Trecho retirado do livro “Caminho das Borboletas” de Adriane Galisteu
Peguei o avião para o Algarve
às 20h30 com a alma bem mais leve. Juraci, a caseira, me buscou, cordial como sempre,
quis me cobrir daqueles agrados tipicamente portugueses que desafiam os
ponteiros da balança, conversamos demoradamente, fizemos planos para a recepção
do dia seguinte e só então me recolhi. Sentia tanta falta física dele, depois
desse mês de distância, que abri os armários do nosso quarto, o closet dele e
afaguei-lhe as roupas, em busca de seu cheiro masculino. Sua presença se sentia
também na mesa com o fax, os papéis arrumadinhos, na revista deixada no canto -
sim, aquele Nova Gente que trazia nós dois na capa, mesma reportagem de Caras.
Considerei aquilo uma homenagem proposital dele.
Ao sair do banho, o telefone
voltou a tocar. Atendi no banheiro, espreguiçando sobre o tapete branco e alto,
fofo como o pêlo de um gato angorá:
- Becão, está se sentindo
melhor?
Ele não chorava, mas sua voz
era um fiapinho:
- Olha, minha cuca está no
pé. O Braga, o Léo e o Galvão (Bueno, da TV Globo) estão aqui, graças a Deus.
Saímos para jantar, conversamos, estou melhor.
Tradução: ele ia correr, e ia
correr para vencer.
- Estou preparado para sentar
no carro e acelerar fundo - disse.
Seu generoso coração
preparava, em segredo, uma surpresa. Em vez da bandeira do Brasil que ele
costumava acenar nos dias de vitória, já tinha encarregado um amigo de
conseguir uma bandeira da Áustria. Seria sua homenagem ao infeliz Ratzenberger.
Um iniciante na Fórmula l. Mas, para Ayrton, não existem hierarquias nem na
vida nem na morte. Ele me confidenciou seu gesto. Juro que aí quem teve vontade
de soluçar fui eu.
Disfarcei com uma certa
irritação:
- Pô, quando morre alguém da
família, pára tudo, não pára? As pessoas põem luto...
Soube depois, pelos amigos,
pela imprensa, que a prova de Ímola esteve por um fio. Ayrton deu declarações públicas
denunciando a insegurança do circuito e lamentando os acidentes. Mas ele era a
última pessoa do mundo a poder comandar uma operação-boicote. Tinha perdido as
duas primeiras provas, estava atrás de resultados, qualquer atitude sua poderia
ser entendida como um pretexto para ganhar tempo, para não competir. E, se
havia coisa no mundo que Ayrton não era, era frágil e covarde. Comigo, naquela
noite, às vésperas da tragédia, ele só repetiu seu constrangimento sintomático:
- É assim mesmo, esse pessoal
é assim mesmo - para logo mudar de assunto.
A caseira interrompeu para
animá-lo com o cardápio que ela preparava para a chegada. Típico da
simplicidade dele: galinha grelhada e legumes no vapor. Peguei de novo o
telefone. Falamos de nós. De saudade e de amor. Trocamos juras apaixonadas.
- Preciso lhe dar umas
palmadas - disse ele.
- Palmadas? Por quê?
- Tenho muito a lhe dizer. A
lhe propor. A lhe oferecer - prosseguiu. - Devo estar aí às 20h30, por aí.
Quero passar a noite em claro. Vamos conversar até o amanhecer. Quero
convencê-la de que sou, disparado, o melhor homem de sua vida.
Ri, com aquele comentário
inesperado.
- Você não conhece os
outros... - brinquei.
- Vou provar-lhe que sou o
melhor.
Meu Deus, ele é o melhor
homem de minha vida. O único. Será que eu ainda não deixara isso claro para
ele? Ele era uma dádiva, um presente, um paraíso. Na nossa conversa
noturna e meio bobalhona de dois enamorados, nem de longe imaginei que houvesse
espaço para a intriga ou o veneno. De nossa parte, não havia. A paixão era
nosso único alimento...
- Tenho novidades para você -
anunciei, ao me despedir.
Queria contar pessoalmente.
Besteirinha à toa, mas que para mim significava suor e progresso. Ia desafiá-lo
para uma corrida, tão logo ele estivesse recuperado da canseira de Ímola.
FONTE PESQUISADA
GALISTEU, Adriane. Caminho das Borboletas. Edição 1. São Paulo: Editora Caras S.A.,
novembro de 1994.
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