Trecho retirado do livro “Caminho das Borboletas” de Adriane Galisteu
O GP da Austrália foi no dia
7 de novembro. Demos a nós dois dias de descanso em Sydney, para um passeio de
lancha no lago e uma bateria de fotos que eu guardo com amor. E já aquela
aflição de encher as malas com presentes para o Natal. Adivinha que tipo de
restaurante ele procurou, até cansar, para me levar? Um italiano, é claro.
Adivinha para onde eu escapei, um dia, na hora do almoço? Bem, nem preciso
falar, para não ficar parecendo um comercial.
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O primeiro encontro secreto
Ayrton-Williams, no inverno horroroso da Inglaterra, a mais nítida impressão
que ficou na minha cabeça, porém, foi uma frase meio banal, solta ao vento, que
ele me disse tão logo tomamos o caminho de Londres e, de lá, para a temporada
tropical de férias e fim de ano no Brasil:
- Sei lá, Dri. Achei esse
carro meio esquisito: mais fino e mais baixo.
No primeiro teste público, aí
já em 1994, ele repetiria um sentimento ruim:
- Sinto que cheguei aqui com
dois anos de atraso. O carro está virando o fio.
Tradução: aquela história do
super-piloto com a super-máquina não seria bem assim como estavam falando. Mas,
enfim, adeus à fria Londres. O avião embicou para o sul, o sol matinal do Rio
veio nos receber, o Natal se aproximava e Angra estava à espera, para uma longa
temporada em que eu tinha planos de arrombar o zíper do macacão do piloto
Senna, arrancar-lhe a carranca do cenho franzido e testa enrugada, para lhe
fazer uns afagos nos pés e mergulhar nas marés do amor do Big Coke, do Becão,
do meu garotão de praia - com a devida licença da ciumenta Quinda (cadelinha de Ayrton), tenho de
admitir.
Natal, para mim, é um convite
à tristeza. Desde que meu pai morreu, em 1989, era como se a festa não
existisse. Ele faleceu em outubro, como eu já contei, numa situação
inesperada, de repente - e nossa casa nunca mais foi a mesma. Minha avó
materna, Agnes, que morava ao lado, tipo da mulher determinada, uma fortaleza,
ainda tentava levantar nosso astral, naquele dia de má memória, recorrendo
a velhas receitas de rabanadas e pães húngaros rabiscadas em cadernos
antiquíssimos - e, num ano do qual não me lembro, mamãe, que sempre foi mais
desanimada que vovó, bem que preparou um peru recheado com farofa e ameixas.
Mas a gente não cultivava o ritual da ceia. Era um jantar comum, quem quisesse
se servir que se servisse e nada de árvore enfeitada, os presentes ficando
esparramados por aqui e por ali. Cada um de nós buscava, no Natal, um certo
recolhimento para cicatrizar a nossa grande ferida na alma que era a ausência
prematura de papai.
Agora, porém, era diferente.
Béco e eu voltamos da Europa, vivíamos sob o mesmo teto no apartamento da Rua Paraguai, compartilhávamos os mesmos amigos, saíamos para jantar
invariavelmente juntos, éramos dois namorados na plena acepção da palavra - se
não havia aliança de noivado, sobravam intimidades do tipo dormir na mesma cama
na casa da mãe e do pai dele, no Pacaembu. Sentia, no íntimo, que ele até
gostava de me mostrar um pouquinho. Meu Natal, portanto, seria com ele. Zaza,
pessoalmente, reiterou o convite.
Quatro ou cinco dias antes, toda
a família se deslocaria para a fazenda de Tatuí, e a festa teria o duplo
sentido de celebrar a ceia com filhos, sobrinhos, genros, noras e de inaugurar
o casarão novo, todo restaurado.
Árvore de Natal, presentes
que se acumulavam ao pé do pinheiro, a expectativa da criançada, os
passeios a cavalo por aquele paraíso, as nossas pescarias, as competições de
kart na pista particular construída segundo o traçado de quem começara sua
carreira ali, a torcida pelo sobrinho Bruno, filho da Viviane e promessa de
campeão - naquela preguiça dos compridos cafés da manhã, de almoços deliciosos
e cheios de falatório e de tardes iluminadas como aquela em que um fotógrafo
italiano, conhecido do Ayrton, fez nosso ensaio amoroso que correu o mundo,
resgatei um pouco da alegria da data do nascimento de Cristo.
