ESPECIAL
Remendo fatal
3 de maio de 1995
Veja - veja.abril.com.br
Inquérito da Justiça italiana mostra que emenda
malfeita na coluna de direção foi a causa do acidente que matou Ayrton
Senna
Testes de laboratório
comproram que a coluna de direção se quebrou antes da batida do carro contra
o muro, e não depois
William Waack, de Bolonha
O carro continuou na sua
trajetória reta quando Ayrton Senna virou o volante para a esquerda na curva
Tamburello, no autódromo de Imola, na Itália. A coluna de direção da
Williams-Renault quebrou-se, e o piloto ficou sem nenhum controle sobre sua
máquina. Tirou o pé do acelerador, brecou em seguida, mas não houve jeito. Faz
um ano que Senna se estatelou contra o muro de concreto a 216 quilômetros por
hora. A coluna de direção partiu-se devido ao trabalho inepto da equipe da
Williams, responsável por um remendo grosseiro na peça, que não suportou, o
esforço ao qual foi submetida. Ao menos em teoria, Senna poderia ter escapado
com vida, não fosse a seqüência de fatalidades que se desencadeou a partir da
peça mal soldada. Com a violência da batida, a suspensão dianteira direita
quebrou-se. Um dos braços da suspensão, uma haste de metal longa e fina, ainda
presa à roda, foi arremessada contra a cabeça do piloto como uma lança e
perfurou seu capacete exatamente no ponto de junção da viseira. Além do buraco
que lhe abriu na altura do supercílio, afundando o cérebro, o impacto da baste
de metal, com a roda junto, provocou fraturas na base do crânio. As lesões
foram mortais.
Para chegar a essas
conclusões, durante dez dias VEJA entrevistou em Bolonha, na Itália, doze
peritos. técnicos e advogados ligados à investigação oficial das causas do
acidente de Ayrton Senna. VEJA pôde ver também o relatório final das
investigações, ainda não divulgado, incluindo fotos e desenhos espalhados em
três grandes volumes e numa pasta vermelha. Os investigadores judiciais
italianos convocaram vários peritos renomados e os dividiram em três grandes
grupos de trabalho. O primeiro grupo analisou as condições da pista; o segundo,
as medidas de segurança do autódromo; o terceiro, a parte mecânica do carro. O
caminho que levou à hipótese de quebra da coluna de direção foi aberto peia
experiência de um policial de trânsito que, se entendia pouco de Fórmula 1,
estava acostumado a lidar todo ano com 3.000 acidentes na região de Bolonha:
Marcello Gentile, chefe da Polizia Stradale, uma polícia rodoviária que executa
também as tarefas de polícia técnica. Dois dias depois do acidente, revendo as
imagens da televisão, Gentile notou que o volante e um pedaço da coluna de direção
- aquele cano comprido que transmite o movimento giratório do volante para as
engrenagens que fazem as rodas mudar de trajetória - estavam ao lado do carro
acidentado enquanto Senna era atendido pelos médicos. Só então ficou sabendo
que, para sair rapidamente do carro, os pilotos podem remover o volante, mas
nunca se desloca a coluna de direção. "Naquele instante não tive mais
dúvida de que a causa do acidente teria de estar relacionada com aquela coluna
de direção, partida de maneira tão limpa", diz Gentile.
A comprovação da suspeita
inicial foi feita por meio de exame da peça em um microscópio eletrônico - o
Scanning Electronic Microscope, conhecido pela sigla Semi -, que mostrou sinais
de "fadiga" no metal da haste da direção. Esse lado da investigação,
a cargo de um ex-diretor de competição da Ferrari, Mauro Forghieri, e do
presidente da Faculdade de Engenharia da Universidade de Bolonha, Enrico
Lorenzini, avançou rapidamente. Menos de dois meses depois da morte, já havia
testes de laboratório comprovando que a coluna de direção se quebrou antes da
batida do carro contra o muro, e não depois. Os peritos, no entanto,
aprofundaram a investigação, para provar que nenhuma outra causa poderia ter
sido tão decisiva no acidente. Ou seja, dedicaram-se a eliminar hipóteses. As
imagens de vídeo produzidas por câmaras dentro e fora do carro e os dados
eletrônicos transmitidos de diversos sensores no carro para a equipe no boxe -
a telemetria - provaram apenas que tudo funcionava quando a Williams se
espatifou contra o muro. No caso, "tudo" significa as partes do carro
monitoradas eletronicamente - rotação do motor, temperatura, pressão do óleo,
consumo de gasolina, além de velocidade e comportamento da suspensão.
