sexta-feira, 26 de abril de 2013

O primeiro título a gente nunca esquece

Essa matéria foi publicada na coluna Voando Baixo, página 5 do caderno de Esportes de O DIA, no dia 30 de outubro de 1998.

O primeiro título a gente nunca esquece
Alaide Pires




Quem se lembra o que estava fazendo na madrugada do dia 30 de outubro de 1988? Difícil, né? Alguns acontecimentos na véspera para ajudar a refrescar a memória: a Imperatriz Leopoldinense apresentava o enredo “Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós”, que ganharia o carnaval do ano seguinte, o Botafogo conseguia sua primeira vitória na Copa União (após um jejum de nove jogos) e o Dia Anunciava, em seus classificados, lotes à venda no Recreio dos Bandeirantes por 5 milhões de cruzados.
Lembrou? Pois eu recordo muito bem a madrugada em que Ayrton Senna, lá no outro lado do mundo, conquistava seu primeiro título mundial de F-1. E revejo tudo, com riqueza de detalhes, como se estivesse assistindo novamente à corrida numa enorme tela de TV. Só que agora, dez anos depois, a imagem também me inclui.
Estou deitada no sofá, o cinzeiro ainda sem pontas de cigarro, esperando tranquilamente a luz verde aparecer. Senna está na pole, com Alain Prost ao lado e, pelo menos naqueles momentos que antecedem a largada, parece que nada de errado pode acontecer.
O carro de Ayrton, porém, dá um soluço para a frente e fica parado no grid. “Está tudo perdido”, tento dizer para alguém, mas o silêncio da madrugada me informa que, pelo menos ali, no meu bairro, todos estão dormindo, alheios ao drama que se desenrola no Japão.
Senna cai da primeira para a décima quarta posição e, sentada agora na pontinha da poltrona, vou dirigindo com ele centímetro a centímetro, reduzindo marchas, freando quase no meio das curvas, acelerando forte nas retas, ordenando a cada adversário que saia do caminho. Para cúmulo do azar, Prost, em arrancada fulminante, vai se distanciando na primeira posição. “Será que nada de ruim acontece com esse francês?”, lanço a praga ao vento, como quem não quer nada, esperando que alguma providência seja tomada.
Senna agora se move como um peixe dentro da água. Parece o tubarão de Spielberg – voraz, escorregadio, indestrutível – desviando-se dos obstáculos. O cinzeiro se enche rapidamente de pontas de cigarro e agora, quando ele deixa mais um adversário para trás, vou atrás de uma cerveja (logo eu! Quase abstêmia...) para controlar as batidas de um coração em total sincronia com o pé direito do piloto brasileiro.
O grito de Galvão Bueno me pega de surpresa na cozinha, já de copo na mão. “Bateu! Senna bateu!” Não posso evitar o pensamento pessimista enquanto luto contras as pernas quase paralisadas que tentam correr em direção à TV. Bateu nada. Galvão, histérico, anuncia a tempestade que providencialmente sempre aparece quando Ayrton está em dificuldades.
Um, dois, três, quatro, sete, dez... Quanto adversários já ficaram para trás? Perdi a conta. Já estou de pé, na sala, mais um cigarro na mão. Reginaldo Leme avisa que a distância entre Senna e Prost diminuiu ainda mais e começo a zombar do francês, que, todos sabem, tem medo de água. “Jaci Borrou, Jaci Borrou”, canto com a mão na boca, repetindo o apelido mais legal do baixinho narigudo. Mas é preciso redobrar a atenção a cada curva porque o asfalto, escorregadio, parece ensaboado. Ralho com Senna pela TV, exigindo prudência. Mas a McLaren, indiferente ao meu desespero, continua avançando rápido demais em meio à cortina de água.
Quando Senna, finalmente, fica visível no retrovisor de Prost, me revolto contra o silêncio da madrugada. O mundo precisa saber o que está acontecendo no Japão. Parto rápido para o armário de bugigangas e encontro, escondido atrás de livros, revistas velhas e retalhos de tecido, alguns rojões do último réveillon. Quando solto o primeiro, alguém abre a janela e pede explicações com um olhar zangado. “Senna vai ser campeão”, não sei se sussurro ou grito. A resposta é “plaft”, janela na cara.
Senna passa Prost e agora a cortina de água se transfere lá pra casa. Mal consigo ver as imagens finais do piloto socando o volante e levantando o punho em seu gesto característico de triunfo. É final de Copa do Mundo pra mim! E o Brasil venceu! Solto mais três rojões e agora outras janelas se abrem. “Senna é campeão”, estou berrando. Alguns vizinhos sorriem, parecem perdoar aquela inesperada extravagância às 3 horas da manhã.

Passaram-se dez anos? Não dá para esquecer...

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