Eu me sentia absolutamente em
família, com a primazia do lugar de honra ao lado do príncipe da casa. Nem mesmo
àquelas eventuais alfinetadas que cheguei a ouvir, em relação a antigas
namoradas de Ayrton, especialmente a mais famosa delas, eu quis atribuir alguma
intenção malévola. Iludia-me com a idéia de que, no fundo, o que eles - elas,
seria mais correto dizer - queriam era me agradar.
O casarão tinha cheiro de
novo, entulho das últimas obras e um quarto feito sob medida para nós. Nosso
quarto tinha espaço suficiente para resguardar a intimidade recíproca tanto
quanto para atulhar os armários de creminhos, loções e lavandas. Como sempre,
não estranhei cama ou ambiente, mas fui despertada de madrugada por uma
algazarra monumental e pela ausência dele, a meu lado, na cama. Corri para a
janela e assisti a uma cena que faria a delícia daquelas câmeras indiscretas de
programas como o do Faustão - que, todo domingo, era também, de uma certa
maneira, um bem-vindo hóspede nosso.
Resumo rápido: de pijama, o
piloto mais carismático e mais circunspecto do mundo perseguia um bando de
pavões alvoroçados que, aparentemente (meu sono profundo não me deixou ouvir
nada), tinham transferido seu footing e seus papos noturnos para debaixo de
nossa janela. Botando fogo pelas narinas, Ayrton os atacava, arremessando-lhes
seus chinelos. Em seguida, armou-se de uma vassoura. De um golpe, conseguiu
derrubar um bicho, que se refugiara numa árvore. Os outros, pressentindo a
arremetida, trataram de bater em retirada. Não sei, sinceramente, se a zoologia
me confirma isso, mas a impressão que me ficou, vendo tudo da janela, às
gargalhadas, é de que o QI das citadas aves não é dos mais privilegiados. Elas
ficavam rodeando a piscina e Ayrton, cada vez mais nervoso, perseguindo-as.
Agora, de moto. Ligou o motor e partiu para cima delas, mas os bichos
espaventados só produziam ainda maior berreiro. Quando o dia clareou, o
surpreendeu naquela inútil e frustrante batalha.
- Vou matar esses
desgraçados! - prometeu, voltando para a cama.
Ele tinha o sono leve,
levíssimo, e muitas vezes me olhava com o olhar suplicante como o daqueles
penitentes que vão a Fátima ou a Aparecida do Norte:
- Me conta sua fórmula. Me
empresta um pouquinho de seu sono.
- Se pudesse, eu trocava com
você - dizia eu, e olha que a instabilidade das noites mal dormidas dele me
preocupava tanto, de fato, que eu faria de verdade a troca. Ele, sim, precisava
de descanso. Foi tê-lo, quem sabe, em outro lugar por mim desconhecido.
Ninguém é idiota de imaginar,
porém, que um homem cujo trabalho é um risco pior do que o de um trapezista e
que trafega pela vida a mais de 300 quilômetros por hora seria do tipo de
recostar na cama, fechar os olhos e em dois segundos já estar embalado pelos
anjinhos.
Podre de sono, ele implorou
ao seu Milton, no café da manhã do dia seguinte, véspera de Natal:
- Pai, dá um jeito nesses
pavões. Sei lá: dá de presente, manda embora.
O senhor Milton me dava a
impressão de um homem seco, muito discreto, às vezes impenetrável, mas que não
se deixava convencer com muita facilidade. Assim como foi ele quem fez de
Ayrton um automobilista, era ele agora quem tentava manter a tradição dinástica
da família, depositando todas as esperanças no neto Bruno. Aos 12 anos, Bruno
corria de kart e já tinha alguns títulos no seu currículo. Assim como tinha
também - e me confidenciou, a meia voz, naqueles dias por lá - certas dúvidas
se sua vocação era de fato aquela. Mas, se for o avô a decidir que ele vai ser
piloto ou, digamos, jogador de squash, eu não teria dúvidas em apostar que
daqui a alguns anos Bruno Senna estará percorrendo, com seu nome poderoso, as
pistas ou competindo nas quadras.
Fiquei com peninha dos
pavões, mas, salvo um casal, que sobrou para contar a história, foram todos
despachados para outra freguesia, especialmente depois que o Ayrton descobriu
mais uma deles. Ficava num galpão uma motinha normal, 250 cilindradas. Os
bichos entravam lá, viam-se refletidos no reservatório de gasolina e, de tão
assustados, passavam a atacar. Resultado: as bicadas furaram o reservatório.
Até o senhor Milton se deixou convencer. Hoje eu sou capaz de imaginar que, se
não fosse por sua beleza, os pavões teriam ficado do lado de fora da arca
do bom Noé.
