sexta-feira, 5 de julho de 2013

Senna Um Herói e Seus Enigmas

Revista Veja Edição 1118 Ano 23 Nº7 21 De Fevereiro 1990



Luz verde para Senna

O campeão se retrata no último
minuto diante dos cartolas e
prepara sua arrancada para quebrar
novos recordes na Formula 1


Sinuosa, escura, imprevisível, a curva Balestre é a mais perigosa da Fórmula 1. Mesmo os grandes pilotos e os dirigentes das principais equipes da categoria máxima do automobilismo a temem e a cruzam com extremo cuidado. Na sexta-feira passada, o piloto Ayrton Senna, 30 anos, campeão mundial e um fenômeno incontestável da velocidade, capotou duas vezes na curva burocrática de Jean-Marie Balestre, presidente da Federação Internacional de Automobilismo, a Fisa, entidade que dirige com o poder de fazer inveja a qualquer outro cartola internacional. A primeira derrapagem foi de susto. Balestre deixou vazar à 1 hora da tarde um comunicado que excluía Senna do campeonato deste ano. Quando o susto se transformou em estupefação no mundo automobilístico e em pânico em volta de Senna, outro comunicado, este definitivo, reconduzia o piloto ao comando da McLaren número 27. Em triunfo, o cartola divulgou também a prova de que nem o mito incomparável de Senna é capaz de superar a curva Balestre trafegando acima dos limites estabelecidos por ele.
Numa carta escrita em inglês, o piloto brasileiro voltou atrás nas acusações de manipulação em favor do campeão, o francês Alain Prost, que fizera à Fisa no final do campeonato do ano passado, gerando os violentos atritos com Balestre que quase o tiraram temporariamente das pistas. "Durante a reunião do Conselho Mundial da Fisa que teve lugar em dezembro do ano passado ouvi declarações e testemunhos de diversas pessoas, e deles pode-se concluir que nenhum grupo de pressão ou o presidente da Fisa influenciaram nas decisões relativas aos resultados do Campeonato Mundial de Fórmula 1 de 1989", escreveu Senna, satisfazendo a exigência de retratação pública feita por Balestre e colocando fim pelo menos por enquanto à guerra de nervos que travou com a Fisa.
FAX - Balestre fez questão de divulgar com estardalhaço a carta de Senna. No comunicado oficial do começo da tarde, que colocava Senna ainda em situação irregular, Balestre se justificou. "Em nenhum momento exigi que Senna se humilhasse", escreveu o cartola. "Simplesmente pedi a ele que reconhecesse o fato de estar mal informado." Os momentos finais da batalha foram de alta tensão. O mundo da velocidade dormiu na quinta-feira passada sem saber se Senna cumpriria as exigências de Balestre. Durante pelo menos duas horas acreditou-se que o brasileiro estava fora do campeonato. Quando o cabo-de-guerra pareceu arrebentar pelo lado do piloto, a roda-viva milionária da Fórmula 1 entrou em cena numa ação fulminante. Os japoneses fabricantes do motor Honda da McLaren, que só no ano passado gastaram 400 milhões de dólares na Fórmula 1, avisaram ao chefe da equipe McLaren, Ron Dennis, que não queriam correr o menor risco de dois turrões atrapalharem seu negócio. Dennis, um inglês meio careca e muito tranquilo, lutava em duas frentes. Numa para convencer Senna a escrever a carta e na outra para demover Balestre da exigência de que a carta contivesse desculpas explícitas.
