Então com 23 anos, alemão tirou brasileiro tricampeão da
prova logo na primeira volta com manobra desastrada; diante das câmeras, um
irritado Ayrton foi tirar satisfações e repórter viu de perto
Por Livio Oricchio — Le Castellet, França
24/06/2018 06h00
De regresso ao calendário da F1, o GP da França nos leva
imediatamente de volta no tempo, mais especificamente à edição de 1992 do
evento. Não no circuito de Paul Ricard, próximo a Marselha, como neste fim de
semana, mas no de Magny-Cours, 250 quilômetros ao sul de Paris.
A corrida representou o segundo round da relação que viria a
ser bastante tensa, ao longo dos anos, entre Ayrton Senna, da McLaren, e
Michael Schumacher, Benetton. O direito de ser o primeiro round ficou com o GP
do Brasil daquela temporada.
Senna estreou o modelo MP4/7-Honda em Interlagos, terceiro
GP do calendário, a fim de tentar se aproximar um pouco dos pilotos da
Williams, Nigel Mansell e Riccardo Patrese, muito mais rápidos que todos os
demais. Na prova, com um carro quase sem testes, o motor Honda cortava.
Schumacher vinha imediatamente atrás de Senna, na reta dos
boxes de Interlagos, e interpretou aquela súbita aproximação à traseira da
McLaren como um brake test, ou seja, Senna estivesse tocando de leve no freio,
na reta, para tentar levar Schumacher brecar forte e perder o controle da
Benetton.
- É difícil acreditar que um piloto como Senna, três vezes
campeão do mundo, possa ainda fazer break test com os outros - acusou o alemão.
Senna acelera McLaren no GP do Brasil de 1992 — Foto: Getty
Images
Senna ficou sabendo da declaração de Schumacher pela
imprensa, instantes depois apenas:
- Falou isso, é? Pois o alemão falou besteira. Eu não fiz
break test algum. O meu motor estava falhando, tanto que abandonei por essa
razão.
Antes de entrar no GP da França de 1992 em si, era
importante mostrar que, com menos de um ano na F1, Schumacher já tinha
desafetos. E do calibre de Senna, campeão em três dos quatro títulos anteriores
disputados, 1988, 1990 e 1991.
Há experiências profissionais em que a forma mais rica de
narrar os acontecimentos, recontar os detalhes, é expressar-se em primeira pessoa.
Vamos juntos?
Ayrton Senna com a McLaren MP4/7 no circuito de Magny-Cours,
em 1992 — Foto: Getty Images
Antes de falar em Magny-Cours, naquele ano, 1992, gostaria
de registrar algo. Os caminhoneiros bloquearam as principais rodovias da
França. Protesto dos agricultores. Para percorrer os 250 quilômetros do
aeroporto de Orly, em Paris, até a pequena cidade de Varrenes-Vauzelles, a uns
15 quilômetros do circuito, precisei de mais de oito horas. Onde eu tentava
passar havia algumas toneladas de tomate interrompendo o asfalto.
Chegamos em Magny-Cours sabendo que Mansell e Patrese não
teriam adversários. O modelo FW14-Renault da Williams, concebido por Adrian
Newey, representava algo muito mais avançado de todos os carros da F1. Equipado
com suspensão ativa, era mais de um segundo mais rápido por volta que todos os
adversários.
No domingo, choveu e antes da largada ainda havia pontos de
umidade no traçado de 4.250 metros de Magny-Cours. Mansell começaria na pole
position, seu companheiro, Riccardo Patrese, em segundo, Senna, terceiro,
Gerhard Berger, também da McLaren, quarto, e Schumacher, quinto.
Schumacher atingiu Senna na primeira volta no GP da França
de 1992 — Foto: Reprodução
Chega pra lá
Ainda na primeira volta, no fim da grande reta, na freada da
curva Adelaide, Schumacher tentou ultrapassar Senna, por dentro, para assumir o
quarto lugar. Senna havia perdido a terceira colocação para Berger na largada.
Sem experiência, ainda, o alemão freou e, quando ambos iniciaram a curva,
bastante lenta, o aerofólio dianteiro de Schumacher tocou o pneu traseiro
direito de Senna, fazendo-o rodar. Outros pilotos se acidentaram naquela curva.
Mesmo sem o aerofólio dianteiro, Schumacher voltou aos boxes
porque o restante do seu Benetton não foi atingido. Já Senna não teve como
seguir na corrida. Assistiu às primeiras voltas da área de escape da curva
Adelaide.
