quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Adriane Galisteu Relembra Viajem Inesquecível Que Fez Com Ayrton Senna Para o Japão



Trechos livro Caminho das Borboletas:

Próxima parada, Japão. Saí de São Paulo sozinha, via Los Angeles, no sábado, 22 de outubro. Desembarquei em Tóquio na manhã de segunda, 24, horário local. Botei aí, de propósito, a palavra sozinha porque o Japão já tinha ameaçado entrar na minha vida aos 14 anos. Modelo, um convite, aquelas coisas. Minha mãe foi decidida: "Muito menina. Não vai, e ponto final".


Papo de Almoço - Rádio Globo - 20/12/2017

Enquanto eu voava, agora nas asas da Varig, ele voava dentro de seu McLaren. Ficaria mais alguns dias, por compromissos de negócios e para saborear a repercussão da vitória. Sua carreira no automobilismo sempre fora salpicada de griffes japonesas e pontuada por profissionais japoneses. Só um exemplo: a Honda. De 1987, na  Lotus, a 1992, na McLaren, os motores Honda foram seus parceiros nas inúmeras vezes em que subiu ao pódio - sem falar de seus três campeonatos mundiais, em 1988,  1990 e 1991. Osamu Goto, inspirador do vitorioso projeto Honda F1, ganhara do difícil Senna um total respeito por sua competência. Soichiro Honda, o boss da companhia,  gostava de marcar presença nos eventos sociais da Fórmula 1. Quando Akimasa Yasuoka anunciou ao final da temporada de 1992 que a Honda não queria mais gastar milhões  de dólares na Fórmula 1 - Ayrton me contou que foi um dos que choraram, junto com tantos mecânicos japoneses.

Continuou em 1993 recebendo toneladas de cartas de fãs japoneses - tinha uma enorme legião de adeptos, torcedores, amigos no país. Escrevia uma coluna no Tokyo Chunichi  Sports, o jornal esportivo de maior tiragem. Sem se esquecer de que a admiração sempre foi recíproca. Muitas vezes, quando nos aventurávamos por ilhas desconhecidas da baía de Angra, trilhávamos caminhos arborizados quase selvagens, atravessávamos inesperados riachos, Béco gostava de dizer:

- Bonito, né? Pois é, me lembra o Japão.

Angra é um dos poucos santuários da mata atlântica.

Um botânico diria que não tem nada a ver, absolutamente nada, com qualquer paisagem do Japão, talvez apenas um ou outro lugar bem ao sul do arquipélago japonês. Ainda assim, Ayrton gostava de comparar. Depois de minha viagem, consegui entender por quê, para ele, uma coisa lembrava a outra. Ele não comparava cenários. É que beleza chama beleza. Assim era o Japão para ele.

Ao se antecipar a mim, em Tóquio, em outubro, ele me poupava de formalíssimos jantares de negócio, mas eu ainda cheguei a tempo de recolher o calor humano que o Japão lhe dedicava.

Ainda em Cumbica, mal tinha embarcado, a aeromoça me ofereceu uma taça de champanhe - escolhi um copo d'água -, comecei a ouvir, já entorpecida, aqueles avisos de afivelar os cintos, esperei apenas que a aeronave se estabilizasse na sua altura de cruzeiro, inclinei a poltrona para trás, fechei os olhos e despertei com o anúncio de que, em poucas horas, estaríamos pousando em nossa escala em Los Angeles. Desci a contragosto. Encostei numa daquelas cadeiras de aeroporto e voltei a ferrar no sono - tão profundamente que uma comissária veio me despertar. Novo embarque, novo desmaio. A bem da verdade, em 28 horas de viagem, devo ter aberto os olhos e trocado o travesseiro de lado uma meia dúzia de vezes, mas foi um sono só, impregnado de imagens, um entorpecimento de drogado. Ou talvez eu apenas estivesse muito  bem com a vida.


A realidade, a rigor, só bateu no meu rosto quando, já na confusão do aeroporto de Narita, sem perder de vista aquele chapeuzinho do cantor Fagner, que eu vira no vôo, um guarda da alfândega resolveu pegar no meu pé. Eu já estava nervosa. Minhas malas, cheias de creminhos, custaram a aparecer. Agora, o guarda queria ver tudo. Falou em japonês - eu, nada. "Speak English?" "No, no." Abriu um livro, enorme, com várias perguntas em espanhol:

- Você tem drogas? Tem roupas para vender?

Pediu para abrir minha bolsa - aquela Louis Vuitton, enorme, que o Ayrton me deu e que depois foi roubada em Lisboa. Ah, o guarda tinha o pretexto: uma caixa  de bombons de cereja, da Kopenhagen, que Béco adorava. Criada a confusão: pode, não pode. Um brasileiro veio me ajudar da forma mais objetiva possível, em português mesmo:

- Namorada do Ayrton Senna. Senna, Senna. Williams, Williams.