Enviada por fax do escritório de Senna no bairro da Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, a carta cruzou o Oceano Atlântico e no final da tarde de sexta-feira estava nas mãos de Balestre. O cartola de 68 anos que refere a si próprio como "um grande homem" e carrega nos ombros a mancha do passado de colaborador dos nazistas durante a invasão da França na II Guerra Mundial venceu Senna pelo terror. "Subam, a carta de Senna está aqui, o esporte venceu", disse Balestre, alegre, aos jornalistas que o esperavam voltar do almoço na tarde de sexta-feira. O piloto e Dennis falaram entre si com Balestre dezenas de vezes pelo telefone desde que o dirigente francês anunciara o banimento de Senna em janeiro. "Vamos costurar a coisa por dentro", disse Senna, confiante, a um amigo na quinta-feira passada. Não costurou. Sua carta acabou vindo a público pelas mãos de Balestre. Os esportistas e torcedores do automobilismo não concebem um campeonato sem Ayrton Senna. Ele não é apenas o melhor piloto do ponto de vista técnico mas também o mais arrojado, o que dá às corridas a verdadeira dimensão de espetáculo. Um campeonato sem Senna seria como uma Copa do Mundo sem o rei Pelé no auge de sua forma. Agora sabe-se também que não é possível conceber a Fórmula 1 sem a entidade dirigida por Jean-Marie Balestre.
No Brasil, Senna teve sua noite de cão. Ele passou de meia-noite de quinta-feira às 8 da manhã de sexta em conferência telefônica com Ron Dennis, em Londres, e Kawamoto Nobohiro, o homem forte da Honda, em Tóquio. "Estava disposto a sacrificar minha carreira e abandonar as pistas", disse Senna a VEJA. "Mas analisei friamente as conseqüências que uma decisão radical teria sobre a McLaren e para a Honda e me dispus a abrir mão." Ayrton Senna conseguiu que Dennis se empenhasse com Balestre para amenizar os termos da carta. Tudo estava certo quando, às 6 da manhã de sexta-feira, Ron Dennis ligou para Senna e o informou de que a Fisa voltara atrás. Os cartolas exigiam que na carta constasse a palavra desculpa. Ayrton irritou-se. "Por questão de princípio, para preservar minha integridade de homem, recusei de imediato. Dessa forma não haveria negociação", contou Senna.
DERRAPADA - Cansado, Ayrton foi descansar. O telefone silenciou enquanto Dennis e Kawamoto voltavam a enfrentar Balestre pelo DDI. Da próxima vez que o telefone tocou na casa de Senna do outro lado da linha estava um jornalista francês informando estar de posse da listagem oficial de pilotos para a temporada de 1990 e que nela não constava o nome de Ayrton Senna da Silva. O pai de Senna, Milton, que cuida dos interesses do filho desde a morte do empresário Armando Botelho no ano passado, respondia que ainda se negociava e que a listagem original estava errada. "Tudo caminha para a normalidade", dizia Milton na tarde de sexta-feira. "Vou viver com a certeza de que agi corretamente", diz Senna. "Nunca tomei a iniciativa nessa história e, aliás, só falei quando me acusaram de ser um piloto perigoso. Sou eu que terei de viver com a postura que assumi - e ninguém poderia fazer isso por mim." Contenha ou não a palavra desculpa, a carta de Senna é uma retratação, e a maneira como surgiu sugere uma pequena derrapada ética. Ele pensava e declarou que a Fisa e seu presidente influenciaram os resultados do campeonato do ano passado. Se mudou de idéia, como se soube na sexta-feira, Ayrton Senna não precisava ter esperado o último prazo legal que teria para dar notícia de que agora pensa exatamente o contrário sobre a Fisa e seu presidente. Da maneira como as coisas se passaram, fica a impressão de que Senna constatou que entrou muito veloz na curva Balestre e viu que precisava tirar o pé do acelerador para poder continuar na pista. Acertou na manobra, mas para seu público continua um mistério a real opinião do piloto sobre o dirigente francês e sua entidade. E o que é pior, fica a impressão de que Senna, pressionado ao limite pela McLaren e pela Honda, voltou atrás para não se indispor com os poderosos interesses de ingleses e japoneses.
