Entrevista: AYRTON SENNA DA SILVA, 1985
campeão do futuro
No momento em que a Fórmula 1 entra na era
da informática, o jovem piloto brasileiro da Lotus
começa a impor seu talento nas pistas
Maurício Cardoso
Com Emerson Fittipaldi, o Brasil descobriu a Fórmula 1, na década de 70. Campeão do mundo em 1972 e 1974, Emerson tornou-se um ídolo nacional e o automobilismo continuou entusiasmando os brasileiros com Nélson Piquet, também bicampeão do mundo em 1981 e 1983. Piquet ainda reina nas pistas - hoje ele é
considerado um dos mais talentosos pilotos do mundo - mas o Brasil já tem um outro herói para aplaudir. Trata-se de Ayrton Senna da Silva, de 25 anos e carreira meteórica. Antes mesmo de completar seu segundo ano nas pistas da Fórmula 1, Senna, no último dia 15, domingo, venceu seu segundo grande prêmio, no circuito de Spa Francorchamps, na Bélgica. Mas, já antes dessas vitórias, o talento do corredor lhe valera o privilégio de ser contratado pela Lotus, que, ao lado da Ferrari, é considerada a mais tradicional e carismática escuderia da
Fórmula 1. O contrato que vence em 1986 rende a Senna 2 milhões de dólares por ano.
Zeloso de seus contratos, Senna não posa para fotografias quando não está vestido com roupas que portem as marcas de seus patrocinadores. "Se não fossem os patrocinadores eu não estaria sendo fotografado", justifica-se. Mas sua imagem simples o torna muito mais simpático ao público que seus antecessores. Em Emerson, era a voz fanhosa que não ajudava. Piquet, por sua vez, nunca fez questão de se mostrar simpático, ou mesmo de falar. Ayrton Senna mora em Londres desde que estreou no automobilismo em 1981, mas não esconde as amarras. "Na Inglaterra, sinto uma enorme saudade de falar português e de comer feijão com arroz", diz. Sua bebida favorita continua sendo guaraná. Filho de uma família de classe média alta - o pai tem fazendas em Goiás e uma distribuidora de álcool em São Paulo -, administra a carreira como seu patrimônio. E tem certeza de que será campeão.
VEJA - Depois de duas temporadas na Fórmula
SENNA - Não conheci o Clark nem o vi competindo, mas sei que ele era um gênio. Então é um privilégio poder ser comparado a ele. Não fiz ainda nem um quarto do que ele alcançou, mas se alguém vê semelhanças entre nós é porque tenho mostrado algo de bom.
VEJA - Quem é o melhor piloto do mundo hoje?
SENNA - As diferenças entre os carros são tão grandes que fica difícil dizer quem é o melhor, mas existem uns cinco pilotos que são superiores: o Nélson Piquet, o Keke Rosberg, o Alain Prost e o Niki Lauda, que está se despedindo do automobilismo.
VEJA - Falta um...
SENNA - Então, são quatro.
VEJA - Você não se coloca no mesmo nível desses quatro que citou?
SENNA - Todos eles já foram campeões do mundo, menos o Prost, que deverá ser este ano e já tem 21 vitórias na Fórmula 1. Então eu ainda preciso realizar muita coisa para dizer que estou no nível deles. Acho que estou na direção certa, mas tenho ainda um longo caminho a percorrer.
VEJA - No início dessa temporada, em suas primeiras corridas pela Lotus, pilotos mais experientes passaram a criticá-lo com alguma freqüência. Faziam restrições ao seu comportamento na pista. Até seu companheiro de equipe, Elio de Angelis, declarou que não continuaria na mesma equipe que você no próximo ano. Como você explica essa situação?
SENNA - Entendo que a chegada de um novo piloto representa uma ameaça para os outros. Afinal, numa pista cabem apenas 26 pilotos e os que contam mesmo não passam de oito. Aí chega um piloto de apenas 24 anos de idade e, com apenas quatro anos no automobilismo de competição, vai para a Lotus, uma equipe de ponta. É evidente que este piloto incomoda - afinal ele está tirando o lugar de alguém que está há muito tempo esperando uma oportunidade.
VEJA - Você se sentiu pressionado?
