Quando Ayrton Senna morreu, os brasileiros perderam, juntos, o ídolo, o prazer do reconhecimento internacional, a imagem do sucesso. Adriane Galisteu perdeu, sozinha, o príncipe, o sonho, todos os seus projetos. Agora, ela tenta se refazer da tragédia, com o único bem que lhe restou daqueles dias dourados: as recordações de 1 ano e 6 meses de vida em comum, relatadas em um livro que sai esse mês.
No GP Brasil de 1993, a modelo Adriane Galisteu, 19 anos, arrimo de família, mergulhou em um cintilante conto de fadas. Entre campeões de automobilismo, artistas de cinema e figuras da nobreza européia, a ex-moradora de um modesto sobrado no bairro da Lapa, em São Paulo, passou a freqüentar boxes de autódromos, festas em mansões, hotéis de luxo. A bordo de jatinhos particulares e de vôos de primeira classe, desembarcou em cidades distantes como Budapeste, Sidney, Paris e Tóquio. Adriane, uma garota de rosto dourado e corpo perfeito, foi a princesa, nessa historia. O príncipe, como se sabe, chamava-se Ayrton Senna.
Todo esse encanto se desfez, no momento em que o carro do piloto chocou-se contra o muro, na fatídica manhã de 1º de maio, em Ímola, na Itália. Para sempre sem seu príncipe, sem fada ou vara de condão que a socorra, Adriane depende, desde então, de remédios amargos e lentos, como o tempo, a obstinação, a vontade de viver. Mas conta também com o socorro de um bem – o único que lhe restou daqueles dias inesquecíveis: é a história de sua vida ao lado de Senna, relatada em um livro, em fase de lançamento (edição “Caras”, para venda em bancas, com 50 mil exemplares na primeira edição).
Uma ocupação para suavizar o vazio insuportável, uma fonte de renda, para pagar as contas (as dela e as da mãe, vitima de uma paralisia facial), o livro, como o sapatinho de cristal, oferece também a Adriane à possibilidade de reafirmar que foi ela, e nenhuma outra, a companheira do piloto em seu último ano e meio de vida. “No momento, o livro é tudo, para mim”, diz Adriane. “É como se, com ele, eu estivesse começando a engatinhar, novamente”.
Nos confusos dias que se seguiram à tragédia, Adriane aceitou a hospitalidade generosa do empresário Antonio Carlos de Almeida Braga, grande amigo de Senna. Recolheu-se, em companhia da mãe, dona Emma, a uma fazenda de Braga, nas proximidades de Campinas, e tentou pôr alguma ordem nas idéias. Foi lá que resolveu fazer o livro. “É uma homenagem ao Ayrton, e, hoje, posso dizer também que é uma maneira de agradecer o apoio de milhares de pessoas que me escrevem de todo o planeta, do interior de São Paulo até o Japão, com palavras de conforto”.
Da fazenda, Adriane seguiu para Portugal. Novamente a socorreu a hospitalidade dos Braga, que a acolheram em sua residência, a Quinta da Penalva, em Sintra. Ali, no pavilhão denominado “a casa do Senna”. Adriane passou os últimos meses tentando se refazer e reconstruir alguma idéia de futuro. “O Ayrton era tudo que eu tinha, era a minha única perspectiva”, ela diz, na tentativa de descrever a dificuldade da tarefa que tem pela frente.
Amigos protetores, como os Braga, - “eles estão sendo como pais, para mim, diz Adriane”, órfã de pai há cinco anos – ou anônimos, como muitas das pessoas que escrevem cartas, são uma fonte preciosa de coragem. Sem isso, ela admite, não saberia onde se escorar e, possivelmente nem sequer onde morar. Estaria outra vez dividindo com o irmão e a cunhada o pequeno espaço da casa da mãe, em São Paulo. As relações no mínimo tensas com a família Senna não lhe permitiriam voltar a nenhuma das casas onde morou com Ayrton – o apartamento dos Jardins, em São Paulo; a casa de Angra dos Reis, onde viveram os momentos mais doces do começo do namoro, e a mansão do Algarve, o endereço europeu do piloto. Era lá que ela o aguardava, no dia 1º de maio, para iniciar, depois da corrida, uma viagem de lua de mel. Foi lá, sozinha na sala de almoço, diante da televisão, que ela viu a cabeça do namorado pender para sempre, inerte, após o choque.
Em sintra, Adriane conviveu, nos últimos meses, com lembranças dispersas por toda a parte. São objetos pessoais, fotografias nas paredes, ecos de cenas banais. E, até, um automóvel, que Braguinha pois a disposição do amigo para suas temporadas em Sintra, e que está trancafiado em uma garagem, sob interdição expressa: ninguém mais pode tocá-lo. Adriane não se poupou de nada. “Assisti centenas de vezes à cena do desastre”, ela conta. “Meus amigos diziam que era masoquismo, mas eu precisava tornar aquilo real, para mim”, explica.