Acostumado a lidar com as situações limites nas pistas, em que se sente mais à vontade do que descansando na fazenda Dois Lagos, onde cria bois, em Tatuí, interior de São Paulo, Senna pensou que conseguiria fazer a corda arrebentar do lado de Balestre. "Se fosse o Balestre sozinho nessa parada, até que seria possível ao Senna vencê-lo pelo descrédito coletivo, mas a verdade é que ele se indispôs com todo o comitê de juízes da Fisa", diz Piero Gancia, o empresário que dirigiu a Confederação Brasileira de Automobilismo até o ano passado e conhece bem os bastidores da Fisa. Convocado perante os velhos juízes da entidade em dezembro, Senna teria sido arrogante e desrespeitoso, acendendo a ira da entidade contra ele. "Puni-lo passou a ser uma questão de honra para a Fisa, e o Balestre foi pressionado a não deixar o assunto barato", disse a VEJA um dirigente francês com voto no comitê internacional da entidade.





IMAGEM PÚBLICA - Senna sempre cuidou de revestir a vida e a carreira de muita publicidade, mas sempre uma publicidade em que ele mantém estrito controle sobre tudo. Suas respostas a perguntas diretas são sempre evasivas e sugerem algo mais do que foi dito. Quando se encontra no Brasil ele está sempre fugindo, se escondendo na casa dos pais, na fazenda ou na casa de conhecidos. Poucos são seus amigos íntimos e na casa dos pais, em São Paulo, ainda divide o mesmo quarto com o irmão menor. "Agora estou pensando em comprar um apartamento para ficar quando vier ao Brasil", diz Senna. Na Fórmula 1, um ambiente em que é difícil fazer amigos e fácil perdê-los, Senna perdeu quase todos. De toda a caravana de equipes com mecânicos e pilotos, somente um deles, Thierry Boutsen, da Williams, mantém com Senna relações sociais mais constantes. Desde 1985 eles regularmente viajam juntos durante as férias.
Uma das últimas cartadas de Senna no cultivo de sua imagem pública foi a associação que fez com o fotógrafo Bruno Cassajus, da agência francesa Kick Off, uma empresa composta de mais seis pessoas. "Propusemos a sociedade e ele aceitou, como uma maneira de diversificar seus negócios", diz Cassajus, que cuida de vender para publicações de todo o mundo fotografias de Senna nas pistas e nas horas de lazer. Claro que como sócio da empresa o piloto não permite que sejam veiculadas fotos que o mostrem em situações constrangedoras. Essa prática, embora nova, não é uma invenção de Senna. Nos Estados Unidos a moda colou, e atores como Tom Cruise e Jack Nicholson cuidam eles próprios da veiculação de suas imagens. Tom Cruise, por exemplo, tem os direitos autorais da fotografia publicada há alguns meses na capa da revista Time, que o elegeu como assunto da reportagem de capa.

Viviane, a irmã: "As mães brasileiras escrevem para ele"


CARTAS - "O Ayrton sabe que sua imagem é forte e que cativa as pessoas", diz Viviane Lalli, 32 anos, psicóloga, irmã do piloto e mãe de Bianca, 10 anos, Bruno, 6 anos, e Paula, de 4, companheiros constantes de Ayrton Senna quando ele está no Brasil. "Ele tem uma carinha de cachorro vira-lata, um rosto que sugere afeto e bondade e que cativa os corações." Viviane conta que nas épocas em que Senna está mal no campeonato ou que enfrenta problemas de saúde - como quando teve uma paralisia facial há três anos - ele recebe dezenas de cartas de apoio. "É engraçado, mas a maioria das cartas é de mães que dispensam a ele o mesmo carinho que a um filho", diz Viviane. Ele recorre sempre à irmã quando está em dificuldades. Por acaso ela estava a seu lado no motor-home da McLaren quando Senna soube da morte de Armando Botelho. "Ele chorou copiosamente, depois foi para Mônaco e passou dias de luto sentindo muito a morte do amigo", conta Viviane. "Sinto que meu irmão não se contenta em ser piloto, apenas ele quer mais alguma coisa, sempre quer mais alguma coisa."
