Ayrton Senna em Le Mans 1978
O primeiro teste do “Quick
man”
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Neste, como nos demais 1º de
maio, é impossível esquecer a partida de Ayrton Senna, no fatídico GP de San
Marino de 1994. Lembro que na sexta-feira, bem antes dos treinos livres, ele me
disse “temos que conversar”, exibindo a revista Playboy, na qual estava
publicada uma entrevista que eu havia feito com ele, dois meses antes.
O papo ficou por aí, porque
naquele mesmo instante Ralph Firman, dono da Van Diemen, veio cumprimentá-lo, e
o Ayrton deu toda a atenção ao seu primeiro patrão no automobilismo europeu.
Contei a passagem ao Chico
Serra, piloto de quem Senna fazia questão de dizer sempre que fora o único cara
que lhe ajudou no início da carreira, na Inglaterra. Chico, então, me contou a
curiosa história do primeiro contato da carreira de Ayrton com uma escuderia,
na qual ele serviu de interprete e cujo relato reproduzo aqui, numa homenagem a
ambos:
“Para falar do Ayrton Senna —
inicia Chico Serra –, eu tenho de voltar ao tempo do kart e depois chegar a um
jantar inesquecível na Inglaterra.
Quando o Ayrton começou no
Juniors, a primeira categoria do kart, eu já era PC, piloto de competição, mas
a passagem dele foi bem marcante para mim. Ele tinha um estilo diferente de
guiar. Hoje admito que eu não aceitei o Ayrton muito bem. Eu era a vedete do
kart na época e ele despontava como a nova estrela. Estávamos em categorias
diferentes, mas de cara já pintou rivalidade entre nós. Meio de graça, mas
aconteceu. Acho que eu via o meu trono ameaçado por aquele cara que pilotava o
kart de lado em freadas e que conseguia guiar só com a mão esquerda. Na freada
ele atravessava o kart e saía da curva com o motor com mais força.
Hoje o kart está mudado, os
pilotos se limitam a guiar. Os mecânicos da fábrica é que fazem tudo. O moleque
tem pouca participação na mecânica. Na minha época a gente metia a mão na graxa
e partia para a Fórmula Ford sem traumas. O Ayrton era daquela escola e por
isso eu tinha a certeza de que ele se daria muito bem quando chegasse aos
Fórmulas.
Em 1977 eu estava feliz da
vida. Tinha cortado as sete cabeças do bicho que diziam ser a Fórmula Ford
inglesa, e ganhado um título que Emerson Fittipaldi conquistara dez anos antes.
Fui campeão com recordes de voltas, de circuitos e com vitórias. Portanto, dono
do trono inglês da Fórmula Ford e credenciado para indicar meu sucessor.
Por isso quando Ralph Firman,
dono da Van Diemen e meu ex-patrão, perguntou-me se eu recomendaria alguém, não
hesitei e, mesmo sem ter consultado o Ayrton, garanti que havia um piloto em
condições de, no mínimo, repetir a nossa temporada.
— E quem é essa fera ? —
perguntou o Ralph.
— É um brasileiro que corre
de kart.
Depois daquela recomendação,
cada vez que o Ralph me encontrava me perguntava pelo “quick man”, como ele
passou a chamar o Ayrton.
Em 1979, quando ganhei o
campeonato de Fórmula 3 para a equipe de Ron Dennis, Ayrton Senna estava em
Silverstone assistindo à prova. Eu falei para ele do interesse da Van Diemen,
mas transferimos o papo para o Brasil.
— Vai lá e experimenta a
porra do caro — insisti. Se gostar gostou, se não pelo menos você tira o tesão.
Ayrton não queria admitir,
mas o pai não fazia muito gosto naquela aventura. Passou algum tempo e um belo
dia o Ayrton me telefonou. Estava indo para a Inglaterra e pedia que eu
mediasse o seu encontro com a Van Diemen.
Liguei para o Ralph Firman e
avisei que o quick man estava a caminho. Assim que Ayrton chegou, nós viajamos
para Norwich, onde fica a sede da Van Diemen, já com um jantar marcado. Como o
Ayrton ainda não falava bem o inglês, servi de intérprete.