O estado do asfalto na curva
Tamburello, uma das hipóteses iniciais para explicar o acidente, foi descartado
depois que técnicos da polícia rodoviária e da Universidade de Bolonha
colocaram algumas máquinas na pista de Imola, que permaneceu interditada até
outubro. Realizadas com aparelhos ingleses, medições no local apontaram que a
pista oferecia excelente aderência e não apresentava ondulação. "As marcas
de batidas no chão que encontramos naquele trecho da pista não eram fortes o
suficiente para explicar nenhuma quebra mecânica", diz o professor Alberto
Bucchi, chefe do Instituto de Infra-Estrutura Viária e Geotécnica da
Universidade de Bolonha, responsável pelo exame da pista de Imola. As medições
feitas no local comprovam também que não havia problema com os pneus. Eram
visíveis as marcas de freada, que teriam sido impossíveis caso os pneus
tivessem apresentado qualquer defeito anterior ao choque.
Os dados da telemetria foram
conclusivos em dois outros pontos, relevantes para entender o comportamento do
piloto nos instantes que precederam a batida: Senna aliviou o pé do acelerador,
reduzindo sua pressão em cerca de 40%, quando nada havia à sua frente que
pudesse justificar essa atitude. A seguir, pisou violentamente no freio,
provocando urna desaceleração brutal, calculada pela própria Williams em cerca
de 4 g - cada "g", ou gravidade, eqüivale uma vez ao peso do corpo. A
freada reduziu a velocidade de 310 para 216 quilômetros por hora em 1 segundo e
3 décimos. Frear numa curva na qual os pilotos costumavam passar em sexta
marcha pisando ao máximo no acelerador significava que esse era o único, e
desesperado, recurso de um profissional hábil como Senna para tentar escapar de
uma situação de emergência. A constatação é reforçada pelas imagens de vídeo.
Na câmara colocada dentro do carro, a mão de Senna tenta uma correção de
trajetória para a esquerda, mas as rodas permanecem retas, perfeitamente
alinhadas. Em outras palavras, o volante já não agia sobre o carro, e o breque
era última escapatória. "Quando se tem um defeito mecânico, normalmente a
única reação é pular no pedal do freio", diz Nelson Piquet.
Os peritos voltaram, então, à
coluna de direção. Advogados da Williams ouvidos no inquérito admitiram que ela
se quebrara, mas sustentaram que a coluna se rompeu quando o carro trombou no
muro - foi decorrência do acidente, e não sua causa. Nessa hora, o testemunho
dos especialistas foi decisivo. Eles explicaram que, quando um metal se rompe
repentinamente, como no caso de um choque violento contra o muro, ele apresenta
deformações em ângulos e formas característicos, facilmente verificáveis,
através de microscópios. Mas a ruptura da haste poderia ter sido provocada pelo
processo de "fadiga do material", expressão que se emprega quando um
metal se rompe devido a solicitação ou esforço repetido. Se o rompimento é causado
pela fadiga, há outro tipo de sinais característicos, as estrias. Essas marcas
surgem a cada ciclo de solicitação, isto é, a cada vez que o metal é submetido
a um tipo de esforço, como torção ou flexão. No caso da coluna de direção do
carro de Senna, esses dois esforços ocorriam. A torção se dava quando ele
virava o volante para manobrar o carro. E a flexão era produzida pela
trepidação e vibração da Williams.