À custa da anestesia que a repetição diária acaba produzindo, algumas lembranças perderam a força dos primeiros dias. Outras, porém, ainda precisarão de muito tempo para se tornar suportáveis. Como aquelas encerradas no quarto onde o casal dormia, na quinta. “A primeira vez que tomei coragem de entrar foi no dia em que o Brasil ganhou a copa”, conta Adriane. “Chorei tudo o que tinha para chorar e tranquei a porta”.
Gravar os depoimentos que resultaram no livro foi um processo doloroso mais produtivo, que ajudou Adriane a dimensionar tudo que aconteceu em sua vida, desde que seus olhos se cruzaram, pela primeira vez, com os de Ayrton Senna.
Eles foram apresentados durante o Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, em 1993, no autódromo de Interlagos. Ela era uma das recepcionistas contratadas pela Shell para o camarote vip da empresa. Ele era o grande ídolo.
“Nossa relação foi um vôo cego”, afirma Adriane. Nenhum dos dois sabia, no começo, que rumos ia tomar aquele envolvimento. Adriane viveu a insegurança de ser, talvez, um episódio passageiro na vida do campeão e tentou se distribuir como pôde entre o convívio com o namorado-ídolo e os compromissos profissionais: comerciais, fotos de moda e anúncios de lingerie. Mas o namoro ganhou impulso, e veio o Grande Prêmio de Monte Carlo, onde ela desfilou pela primeira vez ao lado de Senna, sob os olhares de admiração de príncipes e princesas de verdade.
“Ele foi claro comigo. Disse que se eu colocasse o meu trabalho em primeiro lugar, não íamos conseguir ficar juntos”, contou Adriane, numa entrevista a “Caras”, em março. Ela fez o que pôde. Passou a selecionar mais as propostas de trabalho e, por via das dúvidas, tratou de evitar anúncios de lingerie. O grande campeão não gostava de ver a namorada muito exposta. Quando ela apareceu de biquíni, em poses sexy, nas páginas de “Caras”, ele reagiu com irritação.
O convívio de Adriane com Senna teve viagens de trabalho, sob tensão insuportável das vésperas de corridas. Teve romance, sobre as areias alvas de Bora-Bora, no Pacífico. Teve natal em família, na fazenda dos Senna, em Tatuí, e excursão pela Europa, com todos eles. “Fora das pistas, ele era doce e brincalhão”, ela recorda. As relações com a família ficariam menos cordiais, quando ficou claro que aquela meninona simpática não era, afinal, uma ligação passageira, mas a escolha segura de um homem maduro.
As situações constrangedoras de hostilidade contra Adriane, observadas durante os funerais de Senna, indicam que a família não está disposta a reconhecer-lhe o papel de última namorada, da mulher que vivia com o piloto.
Adriane talvez não seja exatamente a mulher desenvolta que se imagina para um campeão do automobilismo. Mas nada a impediria de se tornar. Pelo menos era isso que apostava seu namorado. Antes de embarcar para a Europa, sem Adriane, três semanas antes da corrida de Ímola, Senna tomou a providência de matriculá-la em um curso de inglês de horário integral, na escola Berlitz. Providência, diga-se, de quem tem planos, no mínimo de médio prazo.
Até o lançamento de seu livro, com a obrigatória quota de entrevistas, noites de autógrafos e contatos com editores estrangeiros, a vida resumiu-se à rotina da Quinta da Penalva, às aulas de sliding numa academia de Cascais e à companhia de amigas, com quem sai, ocasionalmente. Há dias, a proprietária do autódromo de Cascais a consultou sobre os projetos de um monumento inaugurado, em setembro, no autódromo, em homenagem a Ayrton Senna. O preferido de Adriane, que foi o escolhido, reproduz uma seta apontada para o céu. Mas distrações como essas são ocasionais.
Aos 21 anos, Adriane Galisteu denota, em grandes e pequenas transformações, os sinais do golpe que sofreu. Já não gosta, como antes, de posar para fotografias. “Era tão natural e, agora, preciso me obrigar”, diz. “Até para pentear o cabelo preciso tomar coragem”.
Chamou a atenção do jornalista Nirlando Beirão, que colheu o depoimento para o livro, a segurança que Adriane demonstra quanto ao papel que desempenhou na vida de Ayrton Senna, por um lado, e, por outro, a total incerteza quanto a seu próprio futuro. “Adriane elabora sua experiência com sofrimento, mas sem amargura”, diz o Jornalista.
FONTE: Revista Claudia – Outubro de 1994
Nenhum comentário:
Postar um comentário