SENNA - Houve um tipo de campanha, os pilotos iam se revezando. Davam declarações, jogavam indiretas, numa tentativa de me diminuir. Mas de certa forma isso até me ajudou, porque eu deixei bem claro que não estava gostando nem aceitando as insinuações. Mas sabia que só poderia desfazer esse clima hostil com meu trabalho na pista.
VEJA - Agora você já é mais respeitado?
SENNA - Acredito que sim. Um caso concreto se deu com o Keke Rosberg. Existia uma certa incompatibilidade entre nós dois. No Grande Prêmio do Canadá nos encontramos na pista. Não tínhamos mais chances de vitória ou mesmo de marcar pontos e fizemos uma disputa particular, correndo o tempo todo junto, um contra o outro, sensacional. Depois da corrida ressaltei em minhas declarações o que mais me impressionara na prova - a maneira veloz, precisa e correta como o Keke dirige. Ele, que nunca me fizera um elogio antes, retribuiu da mesma forma.
VEJA - Como é o seu relacionamento com o Piquet?
SENNA - Não diria que somos amigos. Somos apenas colegas de profissão.
VEJA - Existe amizade entre os pilotos?
SENNA - É difícil ter amigos na Fórmula 1, porque não existe convivência. Quando estamos juntos, estamos competindo, cada um tem de se dedicar inteiramente ao seu carro, à sua equipe. Então não dá para ficar batendo papo. Tenho amigos do meio automobilístico, como o Chico Serra, Maurizio Sala e o Maurício Gugelmin, com quem divido minha casa em Londres. Mas ficamos amigos muito mais pelas dificuldades que enfrentamos juntos ao chegar a um país estranho para tentar uma profissão árdua.
VEJA - Existe muita deslealdade nas pistas?
SENNA - Está cheio de pilotos desleais na Fórmula 1. E não é como na Fórmula 3, na qual um piloto prejudica o outro mais por afoiteza ou inexperiência. Na Fórmula 1 são todos maduros e sabem muito bem o que é correto e o que não é.
VEJA - E onde fica a fronteira entre a rivalidade e a deslealdade?
SENNA - Você pode tornar a corrida difícil para seu adversário lealmente e nem sempre quando se usa a deslealdade se obtém um bom resultado. Mas a mentalidade que prevalece hoje é não deixar passar quem vem atrás a qualquer custo. Mesmo os retardatários fazem isso. Às vezes você vai ultrapassar um carro numa curva e ele corta a sua frente de maneira imprevisível. Se você não cede, a corrida acaba para os dois.
VEJA - Mas são raras as batidas nessas circunstâncias.
SENNA - Quase sempre se dá um jeitinho. Este ano já evitei vários acidentes, e outros pilotos também evitaram, tentando ultrapassar retardatários, às vezes pilotos de nome. Mas depois da corrida eu sempre cobro uma satisfação. É uma maneira de conhecer meus adversários. Da outra vez que acontecer você terá condições de evitar um acidente ou então tirar proveito da situação.
VEJA - Este ano, quando o carro não quebrou, você subiu ao pódio. Não é uma performance muito irregular?
SENNA - Quem me viu parando na pista numa seqüência incrível de sete corridas deve ter pensado que eu sou muito afoito, que não sei dosar o ritmo e arrebento o carro por causa de minha inexperiência. Na verdade eu dirigi sempre da mesma maneira, apliquei sempre a mesma tática de corrida. O que aconteceu é que, no primeiro semestre, o carro andou apresentando problemas incríveis, quase sempre falhas simples, mas que me impediram de completar as provas.
VEJA - Parece jogador de futebol que quando perde sempre culpa o juiz.
SENNA - Se fosse torcedor eu também pensaria assim. Eu cometi erros. Em Detroit, por exemplo, descuidei do freio, entrei direto numa curva e bati. Erro meu, não tem desculpa. Mas prova por prova fica bem claro. Fiquei sem gasolina em Imola, a três voltas do final, porque o motor era incompatível, um modelo antigo que consumia demais mesmo. Na Inglaterra, também parei a seis voltas, sem combustível, por um defeito no computador que controla o consumo. Em Mônaco e na França, o motor quebrou. No Rio, queimou a bomba de gasolina, no Canadá, uma braçadeira quebrou e o turbo caiu. Na Alemanha, a transmissão derreteu. Em todos estes casos eu não poderia ter feito nada para evitar a falha.
