“O Ayrton era um cara que tinha muita grana e que vivia
muito mal. Muito mal que falo é que ele não conhecia nada, ele não saia para se
divertir, ele não saia para uma noitada, ele não saia para comprar uma roupa. E
a primeira viagem de férias que ele fez na vida dele foi de tanto eu encher. De
tanto eu perturbar. Nós estávamos no Japão e eu queria ir para o Taiti, ele
queria ir para Angra. Para voltar, porque a outra corrida era para o lado de
lá... Eu falei “Não, Angra a gente já foi, é o teu refugio a gente sabe disso.
Mas vamos tentar ir para outro lugar...”. E foi a primeira vez que ele saiu de
férias. Ele ficou 1 semana no Taiti e definitivamente ele ficou 1 semana sem
fazer nada, a não ser curtir, tomar sol, ficar de bobeira, comer uma comida
diferente. Eu convivi com um cara que perdeu a vida aos 34 anos de idade e que
o sonho dele era conhecer a Disney, ele não conheceu. Ter um filho ele não
teve. Então ficou tão marcado na minha cabeça essa história, de não conseguir
se divertir, entender o que o dinheiro de fato faz na nossa vida. Então eu hoje
se tenho vontade eu faço uma viagem, eu tiro uns dias, gasto uma fortuna. Mas é
o tempo que eu tenho. Mas eu não deixo de fazer. Não deixo de comprar uma coisa
que eu gostei porque vou fazer conta”. Adriane Galisteu em entrevista a Paulo Lima na Radio Trip
Trecho que ela cita a Viagem no Livro "Caminho das Borboletas"
A conselho de Luiza e Braga e
em homenagem a mim, mudou de rota. Bora-Bora, um recanto delicioso no Taiti.
Quando digo homenagem a mim,
é para valer. Béco odeia esse entra-e-sai de aroportos e era o que
esperava por nós. Tóquio-Wellington, na Nova Zelândia. Wellington-Papetee, no
Taiti. Dali, num aviãozinho até Bora-Bora. Enfim, um barco até o hotel que
tínhamos reservado e que ficava numa ilhota isolada. Milhas e milhas de vôo.
Bota sacrifício nisso. Mas estávamos felizes:
- Nós dois sozinhos. É uma
loucura.
A saída dele de Tóquio
indicava também que se refugiaria, por alguns dias, de um problema. Aquele
"discuti com um irlandês louco" ao qual ele tinha se referido,
rapidamente, na verdade foi bem além daquilo. Irritado porque o Eddie
Irvine, da Jordan, lhe fechava a porta para ultrapassagem, em Suzuka,
contrariando o acordo de cavalheiros de que quem está muito atrás deve deixar
passar os primeiros. Mais do que isso, com a arriscada manobra que o próprio
Irvine fez, depois da ultrapassagem de Senna, de retomar a dianteira, o nosso
conhecido esquentadinho só esperou o final da prova para ir ao boxe da Jordan e
encher a cara do irlandês de pancada. "Você não é um piloto, é
um idiota", disse Senna, depois de engolir algumas provocações de
péssimo gosto do próprio idiota.
Eu conseguia imaginar a cena
direitinho, tão familiar ela era para mim - a fúria, o direto de direita e as
lágrimas posteriores, misturando raiva e arrependimento. Quando Ayrton me
contou em detalhes, muito depois, calminho, ele acrescentou uma única novidade,
a que mostrava como era verdadeiro o que ele dizia de Irvine.
- Ele bateu em mim... O Senna me
agrediu... O Senna - repetia o pateta da Jordan, como se o soco fosse um
valioso troféu para ele.
O problema é que a FIA
resolveu punir "o agressor" e até no Taiti; à nossa chegada -
enquanto éramos festivamente recepcionados com aqueles típicos colares
de flores, mulheres a caráter, com seus vestidos estampados e ibiscos nos
cabelos, e uma orquestra de cítaras e atabaques -, jornalistas esperavam por
ele para falar do assunto. Não sei se por causa dos jornalistas, do colar de
flores ou do probleminha com o passaporte dele - ele mostrou o do principado de
Mônaco, vermelho, que eventualmente usava, e achou que não precisava de
visto -, o fato é que deu uma crise de espirros nele, de pura alergia. Pediu
desculpas para retirar o colar, pediu desculpas por desconhecer o tema Irvine-FIA
e foi se explicar sobre o passaporte - mas não há burocracia que não se resolva
imediatamente à simples menção do nome Senna.
