Sentada displicentemente sobre um pneu esquecido por ali,
num canto, enregelada pelo frio do inverno inglês, eu fui a única
testemunha, no início de dezembro de 1993, do mais bem guardado segredo da
Fórmula 1. O cenário era um galpão enorme que servia de oficina para a
escuderia Williams/Renault, a algumas centenas de milhas de Londres. Um
silencioso mas atento Frank Williams, o dono da casa, recepcionava, ao lado de
não mais do que três ou quatro projetistas e engenheiros do mais alto
escalão e da mais absoluta confiança, aquele que ele jamais escondera ser o seu
filho dileto nas pistas.
Nada assinado, no papel, aparentemente - embora a imprensa
já pressentisse a espetacular notícia e farejasse a novidade, em tocaia
permanente. Depois de seis anos de McLaren, Ayrton Senna ia trocar de veículo,
ia mudar de camisa. Ele me confidenciava, mas em doses de conta-gotas, os
convites que recebera (Benetton, Ferrari, Williams, a própria McLaren) e
comentava por alto o drama que vivia com a escolha provável - de trocar o certo
da McLaren pelo desconhecido da Williams. De mais a mais, as más-línguas faziam
esparramar o veneno de que a transferência perigava. Por ironia do destino,
Ayrton estava nas mãos do "francês". Se ele decidisse continuar a
correr, tchau Williams. Mas Alain Prost estava de saída da Williams e das
pistas, parecia certo; supostamente, por uma cláusula contratual qualquer ou
então por sua influência junto aos compatriotas da Renault, o fato é que o
francês aceitaria a idéia de entregar sua máquina voadora a não importa que
piloto, com exceção de seu arquirrival brasileiro. Por um momento, até o
próprio Ayrton chegou a acreditar na versão venenosa.
A realidade, porém, é que, cercado de todo o sigilo
possível, lá estava Ayrton, em pessoa, na fábrica da Williams, pronto para
cumprir o primeiro e mais elementar dos ritos de iniciação de um novo piloto
numa nova escuderia. Meticuloso que só ele, vestiu macacão, luva, capacete,
sapatilha - e se meteu dentro do cockpit do seu futuro carro como se já fosse
acelerar para a largada. Cockpit, ou em outras palavras, a carcaça, só aquela
parte externa, com o banco mas sem motor, sem nada que pudesse botar em
movimento o Williams por meio metro, que fosse. A partir do protótipo, aí sim,
os engenheiros tratariam de construir o motor, a suspensão, os aerofólios,
todos os componentes da aerodinâmica. Era só um teste, por assim dizer,
ergométrico - se bem que de alto significado psicológico. Saber se Senna se sentia
à vontade lá dentro.
Eu tremia de frio, e ele cumpriu, por quarenta minutos
siberianos, os pré-requisitos com a paciência de um profissional do detalhe.
- Está me apertando aqui - reclamava ele, e vinha um
projetista assinalar com giz o lugar onde a carcaça tinha de ser modificada.
- Isso aqui não está confortável - ressentia ele - e mais
uma marca de giz.
Ao final, o cockpit estava todo riscado, enquanto Frank
Williams, sempre em silêncio, em sua cadeira de rodas, só confirmava com a
cabeça, dizendo sim ao que poderia parecer mero capricho de um menino mimado.
Quando a sessão acabou, o Ayrton meio obcecado pôde se dar ao direito de uma
piadinha típica de Béco, sussurrando em português ao meu ouvido:
- Acho que estão acostumados com um cara mais baixinho -
brincou, puxando-me pela mão. A vítima da perfídia vocês sabem quem é, não
sabem?
Fizemos um tour pela nova casa: o galpão gigantesco, os
laboratórios onde engenheiros simulavam exercícios de aerodinâmica e desempenho
em seus mapas de computação gráfica, fomos até o escritório do chefão, Frank,
para umas boas-vindas calorosas, ainda que extra-oficiais. Estava lá uma filha
dele, lindíssima, a quem me apresentaram. Tive a melhor impressão do novo
patrão. No seu jeitão observador e reservado, sabia ser cordial como ninguém.
Um gentleman à inglesa.
Irrecusável a vontade de compará-lo com Ron Dennis, o chefe
da McLaren, com aquela sua ciclotimia, sua postura imprevisível, seu
temperamento irritadiço alternando-se, sem quê nem por quê, com súbitas
gargalhadas. Ayrton e Ron tiveram muito tempo juntos para descobrirem uma forma
de convivência entre eles. Eu, que o vi meia dúzia de vezes, por pouco mais de
um ano, não conseguia entender, por exemplo, que Ron continuasse a sorrir em
ocasiões em que o carro do Béco abandonava uma ou outra prova. Era demais para
minha cabeça.
Quem fazia a diferença, porém, era um homem chamado Ayrton
Senna. Isso eu pude sentir de perto - como ninguém. A diferença tinha um nome:
talento. E o talento tinha uma conseqüência: respeito. Campeão do mundo, uma,
duas, três vezes, ele se metia debaixo do carro para discutir com o menos
graduado mecânico a posição correta da porca. Ia à loucura com os designers em
debates do tipo "isso aqui tem de ser reto", e o outro dizendo
"não, ondulado" - e não havia Cristo que fizesse Ayrton mudar
de idéia. Quantas vezes ele não implicou com a textura dos pneus? Como um
gênio, quase nunca errava. Com o temperamental Ron Dennis, até 1993, ou com o
plácido Frank Williams, em 1994, ele impunha o conhecimento de anos
e anos de mãos metidas na graxa e de dedos calejados pelas trepidações dos
volantes.
Um documentário exibido pela televisão italiana, mostrando
uma reunião de Frank, engenheiros e seu piloto número 1, às vésperas da
tragédia de Ímola, ressaltava o estilo Senna. Ele batia pé firme, a propósito
do que poderia parecer uma besteirinha qualquer, coisa de pneus, por aí: -
Façam como ele quer - decretou o velho Frank. Posso testemunhar, porém, que a
admiração e o respeito eram recíprocos:
- Frank é um verdadeiro chefe de equipe - disse-me ele,
certa vez, dando toda ênfase à palavra chefe e suas implicações sobre toda a
equipe.
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