VEJA - Não é um paradoxo que os carros Fórmula 1, autênticas jóias da tecnologia, sejam tão frágeis?
SENNA - O que acontece é que a cada prova são incorporados novos componentes; novas tecnologias ao carro. Além disso, os carros estão sempre trabalhando no seu limite de tolerância. E não é só um problema de resistência. É preciso buscar um equilíbrio da resistência com a velocidade. Quando se consegue um, pode-se prejudicar o outro. São tomados todos os cuidados para evitar problemas. Antes de cada corrida, na noite de sábado para domingo, os carros são totalmente desmontados e substituídas todas as peças que sofrem desgaste. A cada corrida é praticamente um carro novo, diferente até mesmo do carro usado nos treinos oficiais.
VEJA - Qual é o papel da informática na Fórmula 1?
SENNA - A mecânica dos motores hoje representa 50%, os outros 50% são eletrônica. Tenho um minicomputador no carro que pega as informações de sensores distribuídos por toda a máquina, analisa e manda de volta para controlar seu funcionamento. Temos também um sistema que grava todas estas informações, numa espécie de fita de eletrocardiograma, para serem analisadas no box pela equipe.
VEJA - Não é meio frustrante para o piloto saber que está sendo comandado pelo computador?
SENNA - É meio frustrante sim. Mas com os dados do computador você acaba tendo um controle e um domínio sobre a máquina muito maiores. E ninguém melhor do que o piloto sabe interpretar o que o computador quer dizer.
VEJA - A eletrônica não vai diminuir o interesse do piloto pela mecânica?
SENNA - A gente acaba se envolvendo também com a eletrônica, começa a fazer parte dela. Mas, mesmo não sendo piloto profissional, é bom saber como são feitos os carros modernos. Se você tem um carro europeu, uma Mercedes último modelo, por exemplo, e este carro enguiçar na rua, melhor desistir de tentar dar um jeito. Não tem mais aquela de verificar o platinado, a bombinha de gasolina entupida, o distribuidor molhado. Quando pifa a parte eletrônica não tem curioso que ache o defeito.
VEJA - Em que você fica pensando nas 2 horas que dura uma corrida?
SENNA - Não penso em nada. A cabeça fica a 1 000 por hora, mas absolutamente concentrada na corrida. O piloto fica completamente amarrado dentro do carro, preso pelo abdômen, pernas e braços, controlando a própria respiração. Quanto mais imóvel seu corpo, mais estabilidade terá para dirigir. Na corrida chego ao limite da resistência física e psicológica. Emoção só sinto depois de passar a linha de chegada. E dor também, porque geralmente o corpo fica todo dolorido.
VEJA - Com todo o avanço tecnológico, qual o papel reservado ainda para o piloto?
SENNA - Em treinos normalmente instala-se mais de uma dezena de reloginhos no painel do carro e o piloto tem de ficar atento a tudo. Nas provas é um pouco menos, mas ele tem de cuidar também da tática de comida. Por isso o esgotamento mental depois de uma corrida é até maior do que o físico. Durante 2 horas a cabeça não se pode desligar nem por 1 segundo do que está acontecendo na pista e no carro. E tão importante quanto a marcação do painel é a sensibilidade do piloto. É ele que sente e entende os freios, o balanceamento do carro, a aderência dos pneus, as vibrações do chassi, o ruído do motor - parâmetros que variam de acordo com as circunstâncias. Então ele tem de anotar tudo isso no computador de sua cabeça e traduzir para compreender o que está acontecendo.
VEJA - Qual é o momento de maior tensão numa corrida?
SENNA - É a largada. Você tem de ficar atento ao sinal luminoso que dá a largada e aos outros carros. Você não pode sair mais rápido do que o da frente nem mais lento que o de trás. Com alguma freqüência um carro apaga na hora da saída e você precisa evitá-lo. Além disso o piloto tem de controlar o giro do motor. Se a rotação subir muito, os pneus patinam no mesmo lugar; se baixar, o motor morre. É muito complicado.
VEJA - E o medo de bater?
SENNA - As coisas acontecem muito rápido na pista. Mal dá tempo, por exemplo, para o piloto ler a placa de informações que a equipe mostra nos boxes. Numa batida não dá para sentir nada. Só depois que o carro pára é que sinto um frio na barriga.