Nessa busca, ele anda sempre no seu limite e às vezes esquece os limites dos outros que o cercam, dos carros e das pistas, não se importando em dar trombadas e cometer erros - como a incontinência verbal que o levou a ser punido pela Fisa. "Ayrton Senna é um piloto sensacional, mas ainda comete erros que já não deveria estar cometendo", diz Nigel Mansell, piloto da Ferrari que travou com Senna alguns dos duelos mais fogosos das últimas temporadas de Fórmula 1. Foram situações em que Senna demonstrou toda a sua afoiteza e desconforto com as limitações impostas a ele pelos regulamentos, pelas máquinas e pela própria condição humana. No Grande Prêmio de Portugal do ano passado, por exemplo, Mansell já havia sido desqualificado e recebera a bandeira preta, mas manteve-se inexplicavelmente na pista. Mesmo assim, Senna forçou a ultrapassagem sobre ele. A McLaren enroscou-se na Ferrari, e foram os dois parar fora da pista. Senna poderia ter ficado em segundo lugar nessa corrida, o que lhe daria pontos preciosos no final do campeonato. Seriam gestos que, talvez, o livrassem da louca cavalgada do Grande Prêmio do Japão, a que chegou precisando de apenas um resultado, a vitória.
Foi justamente essa imposição que meteu Senna em confusão no autódromo de Suzuka. Ele tentou ultrapassar Prost num ponto quase impossível do circuito, e, mais uma vez, ambos foram parar fora da pista. "Se conseguir ser um pouco mais cerebral, Senna será o melhor piloto de sua geração e talvez de todos os tempos", diz o escocês Jackie Stewart, que foi o melhor piloto de seu tempo, três vezes campeão mundial e um dos mais completos do mundo. Por insistir em andar no limite, mesmo quando não precisa, Senna já se meteu em grossa confusão e situações absolutamente inexplicáveis para um piloto de seu nível. A mais emblemática dessas situações ocorreu no Grande Prêmio de Mônaco em 1988. Senna liderava tranquilamente a prova com quase trinta segundos de vantagem sobre Prost, o segundo colocado. Sem que se saiba por que, Senna continuava aumentando o ritmo da prova, alargando ainda mais a diferença sobre Prost. Então se deu o inesperado. Sozinho, na tomada de uma curva para entrar no túnel, a McLaren de Senna se desgovernou e bateu no muro de proteção. Ele saiu, olhou a suspensão dianteira destruída, soltou um suspiro desconsolado e voltou a pé para os boxes.


ENIGMA - Andar sempre nessa área de lusco-fusco das possibilidades, desafiando o destino no final de cada curva, é algo que não se pode separar de Senna como não se pode privá-lo de sua própria alma. É uma atitude que lhe rendeu também momentos de extrema satisfação esportiva, especialmente no começo da carreira. Na Fórmula 3 inglesa, categoria em que Senna ganhou nove provas seguidas, um recorde que resiste até hoje, ele tomou apreço pela combatividade no volante. Logo que saiu vitorioso dessa etapa de sua formação como piloto, ele começou a ser sondado pelas equipes de Fórmula 1. Recusou um convite da própria McLaren sob a alegação de que era ainda imaturo. Na verdade, Senna não se encantou com a proposta financeira da equipe - eles não lhe pagariam nada pelo primeiro ano. No verão de 1983, ele deu aos especialistas talvez a maior prova de seu talento nas pistas. Frank Williams, dono da equipe que leva seu nome, deixou Senna testar um de seus carros no Autódromo de Donnington Park, na Inglaterra. Senna deixou Williams boquiaberto, pois, sem conhecer o carro, fez tempos melhores que os dos dois pilotos oficiais da equipe, Keke Rosberg e Jacques Laffite.