Colocada no microscópio
eletrônico do Instituto de Metalurgia da Faculdade de Engenharia de Bolonha, a
parte fraturada da coluna de direção do carro de Senna mostrou uma área com
estrias de fadiga de 60%. "Esse método é usado em qualquer parte do mundo;
do ponto de científico, não há como contestar os resultados", diz um
técnico que participou do exame de laboratório. No dia 28 de junho, outros
peritos, incluindo um engenheiro da Williams, foram chamados ao Instituto de
Metalurgia. Na tela do microscópio, comparável à de uma televisão pequena,
surgiram as estrias. "O engenheiro da Williams calou a boca imediatamente:
qualquer um se lembra das lições elementares do tempo da faculdade", diz o
técnico italiano. "Eu mesmo fiquei muito surpreendido com o que constatei,
quando ouvia falar de Fórmula 1 pensava em tecnologia sofisticada, e o que vi
não tinha nada disso."
Mas como foi possível que uma
coluna de direção gasta, "fatigada", propensa a se partir, fosse
instalada na FW16 de Senna? O erro começou a ser arquitetado nos primeiros
testes do carro, no início de março, na França. Ao segurar o volante, as mãos
de Senna raspavam na parte de fibra de carbono do cockpit. Havia duas
alternativas para solucionar o problema. A primeira, mais trabalhosa, era
refazer o cockpit. A outra, aumentar o comprimento da coluna de direção,
aproximando o volante do piloto em alguns centímetros. A Williams se decidiu
pela segunda alternativa, mais rápida e fácil de executar. A coluna de direção
foi cortada pouco antes do suporte que a fixa no cockpit. A maioria dos carros
de Fórmula 1 tem colunas de direção com ligas de titânio, material extremamente
leve e resistente, desenvolvido pela indústria aeroespacial. A Williams
utilizava material menos nobre: aço aeronáutico, que atende às especificações
técnicas, ainda que mais pesado que o titânio.
A alternativa adotada pela
Williams também deixou de lado princípios básicos da física e metalurgia. Os
mecânicos fizeram o que um encanador chama de "luva", soldando-a numa
das extremidades da coluna de direção já seccionada. O outro lado dessa luva,
de diâmetro ligeiramente inferior ao da haste de direção, foi encaixado por
dentro da coluna e soldado. Ocorre que a maior incidência de forças sempre se
concentra na parte interna de um ângulo. Basta apoiar um garfo com força no
prato para constatar onde ele dobra primeiro. Um ângulo reto surgiu quando foi
feita a luva. "Qualquer estudante sabe que a fadiga começa sempre onde há
um defeito de superfície", diz o técnico italiano que participou dos
exames de laboratório. "E foi ali que a peça do carro de Senna começou a
quebrar." A barra rompeu-se exatamente onde, segundo os manuais. teria de
romper: antes da solda, próxima ao ângulo reto da luva. Para que não restasse
nenhuma dúvida, os investigadores pediram uma contraprova. Assim, a mesma peça
foi encaminhada ao laboratório do Centro dell'Aeronautica Militare di Pratica
di Mare, em Pornezia, próximo a Roma. Seu microscópio eletrônico apontou que
70% do setor ao redor do local de fratura apresentava as famosas estrias de
fadiga. Os engenheiros fizeram ainda outro cálculo, o dos fatores de intensificação
de esforço. A conclusão é clara: Senna nunca teria terminado a prova em Imola.
Isso porque é a velocidade, e não o raio da curva, que estabelece o maior
esforço sobre a direção. Quanto maior a velocidade, maior o esforço para tirar
as rodas de sua trajetória. "Uma peça de metal submetida a esse tipo de
esforço e com apenas 30% de sua superfície ainda em ordem
não agüentaria mais tempo", diz um dos peritos.
não agüentaria mais tempo", diz um dos peritos.
A fadiga poderia ter sido
detectada com antecedência? Toda vez que um carro de Fórmula 1 termina uma
competição é submetido a testes destinados a detectar fadiga de material. Um
dos exames é o de magnetoscopia, que se aplica sobretudo a partes como
componentes da suspensão, mas ninguém costuma fazer passar por ele a coluna de
direção. A outra possibilidade seria examinar o veículo inteiro com equipamento
de ultrasom, o mesmo utilizado em aviões quando há suspeita de fadiga de
material. Lendo as declarações de Senna nos dias que precederam o acidente, os
técnicos que participaram da comissão de investigação acham que o piloto havia
detectado algo errado, mas não soubera determinar a causa. Senna falava de
vibrações estranhas no carro e perdera um bom tempo ajustando suspensão e jogo
de pneus. "No caso de fadiga em estado tão avançado, era essa vibração que
ele sentia na mão, ao pegar o volante", diz um técnico.