Aquele agito todo na casa,
dia 24, Zaza animadíssima com o jantar, que, por causa das crianças, seria mais
cedo, mas o Béco teve a sutil percepção de que a nuvem negra voltava a se
formar em cima da minha cabeça:
- Dri, você não prefere
passar a meia-noite com sua mãe?
Meu coração balançava entre
estar ali, ao lado do meu amado, e estar em São Paulo, junto ao leito de minha
avó. Pedi um tempo para pensar. De repente, me deu um estalo:
- Vou sim. Acho que devo ir.
Troquei de roupa, Zazá me
emprestou seu carro, uma Quantum, e, de uma gentileza que só vendo, ainda mandou
umas lembrancinhas para minha família. Ayrton me acompanhou, preocupado, até o
carro. Pediu para eu ligar tão logo chegasse. Corri para o quarto de minha avó.
Eu a amava intensamente. Vivia me cobrando casamento. "Quero ver tudo
preto no branco", divertia-se. Vizinha de parede, sempre soube muito de
minha vida e de meus amores - que foram poucos, diga-se. Encontrei-a inerte, no
leito, incapaz de dizer palavras com os lábios, mas apta a expressar grandes
sentimentos com os olhos. Foi assim meu Natal de 1993, na cabeceira de minha
vó, nos seus 80 anos de idade. Não me arrependo. No dia 26 de janeiro, um mês e
dois dias depois, vovó descansou para sempre.
Perdi em 1994 duas pessoas
que amo muito. O que reforça minha tristeza de Natal. Vou passar o próximo com
a cabeça enfiada num travesseiro.
Nunca fui a terreiro de
babalaô, não conheço meus orixás, não fiz despacho em encruzilhada e jamais
sobrecarreguei Iemanjá, a mãe das águas, com muitos pedidos de fim de ano, mas,
brasileira que sou, gosto de usar branco no réveillon, deposito uma rosa no
mar, faço um desejo de coração e adoro aquela hora dos beijos, abraços e
espoucar de fogos. A tristeza que me invade no Natal explode em pura euforia na
virada do ano e, de 1993 para 1994, em especial, eu tinha tudo o que comemorar.
Tudo quer dizer: estava com o Ayrton em Angra. O resto era acessório.
Até mesmo o tempo, oscilando
entre a chuva e o céu estrelado, não me importava. Sentia-me, mais do que
em qualquer outro lugar, em casa. Viviane, o Lalli (Flávio é o primeiro nome do
marido dela) e os filhos foram. O Leonardo. Os amigos da velha-guarda e de
sempre: Israel Klabin, Luiza e o Braga, muitos outros. O Clube dos Amigos do
Béco: Criminoso, com sua namorada, Magali, Júnior, Gordinho e a mulher, Gisela,
Alfredo... Angra era um social só: muita gente se conhecia, os convites se
entrecruzavam, as lanchas circulavam entre aquelas ilhas como as pessoas
circulam entre as mesas dos bares da moda. O Ayrton sugeriu que fôssemos à
festa do Alexandre (a gente o chamava de Xande Campineiro), depois que me viu
arrumada. Queimada do sol dos dias anteriores, eu carreguei no branco:
minissaia, meia, blusa tipo rede de pescador, tênis. O contraste, sem
pretensão, me deixou bonita. Béco foi generoso:
- É um desperdício deixá-la
em casa assim. Agarrei-me no pescoço dele, naquele horário da Cinderela.
Lembrei-me de um casal amigo dele que nos visitou em casa, muitos meses atrás,
com uma filhinha que devia ter seus 5, 6 anos no máximo. Na hora de se despedir
do seu ídolo, ela cobriu-lhe o pescoço de beijos, mil, milhares - a menininha.
Ainda desconcertado, Béco comentou tão logo eles partiram:
- Tanto beijo que eu casava
com ela, agora, no ato. Meia-noite, e a beijoqueira agora era uma meninona de
20 anos; mil, milhares de beijos no pescoço, sem medo de repetir "eu te
amo, eu te amo..." Uma rosa branca ao mar e um pedido em segredo. Segredo,
já não é mais. Pedia que meu amor por ele não morresse, que ele continuasse
sempre a meu lado. Quem sou eu para dizer que o pedido não se cumpriu?
FONTE PESQUISADA
GALISTEU, Adriane. Caminho das Borboletas. Edição 1. São Paulo: Editora Caras S.A.,
novembro de 1994.
ri na parte dos pavões....to aqui imaginando a cena...
ResponderExcluirAmo essa história de amor do Ayrton e Galisteu!!!!
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