Entramos no clima. Sarongues,
homens e mulheres descalços e uma delas, lindíssima, só para nos recepcionar e
levar ao hotel. Mais um colar, só que desta vez de conchas. À chegada, mais
música, a surpresa de encontrar, do outro lado do mundo, um gerente
brasileiro, o Bernard, e o deslumbramento de um quarto tipo bangalô
falsamente rústico, na verdade uma palafita fincada no mar, chão de madeira,
móveis de vime, varanda e, bem no meio do quarto, um enorme quadrado de vidro
mostrando que você dormia sobre a água do mar. Um sonho. Bingo: Luiza e Braga
acertaram de novo.
Quando acordamos no dia
seguinte, ele já tinha virado e revirado a programação do hotel, mas, é claro,
elegeu de cara uma. Foi eu acordar e ele já estava preparado:
- Tem aí um jet-ski pra nós.
Vamos?
Sumimos naquela imensidão dos
mares do sul. Estacionamos numa ilha de areia branquíssima, estranha, com a
água que mudava de tom - azul-claro, azul-turquesa, turmalina. Dava para ver o
fundo do mar. Peixinhos e estrelas-do-mar. De volta ao jet-ski, escutamos, de
repente, um barulho esquisito, de impacto - e ele parou, assustado:
- Meu Deus, que será?
Conseguimos parar numa pedra.
Simplesmente a gente estava no meio de uma barreira de coral. Não tinha como
tirar o jet-ski dali. Ele achou melhor ir em frente:
- Vamos tentar passar a
barreira de coral.
- Mas e depois? Pra voltar?
- Se a gente passar, a gente
volta.
Fomos indo devagar,
explorando minuciosamente as brechas, a água já não era tão cristalina, o céu
começava a fechar, com uma garoinha chata. Resumindo: estávamos em alto-mar. Vocês
têm idéia do tamanho do oceano Pacífico? Bom, era do tamanho do meu pânico. O
jet-ski seguia em alguma direção, mas novas emoções teriam de haver, como
aquela mancha negra, enorme, que de repente escureceu todo o mar, abaixo de
nós. Ele me tranqüilizou: era uma arraia gigante, como jamais eu podia
imaginar existir, mas bichinho inofensivo. Com o jet-ski, começou a perseguir a
arraia, que, nervosa, dava rabadas na água. Aquela mania dele de acelerar.
Rodamos, rodamos, rodamos, e alguma mão invisível e misteriosa nos fez voltar
direitinho para nosso hotel, sem antes a repetição daquela experiência
raspa-aqui, engancha-ali da barreira de coral. A mesma mão invisível e
misteriosa nos poupou de outro probleminha: a cinco metros do píer, acabou a
gasolina do jet-ski. Felizmente, estávamos em casa. Em alto-mar, não
tínhamos cruzado com vivalma. Talvez estivéssemos até hoje, náufragos, em
andrajos, cabeludos, vivendo em alguma ilhota da Polinésia - o que, para mim,
seria o máximo.
Praia, piscina, vôlei,
quadra de tênis, restaurante típico com deliciosos pratos de frutos do mar e
outro, de fast food, butiques de roupas carésimas - o hotel tinha
muitas atrações para os hóspedes, quase todos japoneses, e, naqueles dias,
a julgar pela quantidade de flashes e pelos pedidos de autógrafo, um forte
chamariz a mais: Ayrton Senna. Como estava ali a passeio e não a negócios,
Béco, arisco, me puxou pelo braço e nos exilamos no nosso delicioso quarto.
Encomendamos uma montanha de vídeos. A pedido dele, fãzoca do Dustin
Hoffman, vimos Hook (no Brasil, A Volta do Capitão Gancho). Por capricho meu,
botei Thelma & Louise. Digo capricho porque já tinha visto e agora
queria ver a reação dele. Senti-o revirar demais na cama:
- Você está gostando? - me
perguntou.
- Adorando.
Volta e meia, ele deixava
escapar:
- Mulherzinha safada... Que
mulher...