Apesar da imagem cultivada com esmero, Senna é para os fãs brasileiros e para os estrangeiros um enigma ainda por decifrar. Ninguém sabe ao certo se ele namora mesmo a Xuxa ou se tudo não passa de uma bem-sucedida mútua promoção. "Ele é muito carente e às vezes passamos horas no telefone", diz Xuxa. "Gosto bastante dela e somos amigos íntimos", diz Ayrton. Ninguém consegue arrancar de Senna declarações mais definitivas sobre esse relacionamento e tampouco os amigos arriscam-se a dar qualquer palpite. A partir do final do ano passado, Senna começou a ler compulsivamente a Bíblia. Suas leituras, aliás, resumem-se a textos religiosos, jornais e revistas. Nada de romances ou livros teóricos. "Todas as respostas que não encontro em outros lugares estão nas passagens bíblicas", diz Senna, que, no entanto, não frequenta igrejas e também recusou um convite para fazer parte do grupo Atletas de Cristo, que congrega jogadores de futebol e praticantes de esportes amadores que têm vinculações religiosas.
"A melhor definição do Ayrton quem me deu foi o jornalista português Domingos Piedade, que cobre a Fórmula 1", diz Galvão Bueno, locutor da Rede Globo. "Ele disse que o Ayrton é um ET, um ser de outro planeta cuja dedicação ao trabalho não é igualada por nenhum outro piloto." Na definição de Piedade, "Ayrton trabalha 24 horas por dia, e Prost só perde para ele porque trabalha dezessete e dorme as outras sete". Não é fácil o convívio com o piloto brasileiro. "Ele escuta mas não ouve", diz Galvão Bueno. "E se desliga com a maior facilidade quando o assunto não lhe interessa." E o mais frequente é os assuntos dos mortais comuns não lhe interessarem. "Conversa com ele tem que falar sobre motores e carros, senão não engrena", diz Lucio Pascual Gascon, o "Tché", um espanhol de 53 anos que montou o primeiro motor para Senna, um Parrilla italiano que ele guarda em sua oficina paulistana até hoje. Numa carta enviada ao Tché, da Inglaterra, nos seus tempos de Fórmula Ford, só há algumas palavras compreensíveis aos não entendidos - no restante Senna só fala de bielas, chassis, eixos, potências e pneus.
"Quando não está falando de carros, ele está praticando esporte. Pode ser tênis, que ele joga mal, mergulho ou jet ski", diz o empresário Antonio Carlos de Almeida Braga, o "Braguinha", ex-presidente do Bradesco e da Atlantica Boa Vista, que já hospedou Senna em diversas ocasiões em sua quinta em Sintra, Portugal, e em Angra dos Reis, no litoral fluminense. "Ele tem uma resistência física colossal, corre mais de uma hora por dia e ainda tem fôlego para jogar tênis." Ele é um superdotado que gosta de ficar no quarto lendo a Bíblia e que nunca se aproxima de bebidas alcoólicas, baralhos ou mesas de sinuca", diz Braguinha. Senna é apaixonado também pela aviação. Recentemente trocou seu jato Learjet por um avião maior de fabricação inglesa, o H-28, com capacidade para transportar dez pessoas. Tem um Piper a hélice com que viaja para o interior do Brasil e um helicóptero Ecureuil que comprou num kit da Aerospatiale e ele mesmo montou. "O avião prende e o helicóptero liberta", diz Senna, que várias vezes pousou seu Ecureuil no Autódromo de Interlagos para inspecionar as obras que estão sendo feitas para abrigar o Grande Prêmio do Brasil que será disputado em março próximo. Ele adora também os aviões em miniatura por controle remoto. "Sou um craque com eles", diz Senna.
