Era azul, todo azul, o meu quarto na fazenda Guariroba, para
onde a Luiza e o Braga me levaram, quase pela mão, como se eu fosse uma
criancinha desvalida. Azul - a cor preferida dele. Bateu, de cara, a
desesperadora com preensão do que me esperava daí para a frente: viver
plenamente Ayrton Senna sem ter Ayrton Senna. Tudo ia me fazer lembrar dele;
nada eu iria ter em troca de sua ausência.
Um senhor que não me conhecia havia me colocado, na véspera,
depois do enterro, num gesto de simples generosidade, diante do meu day after.
Almoçávamos - a Betise, Birgit e o marido, Christian, e eu - no Maksoud, quando
esse senhor me reconheceu, levantou-se de sua mesa e, pedindo mil
desculpas, me deu uma coisinha embrulhada num pacotinho.
- Não é nada, é só um símbolo - ele me disse.
Era um chaveiro em forma de coração, dourado.
- Você perdeu isso. Mas você vai se refazer - despediu-se.
O coraçãozinho ingênuo, o quarto azul da fazenda, a cama de
casal e os sonhos de todos os dias - ah, os sonhos! Ele sempre vivo; muitas
vezes em lugares que lembravam um quarto de hotel, malas empilhadas; ou
naquela cena típica dele de falar ao telefone. De repente, ele ia sumindo e ia
ficando difícil alcançá-lo. Ou ele se atrasava. Sempre nós dois muito
próximos, só que eu não conseguia nunca tocar nele. Ou então nós dois numa
lagoa linda, com muito peixe, ele me chamando a atenção para as cores de um, a
beleza de outro, e, sem mais nem menos, a água virava uma escada, que descia
para um porão, onde ele me esperava, encostado nessa escada. E quando eu,
eufórica, corria para mergulhar nos braços dele, despertei.
Acordava sempre com um travo de frustração e uma dor de
saudade. Mas mesmo um sonho que eu não podia agarrar, ou parar no tempo, me
trazia o consolo de sua imagem e de lembranças de coisas vividas por nós.
O sonho da lagoa, por exemplo, me fez voltar a uma noite nossa no Algarve. Madrugada
alta, desperto com uns gritos dele:
- Pega o peixe... Olha lá... Ali na frente... Pega o peixe!
Ele estava sentado na cama, berrando, mas com os olhos de um
sonâmbulo. Tentei acalmá-lo. Abracei-o e disse:
- Tá bom, peguei o peixe.
Sempre de olho fechado, ele relaxou:
- Então, guarda o peixe.
E voltou a dormir.
Na fazenda, passei a ter medo das noites e dos sonhos.
Trouxe minha mãe para perto de mim. Queria que ela ficasse acordada a meu lado,
vendo um vídeo atrás do outro, até que as minhas forças cedessem. De dia,
voltei a correr. Quarenta e cinco minutos. Falava em voz alta, enquanto corria:
- Tá vendo? Fica aqui do meu lado. Era isso que eu queria
mostrar para você: que podia correr com você... Descobri um caminho que
eu chamava de trilha das borboletas. Antes de ir embora, Braga fez um giro por
toda a fazenda comigo e fiquei deslumbrada com aquele lugar, perto de uma
cachoeira, muitas árvores serpenteando por um caminho natural e uma
quantidade incrível de borboletas, de todas as cores, de todos os tamanhos, de
desenhos diferentes, tantas que você corria e elas vinham de encontro a você.
No caminho das borboletas tinha uma pedra.
Grande e lisa. Não sei por que a escolhi entre tantos
lugares tão bonitos da fazenda, mas era passar ali e me vinha à cabeça aquela
idéia do reencontro: "Béco, você podia vir me ver um dia, aparecer por
aqui".
Outra coincidência dava relevo àquela pedra. Toda vez que
eu entrava no carro, para uma volta em Campinas ou nas redondezas, tinha alguns
CDs à mão. Simone, Phil Collins. Também deles eu tinha pânico - com
certeza, iam me remeter para algumas situações muito especiais passadas
com ele. Mas tinha um Milton Nascimento, velhíssimo, ou tipo os melhores
momentos, não sei - só sei que era Milton direto, Milton, não, só aquela música
dele, muito antiga, que me disseram chamar Travessia, que dizia coisas como
"solto a voz nas estradas, eu não posso parar; meu caminho é de
pedra..." Outro trecho impressionante: "Eu não quero mais a
morte". Como aquilo me tocava. Não querer a morte era manter a memória
dele viva - foi nesse exato momento que eu decidi deixar para a posteridade as
coisas que eu conto agora.
No dia da despedida da Guariroba, antes de seguir para o Rio
e, depois, para Lisboa, voltei lá na pedra. Eram cinco da tarde, mais ou menos,
de um dia muito frio; o sol já quase não se manifestava e eu quis passear, dar
um adeus àquele lugar que tinha me dado um abrigo tão reconfortante. Com minha
Bíblia na mão, me encaminhei quase automaticamente em direção à pedra. Abri o
livro sagrado para ler, mas o fechei. Por mais de uma hora, eu falei. Sem
parar, em voz alta - a minha própria e desesperada oração. Pedia para sair dali
purificada de corpo e alma. Deixar para trás as mágoas, os maus sentimentos,
revolta, dor, decepção, injustiça. Que a tempestade me fortalecesse. Aí,
sim, abri a Bíblia. Por acaso, juro, no Salmo do Perdão.
Béco não apareceu naquela pedra. Mas, não sei por quê, eu o
sentia perto, muito perto. Continua pertinho, aqui, do meu lado. E do lado de
todos os que o amaram verdadeiramente.
FIM
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