A corrida seguia seu curso quando na 16ª volta começou a
chover forte, a ponto de a visibilidade cair bastante e o asfalto tornar-se
extremamente escorregadio. O diretor de prova, Roland Bruynseraede, interrompeu
a competição.
Agora
vai ficar legal.
Senna já estava de roupas normais, pronto para deixar a área
do autódromo, quando viu, na paralisação da corrida, a chance de ter uma
conversinha com Schumacher. Quem conheceu Senna sabe que ele não esquecia
quando alguém lhe fazia algo. Estava atravessada ainda na sua garganta a falsa
acusação de Schumacher em Interlagos, exatamente três meses antes, e naquele
momento, bem quente ainda, ter sido literalmente colocado para fora da prova.
Senna aborda Schumacher no GP da França de 1992 — Foto:
Reprodução
Atrás
da notícia
Eu estava na cabine de transmissão da empresa para quem
trabalhava, dentre outras atividades que exercia, quando dei sorte de ver,
através do vidro, Senna sair dos boxes da McLaren e caminhar a pé até o grid,
onde os carros estavam parando para depois, talvez, reiniciar a competição. Há
vídeo dessa cena no Youtube.
Avisei o locutor que estava deixando a cabine e, com o meu
gravador de fita cassete na mão, saí correndo para flagrar o primeiro contato
entre Senna e Schumacher, em seguida ao alemão deixar o cockpit.
Olha que legal, hoje de manhã, aqui em Paul Ricard, bati um
longo papo com Pat Symonds, o engenheiro de Schumacher na Benetton e que fora
de Senna na Toleman. A equipe era a mesma, havia mudado o nome, apenas. Symonds
riu comigo. Hoje esse conceituado engenheiro inglês faz parte do grupo de Ross
Brawn, na FOM, que estuda uma profunda mudança nos regulamentos técnico e
esportivos da F1 a partir de 2021.
- Quando eu vi Ayrton chegando, logo compreendi que aquilo
poderia gerar uma briga mesmo. Eu me postei bem perto do Michael e lhe pedi
para não reagir, ouvisse o que tinha de ouvir. Ayrton estava de cabeça quente,
contou-me Symonds, e eu lhe lembrei que estávamos lado a lado.
Enquanto Senna falava com Schumacher, Livio Oricchio (à dir.)
ouvia tudo — Foto: Reprodução
Antes ainda de se aproximar de Schumacher, Senna já estava
de dedo em riste e suas palavras, em tom ameaçador, foram exatamente estas, as
ouvi de perto:
- Eu vim aqui porque eu te respeito como piloto. Mas também
para te avisar que da próxima vez quem vai dar primeiro sou eu, não você, ok?
A cara de Schumacher, com seus 23 anos, dizia muito. Cabeça
baixa. Foi como o vi em muitas ocasiões, a mais marcante na sala de imprensa do
GP da Áustria, em 2002, depois de vencer após a Ferrari mandar Rubens
Barrichello deixá-lo passar.
Com os dois pilotos ainda próximos da Benetton, Symonds
colocou a mão no ombro de Senna e disse isto:
- Ayrton, eu vou pessoalmente conversar com ele.
Se naquele momento o alemão tivesse encarado Senna, com
certeza teriam partido para a agressão física, o brasileiro estava realmente
irritado.
Agora o Symonds de Paul Ricard:
- Michael era muito jovem ainda, cheio de gás, cometia erros.
Depois de você me contar agora o que aconteceu, eu me lembrei, ele bateu na
traseira de Ayrton. Recordo que tínhamos um ótimo carro.
De volta ao acontecimentos da pista, Schumacher diz algo a
Senna, já levantando a cabeça, em tom bastante moderado. Não ouvi, até porque a
essa altura eles já não estavam sozinhos, havia gente de todo lado. A chuva
havia parado, segundos depois da bandeira vermelha.
Você
está errado, ponto!
Senna pôe a mão no ombro de Schumacher e o leva para a
lateral do grid. Os mecânicos, de todos os carros, trabalham para mandá-los de
volta à corrida. Senna nos impede de registrarmos a conversa, empurra o braço
de um repórter com o microfone. Mas, por eu estar muito perto, ouvi, sempre
falando em inglês com Schumacher:
- Você está errado. Você está errado, não há o que discutir.
Você não colocou o carro ao lado do meu, bateu na minha roda traseira, não foi
nem uma tentativa de ultrapassagem. Você está errado, pergunte a quem você
quiser. O tom de Senna é menos agressivo do que no começo das conversas.