A combinação de indícios e
exames permitiu aos peritos chegar ao veredicto: as estrias de fadiga na coluna
de direção (exames de laboratório), a mão de Senna que vai para a esquerda
enquanto as rodas permanecem retas (imagens da câmara em seu carro), as marcas
de frenagem (exame da pista na curva Tamburello) e a violenta desaceleração
(registrada pela telemetria) mostram que o piloto sentiu que não controlava
mais o carro. Só teve tempo de pisar no freio e reduzir uma marcha - estava
deitado dentro de um sarcófago com quatro rodas, acoplado a um motor de 700 HP,
e sem possibilidade de determinar sua direção.
Mesmo depois dos exames, a
Williams continuou sustentando que a coluna de direção se rompeu depois, e não
antes do choque. A equipe alega que não se pode provar num laboratório o
segundo exato da quebra da peça. Portanto, se não está provado 100% que a peça
se quebrou antes do acidente, não se pode excluir que ela se tenha partido
depois do choque. A Williams apresentou simulações severas de testes de
resistência feitos com a coluna de direção provando que ela resistiria às
solicitações de esforço - mas eram peças nas especificações originais, e não a
que foi remendada. Isso tem servido também de argumento na disputa judicial:
"Enquanto não recebermos o carro, nós não poderemos apresentar nossas
contraprovas", diz Claudio Naccarato, o advogado da Williams em Bolonha,
onde o carro de Senna está interditado, dentro de um quartel da polícia.
Os médicos legistas admitem
que, mesmo com a velocidade com que foi jogado contra o muro, Senna ainda assim
poderia Ter sobrevivido. O carro formava um ângulo de 22 graus com o muro, o
que consideram bom, pois o impacto não foi frontal. A fatalidade ocorreu no
momento em que o braço da suspensão foi arremessado contra o piloto como uma
lança, atravessou a viseira do capacete e provocou um afundamento do crânio na
altura do supercílio direito. A força brutal do braço da suspensão, aliada ao
peso da roda, jogou a cabeça do piloto para trás. O choque contra a proteção
traseira do cockpit causou, segundo os médicos legistas, a fratura da base do
crânio e de várias vértebras cervicais. A forma da haste de metal coincide
exatamente com o tipo de buraco deixado na frente do capacete de Senna. Ainda
todo ensangüentado, ele está guardado numa sala da sede da Polizia Stradale, em
Bolonha. A parte de trás do capacete apresenta uma grande rachadura circular,
causada pelo golpe contra a proteção atrás do cockpit.
Logo que examinaram Senna,
instantes após sua chegada ao hospital, os médicos italianos achavam que ele
não poderia ter sobrevivido, em conseqüência da violenta desaceleração. O laudo
dos legistas, apresentado em 7 de maio do ano passado, apenas uma semana depois
da tragédia, muda esse quadro. Não fosse a pancada do braço da suspensão em sua
cabeça, Senna provavelmente teria escapado. Fora a série de traumatismos
cranianos provocados pelo braço da suspensão, nenhum outro órgão vital do
piloto apresentava ferimentos graves. O laudo dos legistas reforça também a
tese da Williams, segundo a qual mesmo uma grave falha mecânica eludiria
conseqüências fatais, não fosse a fatalidade de um braço de suspensão, acoplado
a um pneu, voando em direção ao piloto e o atingindo no único ponto vulnerável
do capacete.
O juiz Maurizio Passarini,
encarregado da instrução do processo sobre a morte do piloto brasileiro,
notificou judicialmente doze pessoas, cuja responsabilidade no acidente está
sendo investigada. Entre os notificados estão o dono da equipe inglesa, Frank
Williams e o projetista do carro, Patrick Head. Ao juiz cabem agora duas
alternativas: arquiva o caso ou continua o processo, abrindo a via para que os
eventuais culpados sejam incriminados.
FONTE PESQUISADA
VEJA - Remendo fatal. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/050203/senna.html>. Acesso em: 06 de novembro 2015.