Sexta, 26 de Junho de 2015 às
19h06
ANPED - anped.org.br
A entrevista concedida por
Viviane Senna à Folha de São Paulo e publicada
na edição de 18 de junho de 2015, usando como título a última frase da
entrevistada, “A educação trabalha com achismos, enquanto temos uma quantidade
imensa de ciência à disposição” causou indignação no meio educacional
brasileiro.
Ao longo de toda a
entrevista, o jornalista induz respostas elogiosas à iniciativa privada, à
mensuração da disciplina como qualidade importante (tratada como habilidade
sócio-emocional ou pré-cognitiva nos documentos das políticas educacionais
atuais) e ao trabalho do Instituto, o que compromete a credibilidade necessária
ao jornalismo efetivamente preocupado com a ciência.
Ainda no caput, diz ele:
"um estudo do instituto mostrou que qualidades como dedicação e foco têm
quase o dobro do impacto no desempenho escolar comparadas com fatores como cor,
gênero ou ambiente familiar". Em seguida, traz a afirmação da
entrevistada, de que: "Há muitos estudos à disposição sobre como o
aprendizado se dá, mas pouco é utilizado".
Uma das perguntas aponta a
consciência superior da iniciativa privada a respeito da importância da
"ciência do aprendizado" e da "conscienciosidade"
(disciplina, foco e responsabilidade), que o Instituto está medindo, com base
em recomendações de um economista e quantificando os resultados em percentuais
de aprendizagem! É claro que ela nada diz sobre a correlação entre dedicação e
foco e origem social, aparentemente não estudada, mostrando a fragilidade
científica da pesquisa em questão, que quantifica o rendimento de modo
duvidoso, considerado 1/3 superior nos "conscienciosos".
A entrevistada trata a
disciplina como "habilidade maleável", a ser trabalhada pelos
professores, que devem ser "treinados" para isso, o que ela alega
estar sendo feito no Rio de Janeiro. Diz que os professores precisam não
desistir das crianças, que eles "escolhem" os alunos aos quais se
dedicarão "abandonando" os demais e que, se soubessem da
maleabilidade de características como a disciplina poderiam investir em 100%
deles. Diz ainda que: "Você tem de colocar para o professor que a meta
dele é ter 100% de sucesso. Aí ele aprende a ter responsabilidade e não arrumar
desculpa, dizendo que o aluno é pobre ou que a família é desestruturada. Se
você ensinar, o aluno aprende."
Aparentemente, segundo a
entrevistada, o professor precisa ser tratado como um aluno ou filho desobediente,
que precisa ser treinado para ter responsabilidade, deixando claro que, para
ela, os professores são irresponsáveis! Incentivada, mais uma vez, pelo
jornalista, afirma que a reação dos sindicatos às intervenções é
corporativista, mas que já “melhorou” e diz que a eficiência é uma questão
ética e que é preciso evoluir muito. Afirma que a avaliação é uma coisa básica
para sabermos se estamos acertando ou errando. Junta, nesta frase, questões
díspares criando confusão entre avaliação e avaliação em larga escala, por
desconhecimento ou desrespeito aos estudos que mostram a necessidade de
critérios para a primeira, inviáveis de serem atendidos pela segunda.
Finaliza dizendo, respondendo
mais uma vez a uma questão que induz a resposta, que, depois dos conhecimentos
de economia e de gestão que estão sendo levados à educação o próximo passo
seria a neurociência. “O Instituto já até contratou um especialista”,
esclarece.
O conjunto de perguntas e respostas parece, ao leitor mais informado, uma
recuperação da velha e ultrapassada psicologia behaviorista, que, após ser
superada por estudos que demonstraram a impertinência de sua utilização em
Educação, volta com força, travestida de nova ciência, com base em supostas
pesquisas, economicamente interessadas e pouco confiáveis.
Viviane Senna finaliza a
entrevista com duas pérolas: 1) “Estamos estudando o papel da repetição na
automatização da leitura e o papel do sono na consolidação do conhecimento.
Queremos entender como o cérebro aprende.”, evidenciando, pelo uso da
generalização imprópria, completa ignorância dos fatores sociais, culturais e
ambientais que interferem em todos os processos de aprendizagem, além de forte
tendência ao reducionismo. 2) “A educação trabalha com achismos, enquanto temos
uma quantidade imensa de ciência à disposição. ”. A frase desqualifica décadas
de pesquisas e estudos da área, desrespeitando centenas, talvez milhares, de
professores e pesquisadores que vêm dedicando suas vidas, com seriedade e
determinação, à construção da escola pública e de qualidade para todos, no
Brasil!