O implicante me devolveu logo a caixa de bombons e saiu correndo para comentar com os outros coisas incompreensíveis, das quais eu entendia apenas "Senna" ou "Brasil". A definitiva salvaguarda estava assegurada por um sorriso familiar e um cabelinho espetado que me aguardava do lado de fora. Norio, o fotógrafo particular do Ayrton, fora me esperar. Animado, sacudia uns jornais japoneses que para mim eram grego. Mas deu para sacar que Ayrton tinha vencido. Cumprimentei o Norio com  um abraço e com a meia dúzia de palavras em inglês que ele e eu podíamos trocar. Entrei no táxi, senti o acalanto daquela pista sem trepidações e dormi mais uma horinha. Era manhã de segunda-feira quando o Norio me deixou no hotel Hilton Tokyo Bay. Bem diante da Disneylândia de Tóquio. Era maravilhoso, dava para ver o castelo.



O manager do hotel chamou dois valeis para me conduzirem à suíte, o que me levou a crer que, em vez de encontrar o Ayrton, encontraria no máximo um bilhetinho carinhoso dele, "tive compromissos, me espere", por aí.

Abri a porta e meu coração veio à garganta. Essa coisa de adolescente. Ele correu para mim, me apertou num abraço e me deu um beijo escandaloso. Ficamos conversando na cama, gigantesca e convidativa, até que, quando percebi, estava sendo despertada por ele:

- Ei, Dri, pedi uma comidinha pra nós dois... Acreditem: eu tinha apagado de novo.

Já não sabia se era dia ou se era noite, recordo-me apenas de umas pessoas que subiram à suíte para levar uns presentes para o Ayrton. Percebi que todos estavam sorridentes, ele especialmente, com a vitória. Quando saíram, ele me surpreendeu:

- Pô, fiz uma besteira.

- Besteira?

- É, discuti com um irlandês louco.

Em qualquer lugar do mundo, será sempre uma besteira discutir com um irlandês louco.

- Esse, quem é?

- Um novato, um moleque. Sem cabeça, não sabe o que faz.

Pedi, excitada:

- Me conta, vai! Ele desconversou:

- Lindo esse seu sapato.

Era apenas um dockside, comprado no Brasil, na Side Walk. Ele definitivamente não estava a fim de voltar a falar da corrida. Foi ótimo porque pudemos nos entregar  aos assuntos do amor.

Dormimos, dormimos - quando acordei, ele já estava de pé, ao telefone. Comentou do meu sono:

- Nunca vi, é um milagre. Você não tem fuso horário?

- Não, meu fuso horário é você - respondi.

Pena que o meu Japão, fora aquelas intermináveis horas de sono, tenha durado apenas um dia. Abri as janelas, vi a paisagem, linda, imaginei as cenas típicas de cidades que eu só tinha visto em cartões-postais e me fiz a promessa solene, naquele momento, de voltar. Ayrton ainda tinha um encontro de negócios, do qual ele voltou com uma lata de biscoitos de morango, com estampa do Mickey e a inscrição "Disneyworld de Tóquio". Redobrei minha promessa de voltar ali, um dia.


Passamos o resto do dia juntos, preparando-nos para um jantar formal e importante que teríamos aquela noite. Eu me preocupei porque sabia que teria de enfrentar o desafio dos hashi - ou seja, comer com pauzinhos. Rosa, minha cabeleireira de São Paulo, a única pessoa que mexe nos meus cabelos, é nissei e várias vezes tentou me doutrinar em favor do sushi e do sashimi e me ensinar a comer com pauzinhos. Inútil. Houve uma época em que cheguei a pensar em trabalhar profissionalmente em Tóquio, ela teve a gentileza de me dar uma agenda cheia de endereços, inclusive de um irmão dela: "Fica hospedada lá, vai ser mais fácil para você".

Acabei me saindo razoavelmente com os hashi, naquele restaurante maravilhoso, do próprio hotel, mas ao ar livre, perfumado pelos aromas de jardim japonês, com acesso entre pontezinhas charmosas e tortuosos caminhos de pedra. Não tive coragem de experimentar peixe cru, mas me deliciei com um camarão feito na chapa - capturado vivo, enorme, ali mesmo num aquário. Eu pensava: "Coitadinhos dos bichinhos". Mas foi a refeição mais deliciosa de que me lembro em toda a minha vida - disparada na frente até dos meus maníacos Big Macs, posso confessar. Nossos quatro anfitriões, todos homens, curvando-se e recurvando-se em gentilezas, trouxeram de presente uma câmera fotográfica. Estavam todos muito formais, de terno escuro e gravata. Todos, inclusive o Ayrton. Quando nos despedimos e subimos para nossa última noite japonesa, a primeira coisa que Béco fez foi arrancar a gravata, com força:

- Tenho ódio de terno e gravata - disse.

Não é esse, com certeza, em meio a um cenário de sutilezas japonesas e lembranças bonitas, o melhor momento para protestar contra um pequeno detalhe do triste dia do enterro de meu Béco. Mas vá lá: achei um absurdo, fiquei horrorizada, quando soube que o vestiram com terno e gravata. Quem sou eu para conhecer - e mesmo para acreditar - alguns mistérios do universo, mas pensei, com ternura, comigo mesma:

- Se daqui do esquife ele tiver que se apresentar em algum outro lugar, alguma outra dimensão, outra esfera, vai ficar furioso em se ver nesses trajes.










 FONTES PESQUISADAS

GALISTEU, Adriane. Caminho das Borboletas. Edição 1. São Paulo: Editora Caras S.A., novembro de 1994. 

Papo de Almoço - Rádio Globo - 20/12/2017




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