"O início do Mundial de Fórmula 1 de
1984 foi no Brasil, em Jacarepaguá, e eu fui às boxes para fotografar o piloto
que se ia estrear naquele dia. Ele estava lá sentado, dentro do carro, e não
estava ninguém à volta, porque nessa altura ainda podíamos andar à vontade.
Comecei a tirar fotografias e ele, de capacete amarelo, levanta a cabeça de
repente. Identifico-me e o Senna interrompe-me: 'Então, Francisco, já nos
conhecemos'. Fiquei encavado, porra, mas este puto conhece-me de onde?"
Francisco Santos, na
altura com 42 anos, já conhecia o puto de capacete amarelo, o novo piloto da
modesta equipa da Toleman, mas não se lembrava. O puto, pelo contrário,
lembrava-se bem. "Em 1979, eu trabalhava numa agência publicitária em São
Paulo, no Brasil, e um dia a minha secretária diz-me: 'Francisco, tá aqui um
garoto pra falar com você'. Entra-me ali um miúdo com 19 anos e pede-me para
lhe arranjar um patrocínio para correr na Europa", conta ao Expresso.
"Na altura, o
patrocínio não se proporcionou e nunca mais vi o rapaz. Até àquele dia, em
Jacarepaguá, quando ele me diz 'você não trabalhou numa agência de publicidade
em São Paulo?'. Fiquei verde, porque não me lembrava nada dele. Ao longo dos
anos, ele mandava-me de vez em quando umas piadinhas sobre isso", graceja.
O puto, então com 24
anos, era só aquele que se tornaria um dos maiores pilotos da história da
Fórmula 1: Ayrton Senna da Silva. "É difícil comparar pilotos e épocas
diferentes, mas foi de certeza o mais carismático de todos os tempos. Para o
povo brasileiro, ele era um deus. Aliás, para o domingo só começava para eles
depois de verem o Grande Prémio", conta Francisco Santos, agora com 71
anos e atualmente a escrever o quarto livro sobre o piloto natural de São Paulo.
Foi precisamente em
São Paulo que Domingos Piedade, ex-vice-presidente da AMG-Mercedes, percebeu o
poder do "grande amigo" Ayrton, campeão do mundo em 1988, 1990 e
1991, numa altura em que não havia redes sociais nem o acesso à informação que
há hoje. "Estava a ir para a fábrica da Mercedes e perguntei ao motorista,
que já conhecia bem, quando é que a filha dele ia casar. E ele responde-me 'oi
doutor, só sei que tem de ser num fim de semana sem grande prémio'".
Domingos, que trabalhou com Emerson Fittipaldi e Michele Alborreto, tem
dificuldades em escolher o melhor - "entre Maradona, Di Stéfano, Pelé,
Ronaldo... quem foi melhor?" -, mas destaca Senna como um
"extraterrestre", completamente diferente dos outros. "Acho que
ele tinha qualidades que não eram normais, mas sobrenaturais. Ele tinha o dom
de desmultiplicar a velocidade na mente dele e via tudo fácil e devagar, mesmo
quando ia a alta velocidade. Isso vê-se nas provas que ele fazia à chuva, com
trajetórias pouco normais", explica.
"Extraterrestre"
também é, curiosamente, a palavra que Artur Lemos, ex-diretor de relações
públicas da Ford, utiliza para descrever Senna, com quem considera ter sido
"um privilégio" privar, não só por aquilo que era nas pistas, mas
também fora delas. "Era uma pessoa fascinante, simpático e acessível para
quem o conhecia, mas com uma personalidade fortíssima, com um carisma muito
especial", defende.
"Já o admirava
antes de ele entrar na Fórmula 1, porque ele sempre foi um vencedor no desporto
automóvel, por tudo onde passava. Era realmente um extraterrestre dos
automóveis", explica Artur, referindo-se à carreira de Senna nos karts,
onde começou oficialmente logo aos 13 anos, apesar de já conduzir desde os
quatro anos por influência do pai, ávido fã de automobilismo.
Em 1983, Senna já
era campeão de Fórmula 3, em Inglaterra, e começou a chamar a atenção de
diversas equipas de Fórmula 1. No ano seguinte, estreou-se na Toleman e, apesar
do carro modesto, destacou-se no grande prémio do Mónaco, onde começou em 13º e
ameaçou a liderança daquele que seria o seu grande rival nos anos subsequentes:
Alain Prost.
Mas seria apenas em
1985, já ao serviço da Lotus, que surgiria a primeira grande vitória do piloto
brasileiro, num sítio que passaria a ser a sua "segunda casa":
Portugal. "Estava no Autódromo do Estoril na primeira vitória do Senna.
Ele passou um atestado de incompetência a toda a gente nessa corrida. Foi
fascinante porque a pista parecia um rio e, mesmo com as circunstâncias
difíceis, ele bateu toda a gente", recorda Artur Lemos, confesso fã do
brasileiro, ao ponto de colecionar quase tudo sobre ele, entre miniaturas de
carros, capacetes, canetas e livros.
"Tenho uma boa
coleção, com um pouco de tudo, que comecei nos anos 80 e fui sempre
continuando. É valiosa porque retrata todos os grandes momentos dele",
afirma Artur, que é gestor de eventos, sem apontar o valor das peças, ainda que
as estime em alguns milhares de euros.
