Trecho extraído do livro “Caminho
das Borboletas” de Adriane Galisteu
Angra passou a ser minha casa
- nossa casa. Compartilhei com ele vários lares. Moramos juntos no apartamento
da Rua Paraguai, em São Paulo. Dividimos, certas noites, quarto e cama na casa
dos pais dele, no Pacaembu, onde a Zaza me acolhia como uma filha e dava colo a
muitas das minhas ingênuas confidências de menina de 20 anos.
O pai se retirou, mas
Zaza estava firme, beijei-a e ouvi dela: "Quero muito falar com
você". Respondi: "Eu também". Mas não imaginei que no dia
seguinte ela já batesse à minha porta. Depois, achei que nunca mais nos
veríamos. Estava enganada.
Quando olhei pela última vez
para a cova do Béco, eu lhe disse em silêncio:
- Eu o amo, mas você me
deixou, você me faz falta. Daqui para a frente, minha vida será um tormento.
No dia em que tomei coragem,
enfim, de ir a nossa casa, na Rua Paraguai, para retirar as minhas coisas de
lá, reencontrei a Zaza. Na fazenda do Braga, em Campinas, recebi o apoio
de muitos amigos, uma longa e afetuosa visita da Betise, a Birgit, muitas
amigas inesperadas e minha mãe, mas eu estava tão sem eixo, sem rumo, havia
perdido tão completamente o fio da meada que me abaixei no carro quando fui a
São Paulo pela primeira vez, com o motorista do Braga, depois do enterro. Só
ver a cidade já me apavorava.
Fui direto ao apartamento,
sem buscar minha mãe, como eu tinha prometido. Dona Neide me esperava. Dez dias
depois de toda aquela tragédia. Respirei fundo para enfrentar os fantasmas da
memória. Subi de elevador. A porta, entreaberta. Tudo igual - e ao mesmo tempo
tudo tão diferente! Não havia nem sinal daquela baguncinha que nós dois
produzíamos ali. Tudo no lugar. Não havia mais vida ali. Sentamos, a mãe do
Béco e eu, no sofá e conversamos uns quarenta minutos. Ela me falou da Bíblia
e, por coincidência, do salmo 81 - aquele que o Béco lia e relia. Ela não se
conformava. Senti que ia desabar. Tratei de entrar no quarto. Atirava minhas
coisas na mala de qualquer maneira, para poupar sofrimento. Quatro malas
cheias, no final. Entrei no banheiro, estava do mesmo jeitinho: a escova de
dentes dele no mesmo lugar.
Não resisti: pedi a Zaza para
guardá-la. Beijei-a e guardei.
O armário dele, presentes que
eu tinha dado, a gaveta com seu pijama predileto, o mais velhinho, tipo bermuda
e camiseta de meia manga, azul-claro. Tinha tudo a ver com a nossa vida.
Fiquei com ele também. Mas o cartão que eu lhe tinha dado de aniversário e que
ele pregou na porta, eu fiz questão de dar a dona Neide:
- É seu, fica com você -
insistiu ela.
- Não, é dele, portanto fica
com a senhora.
Dei as costas a um pedaço
grande do meu mundo - e sabia que essa despedida seria também para sempre. Dona
Neide me levou até a saída do prédio, nós nos abraçamos, eu chorei tanto, ela
chorou tanto, uma no ombro da outra, que os dois porteiros que assistiam à cena
também se emocionaram. Quis desanuviar:
- Se me pegarem na estrada,
vão achar que sou uma sacoleira - disse eu.
Ela ainda falou sério:
- Adriane, obrigada por ter
sido mulher dele e tê-lo deixado feliz. Ele foi muito feliz com você.
- Eu também fui muito feliz
com ele.
- Vou rezar por você, vou
torcer por você, gosto muito de você.
Peguei-lhe pela mão e disse:
- A senhora ainda vai me ver
bem, pode ter certeza disso. De uma forma muito real, sincera, coerente, vou
dar um jeito na minha vida.
Chovia muito, me recordo.
Cada uma de nós entrou no seu carro. Até nunca mais. Uma página estava virada
em minha vida.
Mas, que a Zaza me permita,
eu conhecia seu filho e sabia quando é que ele tinha seus momentos de oração.
Aquela cena que a tevê mostrou, pouco antes do desastre, não foi um deles. Béco
rezava em casa, à noite, longe das pessoas - era dono de uma fé recatada e
íntima, não fazia o estardalhaço de um militante de púlpito.
Para mim, naquela hora de rosto
tenso e mãos cravadas no carro, ele apenas pensava. Pela primeira vez na sua
carreira de piloto vitorioso, para quem o triunfo vinha primeiro que tudo,
sentiu a fragilidade da máquina e a fragilidade do ser humano. Um homem tinha
morrido à sua frente. Um amigo se estourara contra um muro. Até então, o piloto
Ayrton Senna sentava no carro e andava no limite.
De repente, outros
sentimentos tinham se intrometido na sua vida: susto, surpresa, medo. Medo -
que palavra cruelmente realista! Em tantos meses de conhecimento íntimo e
profundo, nunca o vi demonstrar qualquer coisa parecida. Ele passou por
situações incríveis, bem diante do meu nariz. Nunca se inquietou. Ao contrário,
buscava o perigo. Mas eu falo agora com a sinceridade de quem ouviu,
sentiu, viu - e de quem não tem nenhum compromisso a não ser com aquilo em que
verdadeiramente acredita. Hoje, assisto de camarote aos que tentam dar a suas
próprias mentiras um ar piedoso, quase religioso. Teorias e mais teorias, todas
atribuindo a Ayrton coisas que detestava fazer e negando-lhe aquilo que
mais buscava, ou seja, a liberdade.
Ímola era a prova de fogo
dele. O tudo-ou-nada da temporada 1994. Ele sabia que tinha de ultrapassar
todos os limites, a começar pelos de sua máquina frágil e difícil de dominar. A
minha verdade é a de que se viu, enfim, como uma criatura de carne e osso. Os
super-heróis não têm medo. As pessoas têm. No dia em que Ayrton Senna pôde
experimentar o mais humano dos sentimentos, no dia em que ele definitivamente
se completou como ser, a insanidade dos mercadores do perigo veio golpeá-lo na
cabeça. Meu Béco, amado e inesquecível, pagou com a vida a escolha de ser
aquilo que ele era.
FONTE PESQUISADA
GALISTEU, Adriane. Caminho das Borboletas. Edição 1. São Paulo: Editora Caras S.A.,
novembro de 1994.
Uma intimidade sofrida e que mesmo assim foi boa pois os bons momentos vividos é a melhor lembrança para elas.
ResponderExcluir