BJORN BORG - Ayrton Senna tem uma imagem asséptica de um robó bem planejado em que cada gesto tem uma razão de ser. Quando ele chegou à Fórmula 1, em 1984, encontrou dominando a categoria outro brasileiro, Nelson Piquet, que é o oposto. Brincalhão, alegre, contador de piadas e sempre com um palavrão engatilhado, Piquet tratou Senna como um intruso. Assim que a carreira do outro foi se firmando, a indiferença de Piquet transformou-se em franca hostilidade. Atualmente, eles continuam distantes e Piquet evita como pode falar em Senna. "Não tenho o que dizer sobre ele. É um bom piloto, falível como todos nós e é só", diz Piquet. A aura de frieza de Senna é algo semelhante à que transmitia há alguns anos o ex-tenista sueco Bjorn Borg - que atuava como se estivesse fazendo uma planilha de custo de uma multinacional. Ambos têm em comum um traço biológico - os batimentos cardíacos lentos. "Medi certa vez o pulso do Borg em repouso, ele batia 34 vezes por minuto", diz o preparador físico paulista Nuno Cobra, que cuida de Ayrton Senna cuja frequencia cardíaca em repouso está entre 44 e 46 batidas. "Isso é fantástico, pois mostra que a capacidade cardiovascular dele é enorme. O coração precisa de um mínimo de esforço para bombear sangue para o corpo", diz Cobra. Pelé também tinha batimento cardíaco baixo - 36 batidas por minuto. Com a orientação de Cobra, Ayrton corre 10.000 metros três vezes por semana, depois descansa e faz exercícios de musculação e alongamento.
Livre dos cartolas, Ayrton vai voltar com sede às pistas. Pela primeira vez desde que chegou à Fórmula 1 ele tira férias tão longas - dois meses. "No ano passado errei ao menosprezar os problemas da caixa de câmbio da McLaren. Eram problemas realmente sérios que me perturbaram muito", conta Senna. "Este ano espero não ter tantos problemas mecânicos." Senna voará atrás dos recordes da Fórmula 1 que ele quer e terá um carro e talento suficiente para detonar todos. Ele já consta do livro Guinness de recordes como o piloto que mais provas venceu numa só temporada - oito em 1988. Além disso, é disparado o piloto que mais pole positions conquistou - 42. Na alça de mira de Senna estão os recordes de média de pontos por temporada em que ele só perde para Prost - Senna tem 52,8 e Prost 58,7 pontos - e também em número de vitórias por temporada, em que o francês o vence de 3,9 a 3,3.
RECORDES - Pelo potencial que possui, Senna só pode ser comparado a Jim Clark, diz Creighton Brown, diretor administrativo da McLaren, que é casado com uma brasileira, Teresinha, que o acompanha há dez anos na Fórmula 1. "Como Clark, ele é superdotado, capaz de andar rápido em qualquer tempo, com qualquer carro e seja sobre qual for o tipo de pista", acrescenta. A obstinação de Senna em perseguir os recordes não o deixa relaxar. Na verdade, Senna só se permitiu alguns instantes de euforia e de tranquilidade profissional quando venceu o campeonato mundial em 1988. "Não sei como seria hoje se não tivesse ainda ganho o campeonato. O título mundial me deu uma serenidade que não sei explicar", conta o piloto. Mesmo com o título, Senna parece estar 365 dias por ano concentrado para a corrida. Piquet costuma dormir antes das provas. Emerson Fittipaldi, que foi bicampeão mundial de Fórmula 1, costumava contar as horas que faltavam para entrar no carro e brincava: "Só tenho mais uma hora para me divertir". Ayrton Senna se concentra durante as quatro horas que antecedem a largada e não gosta de falar com ninguém nesse período. Mesmo quando uma criança consegue se aproximar dele e pedir um autógrafo, ele não abre a guarda. Para os inimigos, essa barreira é mau humor puro e simples. Para os amigos, é concentração e esmero profissional. Quando bater todos os recordes da Fórmula 1 - e ninguém duvida que ele consiga -, Ayrton poderá relaxar. Aí, então, os pilotos que se preparem para suportar as exigências que ele hoje se impõe. Ron Dennis já disse que considera Ayrton o sócio ideal no futuro para a McLaren. Então, talvez nem a curva Balestre consiga segurar a obstinação do brasileiro.





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