VEJA - Onde está a graça em tudo isso?
SENNA - Em guiar o carro. O melhor mesmo é guiar em treinos. É ali que experimento a sensação do limite - frear
VEJA - Como é o dia-a-dia na vida de um piloto de Fórmula 1?
SENNA - Não é tão fascinante como parece. Quase sempre, quando não tem corrida, levanto-me às 5 horas da manhã, viajo 2 horas, treino mais 10, sem tempo nem para comer, e vou dormir à meia-noite. Quando não tenho treino de pista, então preciso cuidar da minha máquina. Aproveito para fazer ginástica de acordo com uma programação feita por Nuno Cobra, professor de Educação Física em São Paulo. Se existe a vantagem de não haver rotina - cada dia estou num lugar, fazendo coisas diferentes -, há também o inconveniente das viagens. O que mais faço na vida é arrumar e desarrumar malas. Chego ao ponto de não suportar mais ver avião.
VEJA - Como você enfrentou o problema da paralisia facial que o afetou no início do ano?
SENNA - Foi bom para sentir o quanto somos insignificantes. Por mais que você programe sua vida, a qualquer momento tudo pode mudar. Na época eu tinha acabado de assinar contrato com a Lotus, o passo mais importante da minha carreira, e de repente senti minha profissão acabada. Eu mesmo, como pessoa, me senti balançar.
VEJA - E como é o homem Ayrton Senna?
SENNA - Tive uma infância normal e já de pequeno senti gosto especial pelo esporte - desde bolinha de gude até futebol. Com 4 anos ganhei meu primeiro veículo a motor - um kart construído pelo meu pai. Hoje imagino que seria difícil viver sem guiar carros. Sempre tive todo o apoio da minha família e ainda hoje continuo muito ligado a meus pais e meus irmãos. E faço o que gosto - minha profissão é também o meu lazer.
VEJA - Como você procura preservar sua privacidade na Fórmula 1, em que tudo está exposto ao máximo?
SENNA - Entendo que existe uma necessidade de cuidar da minha imagem porque o que conta não são apenas os meus interesses - existe também o interesse do patrocinador. Então procuro atender a todos de maneira gentil - imprensa, fãs, mecânicos. Tenho uma ótima assessoria que trabalha comigo para construir uma boa imagem. Mas na pista tenho de cuidar de mim mesmo, do carro. Nesses momentos às vezes somos obrigados a tomar atitudes antipáticas.
VEJA - Você tem intenção de ir morar em Mônaco, como Piquet?
SENNA - Agora não. Estou tão envolvido no meu trabalho que prefiro ficar na Inglaterra, próximo da minha equipe.
VEJA - Você vai correr na África do Sul?
SENNA - Sou contra a situação existente lá e acho que a prova não deveria ser realizada, já por razões de segurança. Se o governo brasileiro baixar uma lei me proibindo de ir lá, essa lei é mais importante do que o meu contrato com a Lotus e vou acatá-la. Antes de tudo eu sou brasileiro.
VEJA - Você está satisfeito na Lotus?
SENNA - Ganhei dois Grandes Prêmios, fiz cinco pole-positions, andei mais quilômetros em primeiro lugar do que qualquer outro piloto. Estou contente. Poderia ter sido melhor. Naquela seqüência de corridas inacabadas o Peter Warr, chefe da equipe, me disse: "Tudo bem, nós acreditamos em você e por isso fizemos um contrato de dois anos. O primeiro era para você se encontrar na equipe, aprender, fazer os erros que todo mundo faz. O segundo ano vai ser o seu ano bom". E eu, irritado com os problemas, respondi: "Olha, tem uma correção aí. Este ano já foi o meu ano bom. Se não foi melhor foi porque o carro teve problemas". Mas estou contente porque progredi, desenvolvi meu potencial.
VEJA - Sua
carreira sempre foi metodicamente programada por você. O ano que vem é o ano do
título mundial?
SENNA - Vontade de ser campeão eu já tenho desde agora.
SENNA - Vontade de ser campeão eu já tenho desde agora.
FONTE PESQUISADA
CARDOSO, Maurício. O campeão do futuro.
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/ent_senna.html>.
Acesso em: 28 de novembro 2013.
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