quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

3 Memórias de Ayrton Senna

Por Sérgio Veiga
F1 Flash - f1flash.com
01/05/2015

(Parte I): A Vitória no Estoril-85


Ayrton Senna da Silva comemoraria hoje o seu 55.º aniversário, se não tivesse sido aquele fim-de-semana maldito de Imola-94, em que todos os deuses se zangaram com a Fórmula 1… Tive a sorte de poder privar, em termos profissionais, com o enorme piloto brasileiro e aqui recupero, em jeito de homenagem, os três episódios que imediatamente me vêm à cabeça de cada vez que ouço o seu nome.

Abril de 1985, uma manhã de quarta-feira no aeroporto da Portela, espero a saída do brasileiro, passageiro do voo Varig 762. Naquela altura, em que a F1 ainda era novidade em Portugal (era o 2.º Grande Prémio da «era moderna» ainda era hábito ir esperar os pilotos mais importantes ao aeroporto para ter logo umas primeiras palavras. Para mais, o trissemanário «A Bola» saía à 5.ª feira, era bom arrancar com a reportagem da F1 logo com declarações da nova estrela em ascensão! Mas com tantos jornalistas à espera, era quase impossível ter uma conversa mais prolongada e consegui combinar com Senna um encontro para a tarde, já no autódromo do Estoril.

Despachados os cumprimentos a engenheiros, mecânicos e demais elementos da equipa Lotus, sentámo-nos junto do muro das «boxes» e, durante largos minutos, sem pressas, Senna foi respondendo a tudo o que lhe perguntava. Sentia o olhar desconfiado do brasileiro, ao ver que apenas tomava notas num daqueles grandes blocos «Castelo», mas falámos tranquilamente o tempo que foi necessário. Outros tempos, sem a pressão mediática actual…

No dia seguinte, reencontrámo-nos no autódromo logo pela manhã e ele, sorridente, agradeceu «o bom trabalho». Já tinha visto, obviamente, a página inteira de «A Bola» (ainda no formato… gigante!), encimada pelo título «Quando vou a 300 km/h só penso em ir mais e mais rápido!» e com tudo o que ele tinha dito, direitinho, por muito estranho que lhe tivesse parecido o esquema das notas no bloco «Castelo»… Desde esse dia que se criou uma relação de respeito mútuo, óbvio do meu lado pelo piloto que ele era, mas também da parte dele que sempre me «atendeu» com a máxima paciência e atenção.

Depois, viria a «pole» e a sua primeira vitória na Fórmula 1 (fará 30 anos a 21 de Abril), sob um dilúvio imenso, em que demonstrou um controlo superior do Lotus, numa prova com metade dos 16 abandonos por piões ou acidentes. E em que Senna deixou o 2.º a mais de um minuto, os 3.º e 4.º a 1 volta e o 5.º (Nigel Mansell num Williams/Honda) a 2 voltas! Apesar de muitas vezes ter pedido para que a corrida fosse parada, Senna nunca «tirou pé» e, sob condições dantescas, levou o Lotus/Renault à vitória e a crença popular ao ponto de perceber que estávamos perante alguém muito especial.



Entrou totalmente encharcado na sala das conferências de imprensa, trocámos sorrisos quase cúmplices pela entrevista que, agora, parecia um talismã e, durante um ror de tempo, ali o vi literalmente a bater o queixo e a tiritar de frio, mas a explicar com toda a tranquilidade como fora a sua primeira vitória. Porque muitas mais se seguiriam…

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(Parte II): da raiva… às desculpas


Embora todos tenhamos cultivado a imagem de um Ayrton Senna sereno, simpático, uma pessoa suave, o genial piloto brasileiro também tinha os seus momentos irascíveis, em que conseguia raiar o desagradável. Na sexta-feira dos treinos livres do G.P. da Alemanha de 1988 as coisas não lhe estavam a correr de feição e o McLaren/Honda não estava ao seu gosto, perdendo para o rival Alain Prost.

Naqueles tempos, jornalistas a entrar nas «boxes» das equipas era algo mais ou menos normal e, para reportar para «A Bola», costumava aproveitar a «boleia» dos jornalistas brasileiros para falar também com Senna, agradando à enorme legião de fãs que ele sempre teve em Portugal. Naquele dia, contudo, algo me atrasou e perdi o «comboio brasileiro», descendo mais tarde à «boxe» da McLaren onde encontrei Senna a falar com o seu engenheiro, ar de poucos amigos. Esperei que a conversa acabasse e, quando lhe perguntei «o que se passa Ayrton?», ele olhou através de mim e disse-me com uma rudeza que não lhe conhecia: «Porque só vem agora e não veio com os outros?! Agora não falo com você!» e quase me expulsou da «boxe»… «Está o caldo entornado», pensei, «este agora nunca mais me vai falar por causa disto».

Horas mais tarde, dia de treinos arrumado, estava no «paddock» em amena cavaqueira com o Domingos Piedade e outras pessoas, a caminho do carro para sair do circuito, quando sinto alguém bater-me nas costas. Virei-me e era Senna. «Você me desculpe aquilo de há pouco, eu estava meio chateado e você apareceu na altura errada. Me desculpe, agora está tudo bem, ok?». Nem sei se cheguei a balbuciar algo, era a última coisa que esperava de um piloto de F1 com os seus gigantescos egos…

O grande Ayrton Senna, a caminho do seu primeiro título, estava ali humildemente a pedir-me desculpa? Quantos dos outros trinta pilotos presentes em Hockenheim teriam tido semelhante atitude? Aí confirmei não só o respeito mútuo que já levava alguns anos, mas a grandeza humana de Senna que, tendo tido um ataque de irascibilidade (talvez até compreensível…), tivera a humildade de desviar o seu caminho para vir pedir desculpas pela sua atitude. E lá continuámos a nossa relação profissional como se nada se tivesse passado.




