
Irrecusável a vontade de compará-lo com Ron Dennis, o chefe da McLaren, com aquela sua ciclotimia, sua postura imprevisível, seu temperamento irritadiço alternando-se, sem quê nem por quê, com súbitas gargalhadas. Ayrton e Ron tiveram muito tempo juntos para descobrirem uma forma de convivência entre eles. Eu, que o vi meia dúzia de vezes, por pouco mais de um ano, não conseguia entender, por exemplo, que Ron continuasse a sorrir em ocasiões em que o carro do Béco abandonava uma ou outra prova. Era demais para minha cabeça.
Quem fazia a diferença, porém, era um homem chamado Ayrton Senna. Isso eu pude sentir de perto - como ninguém. A diferença tinha um nome: talento. E o talento tinha uma conseqüência: respeito. Campeão do mundo, uma, duas, três vezes, ele se metia debaixo do carro para discutir com o menos graduado mecânico a posição correta da porca. Ia à loucura com os designers em debates do tipo "isso aqui tem de ser reto", e o outro dizendo "não, ondulado" - e não havia Cristo que fizesse Ayrton  mudar de idéia. Quantas vezes ele não implicou com a textura dos pneus? Como um gênio, quase nunca errava. Com o temperamental Ron Dennis, até 1993, ou com o plácido  Frank Williams, em 1994, ele impunha o conhecimento de anos e anos de mãos metidas na graxa e de dedos calejados pelas trepidações dos volantes.
Um documentário exibido pela televisão italiana, mostrando uma reunião de Frank, engenheiros e seu piloto número 1, às vésperas da tragédia de Ímola, ressaltava o estilo Senna. Ele batia pé firme, a propósito do que poderia parecer uma besteirinha qualquer, coisa de pneus, por aí: - Façam como ele quer - decretou o velho Frank. Posso testemunhar, porém, que a admiração e o respeito eram recíprocos:
- Frank é um verdadeiro chefe de equipe - disse-me ele, certa vez, dando toda ênfase à palavra chefe e suas implicações sobre toda a equipe.


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