E eu me fazendo de
desentendida.
O programa do dia seguinte
era imperdível: dar comida aos tubarões. Era o hit do hotel. Quem acordou
primeiro, excitadíssima, fui eu:
- Vamos?
- Não estou muito bem -
queixou-se ele.
Armei-me de um óleo de coco
especial, que queima legal, de tom avermelhado, bronze mesmo, da máquina
fotográfica ganha no Japão, e nos metemos num barco, com outros hóspedes. Só
falar em dar de comer a tubarões já era uma descarga de adrenalina total, mas senti
que o Ayrton estava num outro clima. Três nativos, com aqueles calções da linha
fio-dental, amarraram o barco numa pedra, com uma corda que ficava boiando na
superfície da água. Cada um de nós ganhou um snorkel e máscara e a idéia
era que ficássemos ali, agarrados na corda, mas com a cabeça mergulhada na
água. A emoção ia começar.
Os nativos mergulham e jogam
um determinado tipo de líquido na água. Junta um monte de peixes - de cores,
tipos e tamanhos diferentes. Aí, nos dão um pouco de carne e o que
acontece é que os peixes vêm comer, na nossa mão. O Ayrton tinha comprado uma
máquina para fotos submarinas e se esbaldava. Mas perguntava a toda hora:
- Cadê o bichão? Cadê o
bichão?
Logo, o bichão apareceu.
Foram os nativos acenarem com uns nacões de carne crua, como aquelas picanhas
mal-passadas de restaurante, que alguns espectros enormes, escuros, despontaram
na água. Quem é que disse que os hóspedes ficaram lá, segurando na cordinha?
Subiu todo mundo às pressas no barco. Mas dava para ver os tubarões arrancando
das mãos dos nativos os nacos de carne pingando sangue. Os nativos não
demonstravam medo. Chegavam a afagar aquelas feras. Um deles pegou um bichão
pela barbatana, montou nele e saiu navegando, como se fosse um golfinho.
O tubarão não estava feliz, visivelmente, mas o nativo nos confessou seu
truque: agarrando só uma das barbatanas laterais, ele tem como virar a boca e
morder; mas, prendendo-o tanto pela barbatana do lado como pela de cima, ele
fica seguro e você consegue até dirigi-lo para onde quiser. Coisa do tipo festa
do peão de boiadeiro num mar de tubarões.
Mais à frente, paramos para
dar de comer às arraias. Monstros enormes, de mais de um metro de diâmetro.
Mansinhas, inofensivas. O Ayrton passava a mão no peito delas, elas ficavam
quase na vertical, como se curtissem aquele carinho. Ele teve uma recaída:
- Se soubesse que elas são
assim, eu não teria assustado aquela, ontem.
Só de palhaçada, um dos
nativos surrupiou meu precioso óleo e se lambuzou, ele que já tinha aquela cor
de polinésio do Gauguin. O Ayrton riu, mas senti que ele fraquejava. Crise
mesmo foi a que teve, ao chegar. Vômitos, corridas de dois em dois minutos ao
banheiro. Chamei o Bernard, que chamou o médico. Ele veio no figurino local:
roupa branca, mas pés descalços. Ayrton tentou amenizar:
- Deve ter sido o sol e mais
alguma coisa que comi.
O fato é que, nos dois dias
seguintes, tomamos um chá de cama - eu, no duplo papel de enfermeira e de
mulher carinhosa, cuidadosa, preocupada - o tempo todo cuidando dele. Intuição
feminina: disse a ele para tomar Coca-Cola. Ele me contrariou na hora:
- Coca-Cola?
Bem, antes de sair, o médico
ministrou, além dos remédios, um conselho:
-... e tome uma Coca-Cola.
Ele ainda muito fraco,
tomamos o caminho para a Austrália, onde o circo da Fórmula 1 ia fazer as
despedidas da temporada de 1993. E onde Ayrton ia dar adeus a seus proveitosos
e emocionantes seis anos de McLaren. Percebi que tinha voltado a ser ele na
escala na Nova Zelândia. Enquanto esperávamos pela conexão, entrou numa loja do
free shop. E comprou o quê? Chegou perto de mim com um cinto de couro.
"Gostou?" "Gostei." Mandou embrulhar uma dúzia.
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