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(Parte III): o fim-de-semana que nunca devia ter existido


É inevitável… Quando ouço o nome Senna viajo imediatamente no tempo para 1 de Maio de 1994, o ponto mais fundo do fim-de-semana em que os deuses abateram toda a sua raiva sobre a F1. Tudo começara na 6.ª feira, com um acidente feito de Rubens Barrichello, com quem tinha grande afinidade por ter seguido a sua carreira na Fórmula Opel-Lotus (que corria juntamente com a F1) e pela ligação com Pedro Lamy. O susto foi enorme e lembro-me de Senna correr ao hospital do circuito para se inteirar do estado do seu benjamim.

No dia seguinte foi a tragédia da morte de Roland Ratzenberger que abanou todos quantos seguiam a F1. Recordo-me de Senna se meter no carro médico, com o seu amigo Syd Watkins, o médico da F1, e ir ao local do acidente perceber como tinha sido possível. Mais tarde, Watkins revelou que, nessa altura, disse a Senna para parar de correr…

Ainda mal refeito de dois violentos dias, nada me preparava para a tragédia de 1 de Maio… Primeiro o acidente no arranque em que só por milagre Pedro Lamy não se magoou seriamente, ao abalroar o Benetton parado de JJ Lehto. Mas muitas peças tinham voado para a bancada, provocando diversos feridos… Retomada a corrida, Senna despista-se na temível Tamburello, tem de estar tudo bem, pensamos todos, já muitos ali bateram e safaram-se com maiores ou menores mazelas. Olhos colados nos ecrãs, o capacete amarelo move-se, há um breve momento de alegria, está tudo bem ele mexe-se!, seguido por uma queda abrupta nas profundezas da tragédia quando assistimos aos meios médicos envolvidos no seu socorro.



Aproveito para descer à «box» da Lotus para saber como está Lamy que me despacha rapidamente com um «eu estou bem, mas como está o Ayrton?». Não há respostas, parece grave, mas, bolas, o capacete mexeu-se ele há-de estar razoavelmente bem, talvez algumas fracturas… Na altura apenas os socorristas sabiam a verdade e os momentos de desespero por que passava o brasileiro, já inconsciente, já em coma, de onde não mais sairia.

Numa sala de imprensa com muitas centenas de jornalistas, o silêncio era sepulcral, havia quem não contivesse as lágrimas, era demais num só fim-de-semana. Porque a corrida prosseguira e ainda houvera mais quatro feridos nas «boxes», por uma roda que se saltara do Minardi de Alboreto. «Morte» foi coisa que só se começou a ouvir muito mais tarde, já a corrida estava a terminar. Os rumores foram-se avolumando, até à confirmação do «press officer» da FIA que varreu a sala de imprensa com uma violenta onda de choque. Não, o Ayrton não!...

Na altura senti-me totalmente vazio e exausto, totalmente exausto de três dias de tragédias permanentes… Lembro-me de ligar para Lisboa e pedir ao chefe de redacção d’ «A Bola», Santos Neves, que me dispensasse do trabalho, não tinha condições para escrever uma única linha. Mas os leitores não têm nada a ver com os estados de alma do jornalista e foi o que percebi quando, do outro lado, ouvi um seco (e sei que muito difícil de dizer!) «está bem, vê se te acalmas e depois tens duas páginas para escrever».

Às vezes, «enfiarmo-nos» num teclado serve quase de terapia, de exorcismo dos fantasmas que nos esmagam. E foi assim que apareceram os textos para as tais duas páginas (ainda das grandes…), as mais difíceis de toda a minha vida! Já passava da uma da manhã quando saí de Imola, um sentimento de tremendo vazio, as lágrimas a quererem saltar. Acabara de viver o maior pesadelo de sempre… E a Fórmula 1 acabara de perder milhões de adeptos. Ainda hoje há quem me diga que deixou de seguir a F1 no dia em que Senna morreu. Compreendo mas não aceito. Porque tenho a certeza de que o próprio Ayrton não o aprovaria!

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SÉRGIO VEIGA

Enviado-especial do jornal «A Bola» a largas dezenas de Grandes Prémios, nunca deixou de reportar sobre o Mundial, tendo nos últimos anos alargado a sua experiência aos comentários televisivos.

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FONTES PESQUISADAS

VEIGA, Sérgio. 3 memórias de Ayrton Senna (parte I): a vitória no Estoril-85. Disponível em: <http://www.f1flash.com/Artigos/Historias/Senna-a-vitoria-no-Estoril-85>. Acesso em: 25 de janeiro 2018.

VEIGA, Sérgio. 3 memórias de Ayrton Senna (parte II): da raiva… às desculpas. Disponível em: <http://www.f1flash.com/Artigos/Historias/Senna-da-raiva-as-desculpas>. Acesso em: 25 de janeiro 2018.

VEIGA, Sérgio. 3 memórias de Ayrton Senna (parte III): o fim-de-semana que nunca devia ter existido. Disponível em: <http://www.f1flash.com/Artigos/Historias/Senna-o-fim-de-semana-terrivel>. Acesso em: 25 de janeiro 2018.

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