"Há quem se
ligue a atores ou cantores. Para mim, é o automobilismo e o ídolo sempre foi e
sempre será o Senna, o maior piloto de todos os tempos. Penso que me revia
nele, um grande ganhador. Não vejo no horizonte ninguém que consiga preencher o
lugar que ele deixou", defende Artur Lemos, acrescentando que também tem
uma coleção dedicada a outro piloto que era fã de Senna: Pedro Lamy.
"Senna foi o
meu ídolo, era a minha grande referência e vai continuar a ser sempre",
confessa Lamy ao Expresso. "Tínhamos uma boa relação. O facto de ele na
altura ter comprado uma casa na Quinta do Lago dava-nos alguma proximidade e
ele sempre me deu conselhos - como devia abordar a entrada na competição, como
devia ser mais eficaz na pista...", afirma Lamy, que entrou na F1 em 1993.
O piloto português
da Lotus estava em Ímola a 1 de maio de 1994, no fatídico grande prémio de San
Marino, que já tinha começado mal nos dias anteriores - e onde também Lamy
embateu num carro, embora sem gravidade. "Foi um dia muito confuso e um
fim de semana muito difícil, negro. Na altura, não sabíamos que ele tinha
morrido, mas quando soubemos, mais tarde, foram momentos muito complicados para
todos."
O fim de semana de
Ímola começou com um acidente grave de outro brasileiro, Rubens Barrichello, na
sexta-feira, e passou para a morte de um austríaco, Roland Ratzenberger, no
sábado, acontecimentos que perturbaram Senna ao ponto de reunir os restantes
pilotos para debater a segurança da pista.
"Sou daqueles
que acha que ele no dia em que morreu sabia que ia morrer. Ele deu entrevistas
a dizer que estava preocupado e acho que ele, como crente, sabia", diz
Artur Lemos. "Lembro-me perfeitamente do dia e lembro-me perfeitamente que
estava a ver na televisão e comecei a chorar."
Quando entrou na
curva Tamburello, Senna, que ia a 300 quilómetros por hora, perdeu o controlo
do carro e despistou-se contra um muro. Um pedaço da suspensão entrou pelo
capacete amarelo do piloto de 34 anos e penetrou-lhe o cerébro, matando-o. Mais
tarde, soube-se que o descontrolo aconteceu devido à quebra da coluna de
direção do Williams e não devido a um erro do piloto.
"Foi um choque
para todos, especialmente no Brasil, onde literalmente milhões de pessoas
encheram avenidas para o enterro dele. Ainda hoje em dia a campa dele quase que
não se vê, tal a quantidade de flores e fotografias", conta Francisco
Santos, que lançou a primeira biografia de Senna logo em agosto de 1994.
"No aspeto
afetivo dos seguidores, há uma Fórmula 1 antes de Senna e depois de
Senna", considera Francisco Santos, que refere que nem Michael Schumacher
chegou perto do estatuto do brasileiro, apesar de ter batido todos os recordes.
. "Agora, a Fórmula 1 está uma seca tremenda."
Domingos Piedade vai
mais longe. "Conheço o Michael [Schumacher] desde os 16 anos. Ele vem de
uma classe baixa e na Fórmula 1 são, em bom português, todos uns cagões, com a
mania que são especiais. E ele, como tinha um sotaque muito forte - por
exemplo, como se fosse do Norte, em Portugal -, evitava falar, para se
defender, e isso tornou-o mais introvertido", prossegue o
ex-vice-presidente da AMG-Mercedes.
"O Ayrton não
era assim. Era um miúdo educado, que aprendeu rapidamente inglês e usava
palavras em inglês que os próprios ingleses tinham de ir ver ao dicionário o
que é que significavam", graceja. "Nas conferências de imprensa dele
bastava haver uma pergunta, porque ele depois dissertava sozinho. Ele marcou a
Fórmula 1 nessa altura. Hoje em dia não há nada assim", sustenta Domingos
Piedade.
Francisco Santos
garante que havia dois Senna. "De quinta a domingo, ele era de uma
determinação e concentração inigualáveis: o objetivo era ganhar e ele não
pensava em mais nada. De segunda a quarta, ele era outro Senna, era um
paquerador, como dizem os brasileiros. Era muito namoradeiro, teve vários
romances e era uma pessoa muito jovial e brincalhanona".
A modelo Adriane
Galisteu foi o grande amor da vida do piloto brasileiro. "Hoje é tudo tão
plastificado... Já não há groupies, já não há glamour. Agora seria impossível
haver, por exemplo, um James Hunt, a sair do carro com uma lata de cerveja numa
mão e um cigarro na outra. Hoje, faço os impossíveis para não adormecer a ver
Fórmula 1. Falta um apelo qualquer", diz Francisco. Vinte anos depois,
ainda falta Ayrton Senna.
FONTE PESQUISADA
CABRAL, Mariana. O Extraterrestre Que
Apareceu Em São Paulo E Desapareceu Em Ímola. Disponível em: <http://expresso.sapo.pt/users/3590/359063/Senna_2d328a003a94e0529a5dfc48e9cf21e3.html#sthash.QlHQo8K2.dpbs
>. Acesso em: 02 de maio 2014.
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