Questionamos, por meio desta
carta, o uso de uma entrevista pobre, direcionada e sem nenhuma informação
científica para desqualificar toda uma área que vem produzindo e divulgando
conhecimentos no país há décadas e que tem inúmeras contribuições científicas
oferecidas à sociedade e à educação brasileiras, ao conhecimento de métodos e
processos de ensino aprendizagem, de formação e atuação docentes, com
incontáveis levantamentos e análises de questões ligadas à disciplina,
capacidades cognitivas, trajetórias de sucesso e de fracasso escolar, entre
outros temas relevantes.
Entendemos que achismo é
condenar uma área de estudos e suas pesquisas por desconhecimento da sua
produção! Essas pesquisas estão amplamente divulgadas nas revistas científicas
disponibilizadas no Scielo e Portal de Periódicos da CAPES, além dos relatórios
disponíveis nas agências de fomento de pesquisa e nos sites das entidades de
estudos e pesquisas em educação.
Assinam esta carta:
Professora Maria Margarida
Machado (Presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e pesquisa em
Educação - ANPEd)
Professora Ivany Pino (Presidente do Centro de Estudos Educação e Sociedade –
CEDES)
Professora Iria Brzezinski (Presidente da Associação Nacional pela Formação de
Profissionais da Educação - ANFOPE)
Professora Andrea do Rocio Caldas (Presidente do Fórum Nacional de Diretores de
Faculdades de Educação - FORUMDIR)
Professora Inês Barbosa de Oliveira (Presidente da Associação Brasileira de
Currículo - ABdC)
Professor João Oliveira (Presidente da Associação Nacional de Profissionais de
Administração Educacional – ANPAE)
* As entidades enviaram esta
carta ao jornal Folha de São Paulo solicitando "direito de resposta",
como forma de contrapor os argumentos da entrevista, porém não obteve retorno
até o momento desta postagem.
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A entrevista em questão
'Educação é
baseada em achismos, não em ciência', diz Viviane Senna
RICARDO MIOTO
EDITOR-ADJUNTO DE "COTIDIANO"
GABRIEL ALVES
DE SÃO PAULO
17/06/2015 12h00
Folha de São Paulo – F5 – folha.uol.com.br
Viviane Senna, a presidente
do Instituto Ayrton Senna, que leva o nome do seu irmão, considera que a
educação brasileira vive uma fase pré-científica. Há muitos estudos à
disposição sobre como o aprendizado se dá, afirma, mas pouco é utilizado.
Sua entidade contratou
recentemente o economista Ricardo Paes de Barros, importante pesquisador das
áreas de desigualdade e mercado de trabalho. Fez também uma parceria com
Roberto Lent, um dos principais neurocientistas do país, para o desenvolvimento
de pesquisas na área de educação.
Entre outro temas, eles estão
pesquisando o impacto de características pessoais como a disciplina no
aprendizado.
Um estudo da entidade mostrou
que qualidades como a dedicação e o foco têm quase o dobro do impacto no
desempenho escolar em comparação com fatores tradicionalmente mais
considerados, como cor, gênero ou ambiente familiar. Para ela, isso hoje é
subestimado por escolas e professores. "Ninguém vai aprender se não for
responsável, se não ralar."
Leia abaixo a entrevista com
Viviane Senna.
Folha - É possível mensurar o
impacto de características como a disciplina no desempenho dos alunos?
Viviane Senna - Estamos medindo a conscienciosidade de 25 mil alunos da
rede estadual do Rio de Janeiro. É um mapeamento feito a partir de um conjunto
de perguntas. Os cientistas estão megaentusiasmados. O que é a
conscienciosidade? É a capacidade da pessoa de ser responsável, de ter foco,
persistência, disciplina. O que descobrimos é que essa habilidade significa, a
cada nove meses de aulas de matemática, um bônus de três meses no aprendizado.
Ou seja, você consegue um terço a mais de resultados. O [economista] Ricardo Paes
de Barros, que agora está no nosso time, está por trás dessa iniciativa.
A iniciativa privada já
descobriu que essas habilidades são importantes há muito tempo, não?
Sim. Estamos mostrando cientificamente aquilo que intuitivamente sabemos que é
importante. Ninguém vai aprender ou trabalhar se não for disciplinado,
responsável, se não ralar Nenhuma atividade que envolva esforço vai ser bem
sucedida se não tiver essas características.
Que outras habilidades
socioemocionais vocês apontam como importantes?
Outra, muito importante, é a flexibilidade. O melhores empregos de 2010 nem
existiam em 2002, por causa da tecnologia O governo americano estima que quem
está hoje na escola terá mais de dez empregos diferentes até os 38 anos. É
preciso ser criativo, persistente. É como em um casamento. Não dá para
sobreviver só com inteligência.
Estamos mapeando essas
habilidades, ok. Mas, uma vez que a pessoa em questão não seja disciplinada,
persistente, algo nos diz que seja possível mudar?