Eu estava feliz com a decisão
do Ayrton de competir na Europa, mas, na verdade, minha preocupação maior era
ajudar Raph Firman. Fizemos uma amizade muito forte quando fui seu piloto e
achei que lhe apresentar o Ayrton era uma forma de retribuir a atenção. Afinal,
eu tinha a certeza de que ele iria ganhar corrida pra cacete. O que nunca
imaginei foi traduzir um diálogo maluco como aquele entre os dois.
Primeiro falou o Ralph:
— O contrato entre a fábrica
e os pilotos é mais ou menos padrão. Nós assinamos um contrato pelo qual você
disputa o campeonato inglês, que é de 20 corridas, tem direito a 15 treinos, e
você paga tanto por esse acordo.
O Ayrton olhou para ele e me
disse:
— Diga que eu quero mais
corridas.
E eu disse ao Ralf:
— Ele quer fazer mais
corridas.
— Tá bom então faremos 30 —
respondeu Firman.
— Agora diga a ele que eu
quero fazer 35 treinos — insistiu Ayrton.
Ralph fazia sinal de ok, mas
avisou que o preço então subiria para mais tanto.
— Não — rebateu Ayrton. —
Traduz para ele que eu quero pagar o pacote normal, que é o dinheiro que tenho.
O Ayrton ia pedindo, pedindo,
eu traduzia, mas já estava a fim de sumir embaixo da mesa de vergonha quando o
Ralph olhou bem nos olhos do Ayrton, largou a tigela de sobremesa, virou-se
para mim e, pouco britânico, perguntou:
— Porra, Chico! Quem ele
pensa que é?
Eu, que já estava louco pra
rir, falei:
— É o quick man.
Eles acabaram se acertando e
eu fiquei feliz. Mas até hoje me lembro daquele encontro com detalhes e ainda
dou boas gargalhadas. Como eu previ, o Ayrton fez aquele sucesso. Pulverizou
todos os recordes. Bateu a minha marca e a do Jackie Stewart, antigo deus da
Fórmula Ford.
Depois daquele acerto, a
gente ficou mais amigos, respirávamos automobilismo em tempo integral. Houve
época em que o Ayrton passou temporadas na nossa casa em Reading, perto de
Londres.
Quando ele foi para a Fórmula
3, me convidou para ir ver o novo carro na oficina do Dick Bennetts, seu novo
chefe de equipe. A barata estava pronta e ele, mesmo dissimulando, estava
faceiro. Tinham acabado de colocar o adesivo ‘Ayrton da Silva’ no cockpit.
Achei o carro lindo, mas
assim mesmo arrisquei um palpite:
— O ‘da Silva’ não vai dar
certo.
Ayrton surpreendeu-se e eu
fui em frente:
— Não consigo imaginar um
campeão do mundo chamado da Silva.
— Campeão do mundo?
O Ayrton engoliu em seco e
repetiu pra si mesmo:
— Campeão do mundo…
Eu insisti:
— Use ‘Senna’. É menos comum
e mais sonoro.
E dali em diante ficou Senna.
Demorou um pouco para ser assimilado, afinal o ‘da Silva’ já era conhecido.
Depois eu tremi, ao lembrar que o Miltão, o pai do Ayrton, podia não gostar da
história se soubesse que fui eu quem tinha sugerido a troca.
Em 1982, eu já competia na
Fórmula 1 pela Ligier e voltei a Norwich para jantar com o Ralph Firman. Então
fiz questão de lembrar o primeiro encontro dele com o Ayrton naquele mesmo
pequeno restaurante. Na despedida, Ralph bateu no meu ombro e murmurou no meu
ouvido:
— Você conhece um outro quick
man, Chico?”
Francisco “Chico” Serra
Piloto de F1, com 18 Gps
Campeão de Kart brasileiro
Campeão de Stock Cars
FONTE PESQUISADA
MARTINS, Lemyr. O primeiro teste do “Quick man”. Disponível
em: <lemyrmartins.com.br>. Acesso em: 19 de janeiro 2013.