O alemão fala algo e de novo não deu para ouvir. Flavio
Briatore, um jovem dirigente da F1 então, se aproxima lentamente. Eu me lembro
que me chamou a atenção o medo de Briatore chegar perto de ambos. Hoje, aos 68
anos, o italiano reside em Mônaco, e quando o encontro por lá, o que aconteceu
em duas ocasiões, desde que deixou a F1, costumamos conversar. Briatore é o
profissional que mais coisas me contou nesses meus quase 30 anos de F1. Muitas
mesmo.
Vi que Senna e Schumacher mantiveram ainda aquele papo no
grid, mas sem poder ouvi-los, me parecia a repetição do que já haviam falado um
ao outro.
Senna durante o fim de semana do GP da França de 1992 —
Foto: Getty Images
Com a imprensa brasileira
Falamos com Senna, nós da imprensa brasileira, na sequência,
mas já no paddock, na parte de trás dos boxes. Antes, um grupo de meninos que
aguardava Senna tentou obter um autógrafo do ídolo. Senna passou por eles sem
olhar para os lados por causa da raiva que sentia de Schumacher.
Um pequeno grupo o acompanhou, e Senna parou:
- Meninos, já disse que não vou dar autógrafo agora, estou
irritado, ok?
Vi aquilo e confesso que me senti doído, os meninos não
tinham nada a ver com os problemas entre Senna e Schumacher. Veio até nós,
jornalistas. Recordo de ter do meu lado Celso Itiberê, do jornal "O
Globo". As palavras de Senna ainda guardo em mente. Foi algo assim:
- Esse alemão, que é bom, não vai chegar aqui e se impor
como está achando. Se vocês observarem as imagens vão de cara entender que não
foi uma tentativa frustrada de ultrapassagem, ele provocou um acidente, é
diferente, ele me colocou para fora. E não fizeram nada contra ele. O.K. (deu a
entender haver compreendido a regra do jogo).
Disse mais coisas que não me lembro.
Faz uns 15 anos, creio, achei uma caixa de fitas de gravador
cassete com as entrevistas ou flagrantes que registrava na época. Com certeza
em uma delas encontraria essa conversa, ao menos o que consegui gravar. Nas
mudanças Brasil/Europa, essa caixa e muitas outras literalmente sumiram. Mas
quem sabe eu ainda a encontre na casa da Mamma. Um documento que se perdeu.
Importante: sobre acidentes de pilotos, na época não existia
nem 20% do rigor de hoje nos toques ocorridos na pista. Era preciso muito para
os comissários tomarem alguma ação punitiva contra os pilotos. Acredito que se
Senna acompanhasse um GP de perto hoje e visse que tudo pode gerar punição, é
bem provável que desse risada.
Senna e Schumacher chegaram às vias de fato num teste depois
do incidente na França — Foto: Reprodução
Fama
de mau caráter
Essa foi uma experiência interessante que tive com
Schumacher e Senna. A maior, no entanto, nada teve a ver com a de Magny-Cours.
Aconteceu muitos anos mais tarde, anos 2000. Um dia prometo contar. Eu
entrevistaria Schumacher em São Paulo, em um hotel, na quinta-feira do fim de
semana do GP do Brasil, para o jornal que trabalhava.
Minha estratégia era arriscada: ou a entrevista seria um
marco ou ela talvez acabasse na primeira pergunta e ficasse sem nada.
Schumacher literalmente iria embora. Como o conhecia há muitos anos, já o havia
entrevistado em várias ocasiões, achei que valeria a pena correr o risco.
A pergunta:
- Michael, por que você acha que tem fama de ser mau
caráter?
Não houve, a rigor, segunda pergunta. E a entrevista marcou
época. Schumacher falou quase sem parar a maior parte do tempo, mais de 20
minutos, para desespero da assessora de imprensa, revoltado com o que algumas
pessoas pensavam dele. Disse-me que outros pilotos, que tiveram comportamentos
até piores que os seus, não foram punidos e ainda “tinham a imagem de
santinho”.
Até a próxima.
FONTE PESQUISADA
ORICCHIO,
Livio. Senna X Schumacher, no braço. Palco: GP da França de 1992, Magny-Cours. Disponível
em: <https://globoesporte.globo.com/motor/formula-1/livio-oricchio/post/2018/06/24/senna-x-schumacher-no-braco-palco-gp-da-franca-de-1992-magny-cours.ghtml>.
Acesso em: 13 de abril 2019.
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