Essa é outra questão importante. Se essas habilidades são fixas, cristalizadas,
não há nem o que mexer. Mas estamos descobrindo que essas características são
muito maleáveis, pela vida toda, mas especialmente até os 20 anos de idade. É
importante treinar os professores para que estimulem isso nos alunos. É o que
estamos fazendo no Rio de Janeiro. Pode ser uma forma inclusive de a escola
ficara mais motivante para o próprio aluno.
Qual a reação dos
professores?
Para eles, é muito difícil ter crianças indisciplinadas, cansadas, desmotivadas,
desfocadas. Ele precisa não desistir da criança, fazer ela acreditar nela
mesma, trabalhar com disciplina, foco. Você tem de ensinar ao professor que ele
não pode desistir da criança. Às vezes, o professor chega em sala e já elege
aqueles em que vai focar, e os outros ficam meio de lado. Você tem de colocar
para o professor que a meta dele é ter 100% de sucesso. Aí ele aprender a ter
responsabilidade e não arrumar desculpa, dizendo que o aluno é pobre ou que a
família dele é desestruturada. Se você ensinar, o aluno aprende. Quando isso
acontece, o aluno passa a acreditar no professor e vice-versa. O professor
também de ser persistente. Se o aluno falta, o professor vai até a casa dele
ver o que aconteceu. Um serve de exemplo ao outro. É cruel quando a escola
permite que a escola desista da própria inteligência. Você ensina a atitude
para o professor, que vai ensinar pro aluno.
Até porque, no Brasil,
terminar o ensino médio é quase uma garantia de que a pessoa não vai ser
miserável.
Exato. Só 0,2% dos brasileiros que terminam o ensino médio podem ser
classificados como pobres. Praticamente metade das crianças nem chegam ao
ensino médio. Quando chegam, estão muitas vezes com uma defasagem muito grande.
Não conseguem acompanhar. E isso em um momento em que elas começam a ter mais
autonomia para querer desistir da escola. A escola é desestimulante, mas você
tem um mundo superestimulante do lado de fora. Sem preparo emocional, fica
fácil desistir.
Sempre que se fala de uma
cultura de alto desempenho dentro da escola, de resultados, de metas, existe
uma reação de corporativismo, de sindicatos. Isso segue forte?
Essa resistência existe. Ela não é tão forte quanto foi há 20 anos, mas ainda
vai ter que evoluir muito. Avaliação é só uma ferramenta para saber se estamos
acertando ou errando. É básico.
Uma criança que tinha oito anos quando Dilma começou o primeiro mandato vai ter
16 quando ela terminar o segundo. São oito anos decisivos. O que ela aprendeu
ou não vai definir a vida dela. A questão da eficiência é uma questão ética.
Não temos o direito de não ter eficiência. Essa oportunidade não volta mais.
Existe um estereótipo, não
sei se justo, de que as culturas asiáticas, como as dos japoneses e dos
sul-coreanos, têm uma carga muito forte de características como foco,
disciplina.
Estive pensando justamente nisso recentemente. Eles são focados, disciplinados
e resistentes. São coisas que fazem parte da conscienciosidade, como a
resistência à frustração. Isso é indicador de maturidade emocional. Nós
[ocidentais] queremos tudo para a mesma hora, não temos isso tão bem
desenvolvido. Em outras características, porém, como flexibilidade, nós somos
muito bons.
Em uma palestra recente, você
disse que, depois de trazermos conhecimentos de gestão e economia à educação, o
próximo passo é a neurociência. Como isso se dá?
De modo mais geral, queremos trazer a ciência para a educação. Montamos uma
rede de pesquisadores, com gente como o Roberto Lent [importante neurocientista
carioca]. Estamos estudando, por exemplo, o papel da repetição na automatização
da leitura e o papel do sono na consolidação do conhecimento. Queremos entender
como o cérebro aprende, não só pesquisando, mas também rastreando todo o
conhecimento que já está disponível mas não está sistematizado. A educação trabalha
com achismos, enquanto a gente tem uma quantidade imensa de ciência à
disposição.
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FONTE PESQUISADA
Carta de entidades da Educação em resposta
a declarações de Viviane Senna em entrevista a Folha de São Paulo. Disponível
em: <http://www.anped.org.br/news/carta-de-entidades-da-educacao-em-resposta-a-declaracoes-de-viviane-senna-em-entrevista-a-folha-de-sao-paulo>.
Acesso em: 29 de junho 2015.
MIOTO, Ricardo; ALVES, Gabriel. 'Educação é
baseada em achismos, não em ciência', diz Viviane Senna. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/06/1643231-educacao-e-baseada-em-achismos-nao-em-ciencia-diz-viviane-senna.shtml>.
Acesso em: 29 de junho 2015.
Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1121130604567847>.
Acesso em:29 de junho 2015.
Disponível em: <https://twitter.com/cgceducacao/status/615533852514230272>.
Acesso em: 29 de junho 2015.